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Artigos-->O CONFLITO DE GERAÇÕES EM LAVOURA ARCAICA -- 03/01/2005 - 13:39 (Elias dos Santos Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Elias dos Santos Silva

Juvelina Zompero Pereira



RESUMO



O presente artigo analisa a tensão entre a tradição (personificada na figura do Pai) e a tentativa de estabelecimento de uma nova ordem moral, religiosa e familiar (cristalizada no filho) na novela Lavoura Arcaica (1989), de Raduan Nassar, evento que tem no desencadeamento de um romance incestuoso entre André e sua irmã Ana um emblema do novo catecismo, bem como do conflito entre o novo e o arcaico que percorre toda a narrativa, até a ocorrência de uma ruptura brutal entre ambos. Tem-se, ao cabo, o estabelecimento de um novo status quo moral e ideológico.



Palavras-chave: Ruptura, Incesto, Conflito, status quo.



1. INTRODUÇÃO



A literatura de Raduan Nassar, paulista de Pindorama e caipira confesso, inscreve-se em um devir histórico-estético que tem legado à humanidade ou pelo menos à minguada parte letrada dos povos, algumas das mais belas obras artísticas de que se tem notícia, posto que traz em seu bojo os elementos densos e humanamente dolorosos que caracterizam e diferenciam as criações dos mestres literatos do trabalho apoucado dos garatujadores de todos os tempos.

De fato, dentre os poucos livros do autor, Lavoura Arcaica ressalta-se, possivelmente, como um dos mais trágicos (no sentido aristotélico) romances brasileiros das últimas décadas, fazendo emergir de uma aparente felicidade adormecida, erigida nos moldes romântico-campestres, um caudaloso e espúrio envolvimento amoroso entre André, a ovelha negra de uma família de origem libanesa e sua irmã, Ana. Se o incesto é, na obra, o elemento catalisador da tragédia maior, esta consiste na derrubada de todo um conjunto de preceitos e regras, de uma moral tacanha construída ao longo de gerações, enfim, da tradição de um grupo unido por laços familiares.

Narrado em primeira pessoa, o livro mostra-nos a alma “suja” de André, sua busca por liberdade e, por outro lado, o sufocante universo familiar no qual o rapaz origina-se, fatores que se juntam e sedimentam sua revolta e rebeldia, seja através da consumação do amor-sexo incestuoso, seja com a posterior fuga do jovem da casa paterna (apesar da flagrante analogia com a parábola bíblica, André é um filho pródigo sempiterno).

Tendo em vista tais considerações, o presente artigo procura analisar a tensão recorrente na obra, qual seja a oposição/conflito entre a tradição representada por Iohana, o Pai, e André, o filho, pólos de um embate cujo resultado, se é previsível, nem por isso é menos doloroso, dado que suprime, de modo brutal em seu epílogo, um universo mediante a eclosão de outro.

Embora não tenhamos quaisquer pretensões de exaurir os possíveis ângulos de exame da obra (propósito inexeqüível em análise literária, aliás), esperamos que as próximas páginas possam vir a ser um breve, porém efetivo, referencial crítico de Lavoura Arcaica.



2. O ENREDO



O enredo de Lavoura Arcaica revisita, em pequena medida, a história de Amon e Tamar, os incestuosos filhos de Davi, segundo Rei de Israel. Faminto de um tipo de amor que não viceja nos leitos meretriciais que assiduamente freqüenta, André, adolescente instável e presa de uma psique tumultuada, acaba encontrando em Ana, sua irmã mais nova, o combustível do seu desejo sexual e de suas afeições.

Incapaz de partilhar da vida rural da família, sentindo-se distante e alheio ao pequeno mundo capitaneado por Iohana, seu pai, André não suporta os sermões paternos, o abecedário judaíco-cristão repetido à exaustão junto à mesa, a pacata e macilenta convivência com os familiares, além de demonstrar uma clara incapacidade de crer/obedecer guiado apenas pela fé cega de que parecem partilhar Iohana e Pedro, irmão mais velho de André.

Se a aproximação física entre André e Ana mostra-se irresistível em seus momentos embrionários, concretizando-se, enfim, torpe e intensamente, nas palhas que cobrem o chão de uma casa abandonada, o exaurir dos sentidos traz, contudo, para Ana, a consciência moral de seu ato, levando-a à oração e à fé. É o momento de confissão da culpa, de cinzas sob a fronte.

André tenta demovê-la de sua contrição e, não o conseguindo, parte em direção a um quarto sujo de pensão, à introspeção, à bebida e ao delírio. É mergulhado nesse universo de pútrido delírio que André se entrevista com Pedro, o irmão mais velho, bovídeo sucessor do Pai. André retorna para casa, tal qual o filho pródigo da parábola bíblica, mas não se arrepende, apenas contemporiza com o Pai, seus sermões e sua moral. Uma festa é feita em homenagem ao regresso do filho ausente e Ana dança lascivamente, acedendo e cedendo-se tacitamente (na linguagem do código particular de irmãos-amantes) à paixão do irmão, ocasião em que Iohana fica sabendo por Pedro sobre a relação incestuosa entre aqueles. O alfange brilha na mão do Pai. O sangue de Ana é derramado, tal qual um sacrifício hebreu antigo. O castelo de valores e crenças de Iohana, porém, sucumbe de modo irrecuperável, descendo ao limbo como o corpo sem vida de Ana. A tradição está em xeque; provavelmente, no fim.



3. A TRADIÇÃO



Lavoura e arcaica não são apenas substantivo e adjetivo que se somam para formar um título, uma idéia. Antes, pelo contrário, são termos distintivos que o autor utiliza, de maneira magistral aliás, para compor um quadro, uma situação que se quer perene, sem o ser, todavia.

Iohana, o Pai, sua visão linear, seu mundo de bons e maus, os valores e princípios judaicos e cristãos que norteiam sua vida, os sermões que promove ao pé da mesa como um discurso incisivo e incontestável, sua não-aceitação do novo, do diferente, são alguns dos fatores que, somados, compõem aquilo que poderíamos denominar de tradição no âmbito da novela.

Em outras palavras, a tradição que o Pai (sempre grafado pelo autor com letra maiúscula) procura ansiosa e ferreamente manter, longe de ser coletiva em termos de aceitação autônoma, é monológica, unidirecional, já que a comunicação, em família, se dá sempre no horário das refeições, por intermédio de sermões/discursos repletos de proibições, de pecados, de não-ser, impostos por Iohana. Sem o saber, Iohana é, na visão de André e, quiçá, de outros membros da família, “... um promulgador de tábuas insuficientes, incapaz de perceber que suas leis são a lenha resignosa que alimenta a constância do fogo eterno” (NASSAR, 1989, p.140)

O termo tradição adquire, por conta de tais aspectos, no escopo da narrativa, um tom solene, mas vazio; enfático, porém inócuo, já que almeja apenas conceber e ditar normas que preservem o status quo; que sedimentem o patriarcalismo rançoso de Iohana ou, ainda, para evitar o pecado, notadamente aqueles de natureza erótico-sexual (judeus e cristãos são particularmente incisivos contra tais “erros”). Desse modo, a tradição e os dogmas que a regem, são exercitados por intermédio de conceitos e preconceitos rígidos que se aplicam tanto ao trabalho quanto à vida da comunidade. Em outras palavras, a Bíblia, seus preceitos e suas orientações, são utilizados de forma fundamentalista, desvinculados do livre-arbítrio que legitimaria o credo familiar.

Isso, porém, não chega a constituir-se em uma exceção, pois, quando examinado em uma perspectiva sociológica, o “eterno camponês” (no caso, Iohana), tende a permanecer estático culturalmente, pois, como salienta Saldanha (1981, p.44)



(...) o homem que vive da terra e nela, tem um padrão de vida e mentalidade quase a-histórico e invariável, onde os arquétipos culturais estão assentes e evoluem com lentidão geológica. Sendo a cultura e a civilização obras sobretudo do homem urbano, o homem do campo margeia estas obras. A cultura que ele pratica tem outras matrizes. (...) O homem do campo vive suas rotinas e não as analisa.



Dessa forma e na visão tradicionalista do Pai, a razão, as emoções, o querer, o estar, o desejar são, em última análise, expressão da corrupção e da pecaminosidade do homo sapiens, autênticos passaportes para a perdição, já que tais aspirações não emanam de Deus; pelo menos não do Deus de Iohana, com suas proibições e seu discurso eternamente impeditivo, seja do prazer, seja da busca pela própria identidade fora dos preceitos religiosos e culturais tradicionais que observa.

Tais asserções são particularmente pertinentes quando verificamos que a sexualidade, sua expressão e o prazer que proporciona, são vistos por Iohana como o supra-sumo da devassidão e da imoralidade, ou seja, o Pai professa uma fé cega, rigidamente moral, incorruptível no plano amoroso-sexual, o que nos permite, por extensão, entender que a aleivosidade de Iohana não é contra o incesto em si (que, aliás, sequer desconfia) mas contra toda e qualquer forma de manifestação nesse sentido.

Iohana, seu universo bitolado e sua quase ferocidade moral assentam-se, provavelmente, sem saber, no temor do homem primitivo de ter suas crenças (e as suas convicções, em qualquer plano) abaladas, pois, como explica Desroche (1985, p.93) “a ciência de uma sociedade sem ciência, uma religião torna-se exposta a um verdadeiro desmantelamento a partir do momento em que adentra uma sociedade equipada com uma ciência menos aproximativa”.

Desnecessário é frisar que Nassar, com isso, não vai contra a doutrina cristã expressa na Bíblia, pois tal doutrina não se mostra, ao longo do texto sagrado, contra o prazer obtido pelo corpo ou qualquer outra das proibições tão ao gosto de Iohana. O autor, na verdade, procura evidenciar que tradição, na visão estreita de Iohana, é única e tão somente a preservação dos elementos sociais e familiares transpostos da Bíblia para o cotidiano de sua família, numa interpretação equivocada e pessoal que faz do Livro Sagrado e dos preceitos nele contidos. Nesse momento, Iohana, contudo, é não apenas personagem, mas também alegoria, já que cristaliza em si aquilo que Saldanha chama de “eterno camponês”, isto é, o homem que, sendo depositário dos valores, costumes e até estereótipos de seu grupo social, neles encontra refúgio e resposta, negando-se a qualquer mudança, a qualquer forma de transformação e transgressão.

O mundo de Iohana, porém, não é eterno. Suas crenças e valores não são compartilhados por todos na família. A semente que quer ver germinada não viceja em todos os solos. Em breve surge uma nova ordem, que se lhe opõe firmemente.



4. A NOVA ORDEM



A nova ordem, em Lavoura Arcaica, é formada, essencialmente, a partir da junção de elementos contrários àqueles defendidos por Iohana, ou seja, trata-se da antítese dos dogmas e das crenças do Pai.

A rebeldia e a revolta de André se dão, aliás, justamente em função do peso da tradição, que o rapaz julga não ser autêntica, constituindo-se, na realidade, em um ideário falso, mistificador e hipócrita. Mas, apenas do ponto de vista de André, não da família, já que esta não reúne condições para analisar a si e ao seu meio, limitando-se a observar regras e preceitos tradicionais, mesmo sem a mística cega de Iohana.

A revolta de André, porém, é sempre silenciosa, sussurrante, cristalizando-se principalmente em camas mercenárias, nas quais seu sêmen derramado são gotas que protestam, que agridem e achincalham a prisão moral que o cerca.

As atitudes de André, de certa forma, encontram eco no pensamento de Rousseau (1999, p. 610), segundo o qual



Toda a teologia que posso adquirir por mim mesmo através da inspeção do universo, e pelo bom uso de minhas faculdades, limita-se ao que vos expliquei há pouco. Para saber mais, é preciso recorrer a meios extraordinários. Esses meios não podem ser a autoridade dos homens, pois, nenhum homem sendo de espécie diferente da minha, tudo o que um homem conhece naturalmente eu também o posso conhecer, e um outro homem pode enganar-se tanto quanto eu; quando acredito no que ele diz, não é porque o diz e sim porque o prova. O testemunho dos homens, no fundo, é apenas o da minha própria razão, e nada acrescenta aos meios naturais que Deus me deu para conhecer a verdade.



Assim, é justamente a consciência que André possui da falaciosidade religiosa e moral imanentes à ideologia e às crenças do Pai que o leva a romper com aquele mundo velho, cercado de privações.

O amor incestuoso que André sente por Ana é, pois, nesta perspectiva, apenas uma forma de concretizar e sedimentar sua revolta e, ao mesmo tempo, alicerçar a nova ordem que busca implantar: em lugar da castidade, a luxúria; ao invés de fraternidade, sexualidade; imoralidade por moralidade.

Evidentemente, a nova ordem preconizada pelo Filho não afronta acintosamente a Tradição personificada no Pai, mantendo-se à sombra, densa e poderosa, levando Ana, na voluptuosidade do amor proibido, a entregar-se inteira, privando e compartilhando com André não apenas do sexo ardente, mas do novo ideário que este representa. De certa forma, Ana é a fêmea ancestral e perene que ajuda a erigir conquistadores.

André, todavia, ainda não está totalmente pronto para “tomar o poder”, para fazer com que a torre moral erigida por seu pai seja derrubada. Então, foge. Não somente do feudo moral de Iohana, mas também dos desencontros que sente dentro de si. André, no entanto, voltará.



5. O CONFLITO



A volta de André para casa possui uma conotação bem mais ampla do que apenas repetir a Parábola do Filho Pródigo. André vem aparentemente submisso, cordato, mas está retornando, na verdade, como um conquistador prestes a desferir um golpe de Estado.

O regresso é, pois, não uma reconciliação, mas o predomínio implícito do que André representa. Sua mãe, suas irmãs e irmãos estão, na verdade, acatando, provavelmente no plano da inconsciência, o novo catecismo. Ana, a irmã-amante, torna-se jubilosa com a volta não do irmão, mas do homem. Prepara-se o desenlace. O embate final.

Na festa feita em homenagem à André, sua irmã dança, sensual, lasciva e cônscia de que seu amor sujo vai ter continuidade. A dança é, pois, o ritual de acasalamento incestuoso. Macho e fêmea já estão prontos para criar e procriar uma família da Nova Ordem. Iohana, contudo, ainda não percebe. Ao saber da verdade pelo desditoso Pedro, que não consegue mais guardá-la em seu atormentado interior, Iohana sente que seu mundo está sendo periculosamente ameaçado.

Sua fúria, no entanto, mais do que uma revolta moral, é de natureza dominatória: é seu reinado que está sendo ameaçado; o inimigo está se acercando perigosamente. Ao fazer verter o sangue de Ana, porém, Iohana está na verdade completando o desmoronamento do seu próprio mundo. O Pai/Ditador não venceu suprimindo brutalmente um dos elementos originadores do desequilíbrio, pois a morte de Ana é, do ponto de vista da tradição alimentada pelo próprio Iohana, mais grave e perturbadora que o incesto. Assim, o gesto fatal apenas precipitou a vitória da Nova Ordem. André venceu. Suas idéias venceram. Estranhamente, todavia, ele está triste e apático. Algo de si morreu com a tradição que se esfacelava. De certo modo, como um membro de uma família tribal que toma o cetro do poder após matar o pai, André também perdeu.



6. CONCLUSÃO



Lavoura Arcaica é um romance de muitos adjetivos, de muitos ângulos de visão, mostrando-se em seu conjunto como algo esférico, complexo, denso e derramado por páginas das quais brotam, por vezes, labaredas intensas.

Assim sendo, os apoucados enunciados que compõem este artigo não podem, por razões óbvias, arvorar-se à condição de última palavra sobre um livro tão caudaloso, mas somente como uma possível contribuição ao exame crítico do universo soturno e lodoso presente em Lavoura.

Não obstante, o embate entre André e Iohana, entre a tradição e a liberdade, entre a velha e a nova ordem, dentre outros elementos análogos aqui enfocados, parecem ser suficientemente eloqüentes para colocar em evidência o cerne conceitual do livro, qual seja o choque exacerbado e perene entre gerações. A luta entre o novo e o velho.

Evidentemente, não é possível afirmarmos de modo crível o quanto existe de autobiográfico em uma obra tão densa e, ao mesmo tempo, tão verdadeira. De certa forma, Lavoura Arcaica parece conter em si uma espécie de profissão de fé, de catecismo ideológico de Raduan Nassar, aspergindo ares de liberdade, de inconformismo com as mazelas da ordem estabelecida, mesmo que seja através do amor sujo, da paixão lodosa.

Assim sendo, a vitória de André em relação à velha ordem, seus ditames arcaicos, sua moral tacanha é, em certa medida, um exercício de vida, de convicção moral e política, que arrosta com o fardo da tradição hipócrita através de ações quase insanas, doridas, mas que trazem em si ventos de liberdade. Tanto de André, quanto (poderia perfeitamente ser) de Raduan Nassar.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



DESROCHE, Henri. O homem e suas religiões: ciências humanas e experiências religiosas. Trad. Joaquim Pereira Neto; organização e revisão Luiz Pereira Benedetti. São Paulo: Paulinas, 1985.



NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. 3. ed. rev. pelo autor. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.



ROUSSEAU, Jacques. Emílio ou da educação. Tradução Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1999.



SALDANHA, André Moroni. A antropologia e o homem: um encontro teórico. São Paulo: Companhia das Letras, 1981.



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