Era noite quando abriram-se as portas da casa. O jogar de chaves na mesa, fez ressoar pela sala o cantar metálico da chegada, e a melancolia deu lugar a ansiedade do beijo e do abraço à saciar as saudades do transcorrer do dia.
Tua roupa suada e impregnada pela poeira poluída do mundo mercenário mostrava-te exausto, com gestos funestos de tão cansado que estás. Banhara-te demoradamente em ervas que selecionara para purificar-te e renovar-te o espírito, e deitou-se nestes lençóis gelados que esperavam nosso calor à saciarmos a ausência que nos consumira naquelas poucas horas distantes. Estávamos completos apenas lado a lado, sentindo a respiração, deixando-se levar pelo bailar de corpos que adormeciam juntos, e bastava.
As carícias involuntárias eram prova de companheirismo num significado completo e raro da palavra, onde aquela ardência febril da libido indomável já estava tranqüila entre os corpos acostumados.
Pela manhã, os raios quentes de Sol trouxeram à casa o colorido em quadrados das janelas, contrastando as sombras e os objetos reluzentes. As formas estavam melhor delineadas e o despertar se mantinha alegre como a revoada de pássaros que brincava no jardim. O cheiro de café transitava pelos corredores mostrando os compassos inexoráveis do relógio da rotina, soando à percepção do olfato. O carinho de teus gestos leves e gentis tomavam conta de minhas idéias, deixando-me nostálgica.
O sorriso de anjo resplandeceu em minha vida e tirou-me dos pensamentos revoltosos a vontade de partida, como os rios correm para os oceanos, queria eu enveredar-me pelos caminhos desconhecidos e solitários do mundo. Mas eis que aparecera esta notável figura que reverteu o curso de meu rio natural, e sarcasticamente mudou-me o curso, como diria Mário de Andrade, para o interior de mim mesma. Descobri-me por ti , seguindo-o.
Percebi então, no brilho daquele olhar distraído, a liberdade florescente; a entrega incomensurável que tomava conta de nossos instintos.
Nesta manhã, meu amor, olhei-te, e vi a mim.