Mortes frequentes
Comecei a morrer tão logo nasci.
Do leito aquoso e quente, acordei para a vida
e assisti ao féretro do meu repouso.
O primeiro choro mata-me a inércia dos pulmões.
Ouso, a seguir, um ávido sugar no peito materno.
Farto, o leite mata-me a fome primeira.
Já andando, à frente, com tão poucas pernas,
perplexa, morro na queda de um leitoso dente.
Foi a porção inicial de mim
que, sobre um telhado quente,
eu, própria, sepultava.
Chegando à adolescência,
ao ouvir, assustada, os soluços do útero,
morro pela quinta vez! Lágrimas de sangue,
enterro sobre os poros finos dos papéis brancos.
Mais tarde, morro nos partos. Essa, sim, foi morte boa!
Parte de mim criou vida independente
e sublime e terna e bela.
Adiante, morro, novamente, ao morrer-me o casamento.
Enlutada, assisto, nobre, a meus funerais pobres.
Uma vida construída a dois não sobrevive sozinha.
Faleço no segundo casamento,
morte essa, festiva, definitiva.
Aí vi sepultada toda a dor advinda da morte anterior.
Hoje morro por morrer. Hoje morro de medo de morrer.
E, morta, sou o depoimento vivo de como se morre
por um lapso ou, por acaso, por descaso ou, por atraso...
a vida toda, o tempo afora, a cada dia, a toda hora,
e, eu mesma, aqui, anuncio: morri...
nos últimos meses, pelo menos, várias vezes.
E, enquanto morro em mortes sucessivas,
é sinal que, bem ou mal, vou vivendo tantas vidas.
O difícil será quando der de cara
com a morte última, a derradeira!
Aí sim, saberei, de qualquer maneira,
do autêntico frio mortal, eterno, forte,
e, então, covarde, " in extremis," enfrentarei
a face mais feia da morte!
Maria da Graça Almeida
Texto publicado na revista Fresta
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