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Contos-->famigerados trotes -- 29/01/2002 - 08:49 (gilberto luis lima barral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Famigerados trotes



Pode-se dizer de tudo sobre Genuíno, menos que não tenha razão em trazer encrustado em seu miolo o primeiro dia de escola, o dia dos famigerados trotes. Neste dia de sua aula inaugural já no caminho teve uma recepção quase fantasmagórica com uma velha mendiga toda ímpar em suas formas disformes desde a ossatura, cútis e pêlos. Estava deitada, gordíssima, não tinha os dentes superiores na frente da arcada. Vestia uma saia rodada de mata-borrão, enfeitada com lantejoulas e fitas gregas, de cor roxa bastante tomada pela fuligem na exposição direta ao tempo e uma blusa também de mesmo matiz embora, colada ao corpo suado, aparecesse na imundície em tonalidades de azul marinho. Ou ultramarinho. Tinha a velha mendiga o rosto muito maquiado com blushes, pó facial e batom, sem economias ou delineador. A cabeleira parecia um ninho de guaxo. Ela comia bananas esparramando festivamente cascas ao asfalto.

Genuíno, calouro e cheio de incertezas, causou-se-lhe enorme estrago quando, ao se assustar com a presença inusitada da comilona e de tal imundície, enfurecido pela tamanha sujeira intentou repreendê-la. Bastante amedrontado como convém a um novato emigrante ele ralhou com a velha sugerindo porém uma compostura atônita. A mendiga menos tola, acostumada às intrigas de rua, percebeu no jovem estudante o verdadeiro e simples medo e atirou excitada, frente à oferta do neófito, uma meia penca das frutas sobre ele e esta atingiu em cheio os famosos óculos fundos-de-garrafa que Genuíno trazia combinando com o que trajava. Ela não conhecia o amor dele pelos tais acessórios óticos.

Ele nem quis saber se a mulher era louca ou não, conforme os espectadores anunciaram, correndo em sua direção pronto a arrancar-lhe a desforra. O potencial defensivo de retaguarda da mendiga não era desconhecido da platéia pois várias vezes já se tinham divertido às custas dele. Não seria fácil o embate percebeu o adversário tão logo sentira o golpe da defesa. Se ela era louca ele concorria desde então ao melhor lugar no pódio da demência. Se arrepiara investindo mais outro golpe que foi defendido com um contragolpe fortíssimo novamente. Duas vezes ele tinha perdido a guerra quando passou a mão pelo chão e tomando de um boa pedra atirou-a sobre a velha gordíssima. Este arremesso inesperado abriu uma fenda no meio da testa da lutadora. Se esvaindo num chafariz intermitente de sangue a jorrar sobre o rosto e obstruir-lhe a visão ela partiu completamente destrambelhada para cima dele. Por misericórdia, pois se quisesse poderia já terminar o serviço, Genuíno deu-lhe um drible de corpo e saiu em disparada, ficara a luta de bom tamanho para ele na somatória. Mesmo sonso como era conseguira um único e certeiro golpe. Tinha vencido o combate.

Mas para a velha mendiga e sua platéia não, puseram-se ao seu encalço. Formou-se uma pequena multidão a correr sobre ele, algumas pedras atiradas vez ou outra o atingia. Sentindo medo de que tudo pudesse se tornar um linchamento imprimiu mais largura e velocidade em suas passadas. Ninguém o conhecia, era ninguém naquelas redondezas num bairro tão distante do seu já quase no fim do mundo. O negócio parecendo a um pesadelo com o diferencial de que ali não se conseguia por si somente parar o evento. Tinha apenas que correr mais rápido. Isso era a sua salvação. O contrário, naquela paisagem tão inóspita, seria a danação, morte na certa. Ele não tinha saído de casa para morrer de modo tão atroz e recôndito. Numa resistência última conseguiu ganhar distância, no jogo de semáforos do cruzamento asfaltado da longa e movimentada avenida que veio lhe acudir, escutando apenas a mendiga louca gritar-lhe que não lhe escaparia.

Somente quando alcançou as redondezas da escola se viu numa posição segura . O coração ainda pela boca quedava seu movimento para andante. Até enfiaria uma das mãos num dos bolsos da calça se já tivesse perdido o hábito com os jeans, o que não era o caso. E nem o tempo pois seu recente e mal formado sossego foi quebrado por quatro jovens que vinham de dentro de um matagal arrastando um aluno, certamente calouro, pelas pernas das calças que já estava aos joelhos. As costas do jovem desprotegida de camisas estava aberta em talhos tal qual terras preparadas para o cultivo. A cabeleira trazia um corte todo picotado por tesouras e giletes mais parecendo que se arrancado à mão, aos tufos. O jovem aos frangalhos obviamente não possuía mais sentidos para gritar ou se debater. Genuíno não podia acreditar no que via. Então aquilo lhe esperava? Aquilo seria um trote! Teve medo, quer dizer mais um, pois já vivia com muitos. Criado como fora numa cidade do interior, numa província seus modos eram outros. Não era ingênuo sabia pela t.v. e outros canais de muita coisa odiosa mas não sabia que o terror tinha se espalhado tanto. Poderia ligar para o pai e pedir para voltar. A mãe certamente o gostaria de volta.

Mas enfim aquilo não era com ele e positivamente tratou de continuar no seu caminho, mas não no mesmo trajeto. Atravessou as alamedas de um lado a outro. Na imensidão dos pátio seu corpo surgia visivelmente insignificante e mutável nas passadas que o conduzia na travessia do largo. No meio do caminho uma pedra. Parou para apanhá-la e transferi-la para um local mais à margem da passagem. De onde estava podia ver ao longe, bem ao longe mesmo, o prédio de sua faculdade que ostentava acima do beiral da fachada num pequeno mastro a bandeira da universidade. A sirene sou como se dentro do seu ouvido apontando-o em passo, nesse instante, de ritmo acelerado. Alunos faziam algazarras nos corredores, se apertando uns em outros. Quando atingiu o pátio para a portaria um mar de ovos podres, tintas, tufos de cabelos e outros adereços fazia barricada ao seu avanço. Garrafões de vinhos cheios e esvaziados compunham um amálgama junto às frutas pisadas e esmagadas. Vômitos, quase todos de um mesmo tom devido ao vinho, espraiados pelo chão expiravam borrifadas de azedos aromas na “doce” cena juvenil. Acreditem, mesmo uma cena rotineira dessas Genuíno nunca tinha vivenciado. Por um momento ele vislumbrou a possibilidade recorrente de voltar para casa. Não o fez e sabia, aliás, que no caminho de volta havia a encrenca com a mendiga. Centenas de alunos esparramados no tapete aquoso viram o horror nos seus olhos e perceberam a mais pura flor de virgindade e pureza chegando para a festa: um calouro.

O rosto de Genuíno trazia ainda aquele rubor adocicado ateniense. Para ele dar um trote tinha um sentido de brinquedo. Estudara em colégios provincianos arte, poesia, filosofia e matemática gregas. Seus professores estudaram as mesmas matérias e conteúdos. Seus colegas inimigos pareciam vir da tradição de Roma, dos espetáculos dos príncipes sanguinários e exigentes: “onde as mulheres envolvem os seios com serpentes e sonham com entregar-se a touros divinizados”.

Na tentativa de fuga seu corpo foi à baila com cadernos e tudo declinando seu império grego e vindo ainda Roma inteira avançado gloriosa em seu encalço. Tentava se levantar mas a cada tentativa mais se desequilibrava e obtinha menos resultados naquela superfície escorregadia e fedorenta, com isto perdia energias. Num instante suas pernas foram agarradas e o movimento contrário de repuxo fê-lo ir com o queixo direto ao piso. Além do choque, propriamente dito que lhe arrancou uma parte da língua e três ou quatro dentes, sorveu, no tombo, como que um anestésico em dose cavalar do grosso caldo espalhado pelo chão. A aula inaugural! Bem que podia ter voltado mas precisava enfrentar aquela prova na sua carreira de estudante. Todos que escolhem esse caminho tem que atravessá-lo. Pensou, se é que conseguia pensar, em voltar mas ao virar o corpo para a fuga seus olhos deram de frente com uma garota gordíssima envolta num vestido hippie, toda imunda lembrando a velha mendiga que prometera-lhe uma revanche. Não queria mais nenhuma confusão, não podia voltar. Tinha como saída então o portão dos fundos do campus universitário , que passava por dentro de todo o prédio da faculdade onde estudaria e por muitos colegas inimigos veteranos insaciáveis que ali o aguardava. Foi em frente.

Mas demorou pelo menos dez minutos nos primeiros metros para sair daquela lama. Resistia como os melhores poldros das fazendas de seus conterrâneos aos ataques e flauteios dos troteadores. Depois, talvez já por estar ungido do santo batismo, foi-se se apercebendo que a malemolência e o deixar levar-se afugentava vagarosamente do seu corpo muitas mãos pegajosas. Quando se viu preso por apenas um só veterano levou a cabeça deste três ou trinta vezes ao chão - já no quarto ou quinto baque o som se propagava oco - conseguindo meios de se livrar, dessa primeira prova, e correr com a dor desesperada dos ferimentos a servir-lhe de combustível. Tomou a rampa de acesso aos corredores necessários para a fuga, muitos alunos estavam desmaiados de tanta farra naquele lugar, mas ouvia-se vozes esganiçadas misturadas à gargalhadas e vultos de pequenos bandos indo e voltando entre cômodos. Quando contornava um segundo corredor, muito mal iluminado, algumas garotas caíram sobre ele num arroubo alcatéico entre desejo e luxuria. Todas muito bêbadas, destroçadas, e vorazes. Traziam nos olhos profundas olheiras e nos dentes um bruxismo sem fim. Imobilizando-o jogaram-no sobre uma mesa de uma das salas, colocando-o em pêlo. Mas imensamente assustado tudo nele se imobilizara, tornara-se imprestável para os propósitos das garotas de sorte que o jogaram do terceiro andar da sala onde se encontravam.

A sorte de Genuíno é que ele tendo caído de pouca altura o baque na cabeça não fora fatal. Assim ele ficou apenas com uma lesão cerebral que atrapalhou-lhe os estudos e a vida, o restante do corpo e do seu destino continuou, no entanto, como antes. Com seus dois braços, duas pernas, barriga e tudo que nossos corpos têm. A cabeça é que funciona desde então apenas remoendo trote, trote, trote, mas isso não incomoda muito pois poucos vêm até sua pessoa deixando-o isolado pelos cantos da escola. E mesmo ele somente se dirige a uma pessoa nas noites de calouradas quando então encontrando um novato o conduz com sua singular doçura para os mais recônditos e escuros labirintos daquele vasto campus onde a dor e morte lhe iluminam a alma.












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