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Artigos-->A POMBA E O DOENTE -- 07/10/2001 - 03:34 (Marcela) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
"Quatro horas. A criança olha assustada à sua volta. Concentra-se na pequena tela de televisão que foi posta à sua frente e treme. Esforça-se para se levantar da cama, seu corpinho ergue-se alguns centímetros e cai. Sente dores. Tenta colocar os braços embaixo do tronco, mas não consegue. Pensa que está chorando, e no entanto não sente as lágrimas em seu rosto. Olha para a TV, está sendo transmitida uma partida de futebol. O garoto gosta do esporte. Olha para a porta e vê a enfermeira aproximar-se.



Quatro e quinze. A mulher aumenta a dose de morfina e sai rapidamente. Ele sente suas pálpebras ficarem mais pesadas, e sua mente enevoar. Mistura-se delírio com a realidade, sobrepondo a dor com a insensibilidade. Clama pelos pais, que há muito não vê. O choro agora parece-lhe certo. Lembra-se da mãe; viera junto com ele ao hospital ou não? Está confuso e assustado. Não tem mais certeza de suas memórias, e não confia nelas. Resolve prender-se então ao presente, olha a TV. Estão jogando Grêmio e Internacional. Ele é fissurado em Gre-Nal. Seu pai o levara uma vez ao Olímpico para assistir a um. Era final de Gauchão, e o Inter foi campeão. Ele, gremista, chorou muito à noite no seu quarto por não entender como seu time de coração perdera. Hoje, entretanto, não se importa realmente com quem irá vencer. Não se trata mais de paixão, de sonhos, de diversão. Morre lentamente.



Quatro e vinte. O menino nasceu com o vírus da morte lenta. É tudo questão de um tempo que se esvai demoradamente tal qual a areia grossa por uma ampulheta, mas que, no entanto, não demora-se o suficiente para aproveitar em plenitude a queda. Um dia a areia se acabará, e restará perguntar a si mesmo se valeu a pena viver para morrer logo em seguida. Abandonar o que muitas vezes é o que nos resta, a vida. (Tudo parece absurdamente sem sentido!)



Surge novamente a enfermeira pela porta. Ela é cheia de cuidados, caminha vagarosamente e em silêncio, com um sorriso morto no rosto, que mostra seus dentes amarelados pela nicotina do cigarro, cujo cheiro está impregnado em seus longos e sujos cabelos morenos. Dentes podres como a alma, viciada em morte lenta. Ela mede o pulso da criança, gira sobre os calcanhares e vai-se embora. O menino olha para a TV: zero a zero. O juiz deixa de marcar um pênalti para o Grêmio. Os jogadores se revoltam, discutem. O capitão tricolor recebe um cartão amarelo. O meia colorado aplaude. Os torcedores ululam nas arquibancadas lotadas, feito uma matilha de hienas disputando um cadáver jogado ao acaso.



Quatro e vinte e cinco. O menino vê uma pequena pomba bicando a janela. Parece querer adentrar o quarto, desesperada. Abre as asas, cisca como uma galinha, bate a cabeça contra o vidro como um touro. O moleque sente-se tonto. Pisca os olhos rapidamente, numa tentativa de recuperar a percepção da realidade. Teme estar delirando. Tudo embranquece, e ele não ouve mais o jogo. Fraqueza. O Inter perde um gol. Depois de um lançamento do lateral esquerdo, a zaga tricolor falha e o centroavante colorado chuta para fora, apenas observado pelo estupefato goleiro gremista, que nada pôde fazer. O atacante vermelho desespera-se, o arqueiro gremista simula sangue-frio e cobra friamente o tiro de meta. O pássaro pára e olha para a TV, virando a cabeça sobre o pescoço. (Parece querer entender o esporte!)



Quatro e meia. A pomba volta a bicar o vidro. O barulho incomoda. Irrita. O menino geme, ensaia um grito, mas a garganta prende-lhe a voz. Vira-se para apertar o botão de emergência que há na cabeceira da cama, sem sucesso. Bate no metal da cama e machuca a mão. Sangra. Mija-se. Pega o controle, e com movimentos maquinais atira-o na janela, rachando o vidro. A pomba vai-se embora. O moleque sorri com ares de vencedor. A enfermeira entra no quarto e o repreende, dizendo que aquilo não se faz, ainda mais com a sua já debilitada saúde. A mulher diz-lhe que se precisar de algo deve chamá-la. Ele diz que tentou. Ela faz uma careta, vira-se de costas e vai-se pela porta. Ele chora, arrependido. O Gre-Nal está entruncado no meio de campo. Muitas faltas, pouco tempo de bola rolando. Entrada violenta e desnecessária no meio de campo. O segundo volante tricolor é advertido com cartão amarelo. O narrador exalta a atitude do juíz.



Quatro e quarenta. O pássaro pousa novamente no parapeito da janela. Ele agora raspa o vidro rachado. "Ele não desiste", pensa o garoto. Observa a ave. Ela arranha em movimentos verticais, espaçados por um curto e constante espaço de tempo. Como se tivesse vindo dar-lhe ar fresco. Vê algo de fantástico e divertido naquilo. Fita a pomba. A pomba fita o menino. Avaliam-se. Traduzem-se. Ele é o doente e o fraco. Ela, criatura qualquer que respira o ar da tarde. Há dois meses ele não sai do quarto. Definha, sem saber ao certo até quando resistirá.



Quatro e quarenta e seis. O primeiro tempo da partida termina, sob vaias dos torcedores. A pomba faz um pequeno buraco no vidro, onde consegue enfiar seu bico. O garoto sente uma fraca rajada de vento o aliviar. A poeira que adentra o quarto o incomoda, e ele começa a tossir. A enfermeira volta. Ajuda-o a sentar-se, sem sentir a brisa que invade o ambiente. O doente estranha aquela insensibilidade, mas nada comenta. Não preocupa-se realmente com aquilo. Nem com a enfermeira. Apenas as ações do pássaro retem suas atenções. A enfermeira, dedo indicador em riste, reclama pela aparente indiferença do menino. Ele deita o olhar para a janela, enquanto a mulher, apressada, vai-se. Ele fica ali, estático, a observar a luta da ave contra o vidro.



Cinco horas. Recomeça a partida. A cada minuto o menino sente-se renovado pela brisa alegre que com o pássaro vem. Agonizante, ele agradece em silêncio aquela oferenda. Entretanto, sente-se mais fraco ainda, e luta com seu próprio desejo para não desfalecer. A enfermeira cruza o batente da porta em direção à cama, mas sai. "Deve ter confundido o número do quarto", pensa. Fecha os olhos. Escuta o incessante bicar no vidro, e ouve a narração burocrática na TV. O comentarista diz que as duas equipes têm de se esforçar mais para atingir a vitória. Para ele, os dois times estão jogando contra seus próprios erros, e não contra o adversário. O garoto aprecia a comparação. Ri, timidamente. Pensa em si. "Contra os próprios erros..." É engraçado. Vê o branco do quarto girar. Desmaia.



Cinco e trinta e cinco. Acorda, sentindo-se desperto de um breve sonho. Rapidamente, olha para a janela. O pássaro ainda está lá, com uma rachadura maior. Vira-se então para a TV, curioso. Zero a zero. Escuta passos. A enfermeira passa pela porta do quarto sem sequer olhar para dentro. De súbito, sente uma rajada forte de vento. A pomba aumentara o buraco. Tenta entrar mas não consegue, presa está por suas asas. O garoto levanta, percorre trôpego o quarto com o que lhe resta de energias. Chega à janela, força-a, deixa entrar o pássaro.



Cinco e cinqüenta. A enfermeira adentra o quarto, assustada. O menino está atirado perto da janela. Pálido e... Morto! Tem um sorriso nos lábios, e seus olhos, mesmo secos e estagnados, produzem um estranho brilho. Não há rachaduras na janela, mas uma pena percorre lentamente o ar do quarto. Na TV, o jogo acabara, e começava o capítulo da novela. A vida seguia o seu rumo, e a enfermeira acendia outro cigarro. A alma do pobre garoto estava salva; como anjo ele havia voado para o céu. "



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