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Artigos-->Auschwitz -- 06/12/2004 - 18:26 (Érica) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
É como se chamava um dos campos de concentração que os nazistas armaram para se livrar dos "indesejáveis" - judeus, homosexuais e ciganos. Conheci algumas pessoas das muito poucas que sobreviveram as matanças e os fornos crematórios. E há alguns meses conheci um sobrevivente - a diferença entre esse e os demais com quem mantive uma ou outra conversa, é que esse de quem vou falar dentro em pouco, esse não era judeu. Era homosexual.



Há uns meses, em S.Paulo, um conhecido me telefonou perguntando-me se me interessaria conversar com um senhor de idade muito avançada, que tinha vivido num campo de concentração alemão. Aceitei. Viajamos alguns quilômetros de S.Paulo e chegamos a um sítio ou chácara, lindamente trabalhado. Canteiros de flores, árvores bem tratadas, caminhos aplainados - da porteira até a entrada da varanda tudo parecia feito para ser fotografado em cores.



Eu me sentia um pouco trepidante, não saberia como começar a "entrevista", não querendo impor meus interesses profissionais a uma pessoa já com a saúde bem frágil. Aquele senhor com quem eu iria falar em pouco estava na casa dos oitentas e muitos. Mais um pouco estaria chegando aos 90. Segundo meu guia, ele estava completamente lúcido, continuava falando inglês e alemão e arrastava um pouco de português.



Entramos na sala principal da casa. Era ampla, iluminada por janelas que davam para os jardins. Um tapete todo bordado com temas sensuais (homens, mulheres, animais) estava no centro da sala, rodeado por poltronas de vime e almofadas coloridas. Pelas paredes, entre os janelões, quadros em que se viam réplicas de xilogravuras famosas. O contraste entre o branco-negro dos quadros e as cores dos móveis era muito acolhedor. Assm que me sentei numa das poltronas, entrou o Velho - di Alte - como ele se apresentou, sorrindo para mim. - Fala alemão? - me perguntou. - Não, eu disse. Podemos falar inglês ou português. - Num inglês britânico, ele respondeu que preferiria esse idioma, pois não se atreveria a conversar em português comigo. E iniciamos a convera - ele simplesmente contou-me o que foi sua vida num campo de concentração. Se foi em Auschwitz ou não, agora não me lembro e não me importa. O que foi importante para mim, foi saber que por causa de sua preferência sexual na curta vida que nos cabe, ele foi condenado a trabalhos forçados. E escapou de morrer por um pequeno trauma que sofrera no campo: ficou surdo. E, como surdo, não obedeceu a uma ordem de seguir para fora do campo, onde os demais (bons ouvintes) foram para serem aniquilados e jogados na vala comum. Como ele não ouvia quase nada, não ouviu a ordem e permaneceu onde estava. Naquele dia, faltou pessoal nazista para verificar se todos os condenados estavam presentes... daí ele ter sido poupado. - Mas estou me adiantando à história.



De tudo o que ouvi naquela tarde, alguma coisa vou contar aqui. O demais pertence a um outro tipo de divulgação. E foi o que lhe prometi, antes de sair. Que sua história seria contada.



Ele era um homosexual ativo, maduro e de escolha certa. Tinha um companheiro na cidade polonesa onde vivia. Ambos eram marceneiros. Eram homens fortes e machões. Jamais alguém iria desconfiar de que fossem homosexuais e que tivessem relações. Mas o amigo foi preso e o delatou, salvando-se assim por alguns dias. (Foi morto um pouco mais tarde, num campo de trabalhos.) E começaram a caçá-lo (foi o verbo que ele usou - "they started to hunt me"). Ele se enfurnou por uma floresta que conhecia bem, pois ali ia cortar madeira para fazer bancos - trabalhava principalmente para igrejas. Na floresta ficou alguns dias na casa de uma senhora que fazia remédios com ervas e por isto era chamada de feiticeira. Ele soube que ela também foi assassinada sob acusação de ser bruxa. Na casa dela juntou muitas ervas e foi o que o manteve por alguns dias.



Para encurtar a história, ele foi preso pelos nazistas quando estava se banhando num rio. Esconderam as roupas dele, e o fizeram desfilar para os soldados por ali recostados. Os vexames que o obrigaram a passar me foram poupados. Apesar de saber que eu estaria fazendo uma reportagem jornalística, ele não poderia deixar de se lembrar que eu, como mulher, poderia ter minha sensibilidade ferida se ele descrevesse tudo o que passou naquela tarde. E nas tardes, nos dias, nas noites que se seguiram.



Esteve onze meses naquele campo. Trabalhava como marceneiro. Visitou casas de nazistas cujas esposas queriam guarda-roupas e estantes, bancos e mesas. Com fome, trabalhava numa peça ao lado da sala de jantar, onde a família inteira comia até se fartar - os aromas da comida quente entravam por toda a casa. Ele quase desmaiando de fome ou de subnutrição e a família do nazista fazia-se de invisível para o sofrimento dele. Era um escravo, um bicho, um nada.



Esse homem escapou da morte por sua surdez - que se recuperou duas semanas depois que seu campo foi liberado. - Teve a grande sapiência de não comer mais do que a ração de leite e pão que os americanos lhe deram nos primeiros dias depois da liberdade. Porque sabia que seu corpo, como acontecera com outros, não aguentaria uma refeição normal. (Os que avançaram para comer - ao ponto de terem matado um bezerro perdido e assado - morreram por indigestão aguda.) - POuco a pouco ele se reestabeleceu, entrou e saiu várias vezes de hospitais, conseguiu um visto para a América do Sul - desceu no primeiro porto. Recife. Ali viveu por trinta anos.



Conheceu um artista, com ele passou a morar. Agora era o único dono daquela chácara, pois seu companheiro tinha falecido.



A história completa deste homem é muito mais do que posso aqui narrar. O ponto básico é que ele foi preso, torturado e condenado à morte por ser homosexual. De resto, era tão inocente como um judeu ou um cigano. Este paradoxo é proposital.



Ainda na nossa conversa ele me disse que homosexualismo no Brasil está muito mal compreendido. Interessou-se em saber se eu era lésbica. Disse-lhe que não. Perguntou-me se tenho amigas lésbicas. Disse que não. Perguntou-me então porque eu o estava entrevistando. Respondi que me interessava por todo o tipo de liberdade - porque qualquer tipo de liberdade tem seu qualquer tipo de coerção. A liberdade de ser homosexual, de ser judeu ou de ser cigano foi abominavelmente conduzida a uma categoria de crime. Um crime sem criminosos, sem arma de crime, sem crime. Mas, nas cabeças escatológicas dos nazistas, eram crimes.



Esse senhor faleceu ontem à noite, à idade de 90 anos e dois dias. Essa é minha homenagem a ele.

Um herói sem louros, um santo sem altar, um homem.

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E.E.
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