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| Poesias-->Liberdade -- 08/03/2002 - 12:36 (Ricardo França de Gusmão) |
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LIBERDADE
(Ricardo França)
I - Esfinge
Se meu filho, um dia, em meio a brincadeira de bola,
me perguntar, de repente, nessa hora,
se eu sei o que é liberdade, o que direi então, meu Deus?
Um dicionário de vocábulos ainda inéditos
habita a morfologia dessa palavra.
Línguas estranhas e mortas, idiomas não inventados
e hierógrafos incompreensíveis estão incrustados nela.
Liberdade é uma esfinge e eu sou simplesmente pai.
Na liberdade mora uma civilização perdida
e eu sou cidadão sem Pedra de Roseta,
preocupado com o custo de vida
e amedrontado com o preço do plano de saúde.
Queria ser amigo íntimo da liberdade
para cumprir a missão da resposta.
Não sei se terei outra chance ante à curiosidade fulminante
da tal pergunta inexorável, na hora do papo de pai para filho.
A resposta tem que nascer instantânea, serena, segura,
como se sempre tivesse existido em mim.
A resposta tem que ser ancestral à pergunta,
para que não haja dúvida de jeito nenhum.
Preciso passar no vestibular da explicação.
Disso depende a minha reputação de pai.
Queria decifrar o genoma da liberdade absoluta.
Entender os cromossomos do livre-arbítrio
que não estão nos tubos de ensaio dos laboratórios.
Queria compreender a liberdade filosófica e empírica,
a liberdade povoada de música e ideologia
que não encontro nas prateleiras dos shopping-centers.
Queria ser Doutor Honoris-Causa dessa liberdade fugidia,
examiná-la, decodificá-la, devassá-la em Raio-X
e ultrassonografia,
escanear seu corpo espectral com a última tecnologia disponível.
Preciso conhecer a liberdade antes do sufrágio aos dezesseis,
como se tivesse enfrentado todas as lutas dos mártires
e todos os lamentos, e todas as tragédias e todas as guilhotinas.
Tenho que me aproximar da liberdade antes da liberdade,
a liberdade antes da conquista,
quando tudo era escravidão e servilismo.
Tenho que receber a liberdade como uma entidade,
conhecer a dor de sua gênese e sua paternidade divina,
domesticar a liberdade que há selvagem pelo éter
para entender a liberdade-mensagem
que está na estátua de Bartholdi.
É a liberdade uma borboleta que existe colorida
e nasce com a profissão de pincelar o ar?
Alguns homens dão a vida por este espécime,
outros compõe poemas e desafiam os ditadores.
Gandhi presenteou com flores os soldados ingleses
e envergonhou os liberticidas.
Chaplin bamboleou nas pernas tortas de Carlitos
Quando a liberdade parecia que saltava das telas de exibição.
Era criança nesse tempo e achei bom.
Um Joaquim brasileiro perseguiu a liberdade ainda que tardia
e tocou no significado que preciso capturar.
Mas o fantasma do holocausto ainda paira no ar
e a borboleta escapa do meu puçá,
pois, quiçá, me falta o entendimento.
II - Zona urbana
Deus, para saber da liberdade é preciso ter sido encarcerado oitenta anos?
Ter derrubado muralhas, muros e cercas?
Ter escapado do calabouço dos usurpadores medievais?
Para saber da liberdade tenho que me precaver contra
os golpes dos homens politicamente insuspeitos?
Escapar das armadilhas legislativas dos tecnocratas?
Desconfiar da boa intenção dos executivos de gravata,
indivíduos construídos pela cartilha do marketing
que nos ensina diariamente como gastar dinheiro?
Para praticar a liberdade, Deus, tenho que me cuidar
contra os bandidos que transitam pelo passeio público?
Esquematizar estratégia de sobrevivência para os tempos modernos?
Como destrinchar a liberdade, ave teórica,
se tal significado me orbita meteórico beirando a sentimento?
A bala perdida zune.
Existe o desafio diário absoluto,
medo insano de viver menos cinqüenta por cento todo dia.
Já não podemos levar a família para o jardim desse zoológico
e aprendemos a desconfiar e a olhar de lado.
Somos livres, meu filho, mas temos que ter cuidado lá fora.
Somos livres, meu filho, mas a escolha pode ser perigosa.
Somos livres, meu filho, temos a liberdade de existir trancados.
Mas também podemos ir e vir por noventa centavos.
Quem não dispõe das moedas pode fazer o percurso a pé,
ou pode nunca chegar
ou nunca partir.
Ir e vir é exercer liberdade
e ficar é exercer liberdade.
Não dispor dos noventa centavos é um distúrbio do processo
e tudo isso é uma grande prisão mimetizada.
O que é então liberdade, meu Deus?
Essa palavra tão imensa que está vinculada à tudo
mas permanece impassível e desafiadora
como se misteriosa para sempre?
O que é a liberdade, então, meu Deus?
Essa ânsia que movimenta os músculos dos heróis
e levanta as multidões aviltadas?
O que é a liberdade, meu Deus?
III - A resposta
Na verdade, Deus, quando a pergunta inquisidora e inocente surgir,
e os olhos do meu filho permanecerem brilhando na certeza da resposta imediata,
estarei aterrorizado de súbito
pois não saberei dizer com a absoluta certeza
se eu mesmo sou livre nesse mundo.
Se a incerteza povoar o meu coração nesse momento
tentarei desviar para a evasiva,
apontarei para o céu na direção de algum pássaro
e imediatamente sairei com a resposta clássica
do vôo feérico da pomba da paz.
Direi, segurando a sua mão, caminhando pelo chão de terra,
que a liberdade é uma descoberta pessoal e solitária,
qual o pássaro branco de destino ignorado
que um dia passou pela minha infância.
A liberdade estava em mim nos tempos de inocência.
Direi que o entendimento de liberdade é um exercício,
universidade do auto-conhecimento,
evolução do caráter e do pensamento.
Coisa que Deus criou, que está em bicho e está na gente
semente querendo ser árvore.
Bendito sejam os nossos filhos, se forem presenteados com a verdadeira resposta.
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