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Contos-->golpes da fome -- 29/01/2002 - 08:45 (gilberto luis lima barral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Golpes da fome

O dia não sorri para todos no mesmo lugar num mesmo espaço de tempo. Risos acontecem pipocando aqui e ali, mas nosso tempo farta-se num vale de lágrimas. Uma carteira de dinheiro surge aberta com um desses risos fáceis na frente de Solano logo ao amanhecer do dia mais pobre de sua vida mas, muito envoltos seus miolos numa desfeita acontecida na noite anterior, nem o chiste de passar a mão na grana lhes acometem. Na verdade ocorreu-lhe em pensamento, alguns segundos após a visão da carteira recheada de notas, não o tom da pelica negra desse objeto, mas o róseo de cédulas de dez. Esse matiz ficou ilustrando o deslize de seus ímpetos pilantrísticos por muito tempo. Não podia ser de outro modo entretanto, pois vinha mesmo com a boca a espumar de cólera das lembranças da espinafrada que levara de um idiota, em que tentara passar a perna, na noite anterior e antes em pensar em algum roubo ou dinheiro tinha em mente a vingança da desfeita. Fora um desaforo. Precisava se vingar. Dos variados modelos de vingança a lhe martelar as idéias nenhum, no entanto, ele conseguia escolher como o mais certo para o caso. Assim permanecia encanado. Fazer o quê?, estocar o sujeito na altura do umbigo e mostrar-lhe um sorriso cínico ou pendurá-lo em alturas com fracas amarras? Não, outras torturas! Uma que pegando o idiota de chofre depois de uma curva seja uma demonstração da capacidade de surpreender a vítima por parte do vingador. E que num segundo momento imobilize as possíveis reações. Depois humilhe o desaforado mostrando-lhe seu lugar no palco dos acontecimentos. E que por fim apresente o corredor irreversível para a morte, óbvio uma morte lentíssima com lamúrias tão profundas quanto inócuas e promovidas ao gosto de um espectador único: o vingador, nesse caso, Solano.

Mas dinheiro é dinheiro e nada justificaria mesmo não ter passado a mão pela carteira de pelica no encontro matinal tão singular e convidativo que não requisitava inclusive nenhum esforço hercúleo ou profissional. Não era dinheiro para matar a fome, pois não se sentia nada além de cólera. A boca espumando não aceitaria alimentos. Dinheiro apenas para esquentar o bolso e dar mais personalidade e charme. Queria mesmo era a vingança contra o idiota da noite anterior.

Muitíssimo perturbado atravessa a rua em direção à marquise. Umas vitrines resplandecem ao sol suas mercadorias mal facetadas. O que lhe falta em dinheiro sobra-lhe em desejo de vingança. É preciso urgentemente encontrar aquele idiota e corrigir a desfeita. Um movimento no fundo de uma loja faz-lhe voltar um pouco no caminho, nada que o interesse, depois segue acabrunhado. Vê cartazes nos postes. Placas por todos os lados, panfletagem, papeis, embalagens, sua cidade é imunda. Sua atenção se concentra naquele quarteirão da rua. Também não pode fazer grandes planos ou locomoções, nem existe dinheiro em seus bolsos. Tem que ficar por aquelas imediações mesmo e ali certamente encontraria o procurado e consumaria a vingança. Não se decidira ainda de qual estratégia se utilizar, mas não ficaria para amanhã.

Dez horas, a calçada esta tomada de transeuntes. O sistema de caixa-eletrônico dos bancos reduz as filas dentro das agências, o fast-food põe os clientes a fazer a digestão nas ruas, os caixas-rápidos dos supermercados fazendo os consumidores esvaziarem gôndolas e se mandarem para outros afazeres. No turbilhão formado nas calçadas furtos, assaltos acontecem constantes e quase invisíveis. Um homem de camisa aberta no peito passa exibindo seu grosso cordão de ouro com pingente de crucifixo. Ele arrebenta um outro cordão de ouro de uma senhorita que vem em sua direção, mas ela não vê o rosto do criminoso. Fica-lhe a marca das unhas sujas e grosseiras do bandido, vai-se a pequena jóia. Ninguém percebe, mas Solano estando ali o tempo todo tudo vê, é um parceiro seu das ruas, tem os dedos por demais ágeis. O idiota desaforado ainda não chega. É uma multidão. Muitos entram em lanchonetes comem pasteis com caldo de cana. Na farmácia tomam sais, bicarbonatos e estoques de hormônios. Adquirem qualquer coisa no comércio e seguem incólumes e vexados nos meios de locomoção. Às vezes, na catraca diante do bilheteiro, percebem-se lisos, com os fundos dos bolsos recortados ou não, mas vazios. É meio-dia. Solano vai à esquina e volta, novamente nada de sua vítima. Será que ela não viria hoje? Esse rumor o ruboresce e estremece as bases de sua vingança, mas sua boca continua a espumar cólera e isso protege-o da fome. Bem alimentado, no entanto, encontraria mais forças para qualquer ardil. Vai que seja preciso a utilização de um golpe mais grosseiro ou estapafúrdio. Enquanto muitos dirigem seus desejos para um almoço ele dirige os seus para a vingança. Fora ferido na honra. Fosse outra pessoa qualquer e a desfeita não teria se recalcado, mas justamente aquele idiota?! “É preciso tomar uma atitude”.

A fome começa a lhe apertar, ainda nem fizera o desjejum, e as tripas quando mal tratadas se comportam pessimamente. De início a fome traz uma água azeda na boca, depois um escurecer nas vistas. Passada essa fase inicial se nenhum alimento cai no fundo do bucho logo vêm ânsias de vômito, depois uma cólica da profundidade do amor de Romeu por Julieta. Mas Solano prometera a si mesmo comida somente para depois do encontro com o idiota e o reparo da desfeita. Sem perceber masca todo o palito trazido no canto da boca. Acende um cigarro então e substitui o palito devorado por um cheirando à pólvora. Também sem perceber já são quatorze horas e os restaurantes estão terminando o horário do almoço. Com a honra ofendida esta firme nos seus propósitos. A insipidez da pólvora na língua avisa-o que devorara outro palito. Essa dieta sustenta-o sobre suas finas pernas. O parceiro das ruas volta com o bigodinho sujo de caldo do frango. A refeição lhe corara as faces. Além do que conseguira pela manhã já alguma golpe. Solano ainda possuído pela idéia de vingança vendo o parceiro assim tão bem apanhado logo é acometido da inveja. E no espelho dos óculos ray-ban de um transeunte viu-se claramente magricela, com os olhos mais fundos que de costume. Precisava comer.

Deixando a questão da honra para depois vai ao “sindicato”, procurar alguns trocados emprestado, mas nenhum dos parceiros pode lhe adiantar nada. Um deles oferece-lhe sociedade num assalto com motocicleta, mas ele não tem um capacete que seria sua parte de capital social inicial. Era mesmo o dia mais pobre de sua vida. Volta para a rua, sob a mesma marquise de antes. Como fossem já dezessete horas, apesar da fome estar aumentando, sente um fio de alegria ao pensar na possibilidade de, naquele horário, encontrar o idiota da noite anterior. Se aparecesse daria o troco da desfeita e ainda lhe retiraria algum valor. O dobro do que teria arrancado na noite anterior. Depois sim faria uma farta refeição. Um jantar numa cantina qualquer. Comeria peixe cozido com arroz, bastante azeite e vinho. Talvez uma traíra sem espinhas com salada de alface, arroz e para beber cerveja. Uma água azeda subiu-lhe esôfago acima fazendo-o engolir uma saliva amarga. Suas vistas escurecem. Com a fome já esquecia a vingança novamente e uma idéia nova e súbita de que no escurecer das vistas o idiota pudesse ter passado desapercebido foi-lhe o suficiente para mudar seus pensamentos e pensar positivamente em resolver o problema da fome. Esse problema estava diretamente relacionado a um outro maior, qual seja o do golpe do dia para conseguir o da comida. As luzes nos postes e letreiros luminosos, já sendo acesas, denunciam para dentro em pouco o esvaziamento das ruas, portanto menores possibilidades de furtos. Era agora ou nunca.

A salvação vem exatamente no esvaziar da cidade, no momento de morte do trabalho, na forma de um senhor de aparentes setenta anos. Ele veste um paletó largo,, com bolsos propiciamente recortados para um rápido desvio. Bolsos rasos, anatomicamente perfeitos. Solano quase sorri, mas se apruma para acompanhar a vítima. O golpe será dentro do lotação. É preciso um jornal, ele consegue um. O senhor pára sob uma guarita a espera de seu ônibus conforme o imaginado. Já dentro do veículo, com o senhor sentado em sua poltrona preferencial, Solano, em pé, abre o jornal simulando uma leitura. O jornal aberto numa página inteira à altura do rosto do senhor, com o vento a soprar da janela incomoda-o, o bolso do paletó é revirado, mas o incômodo é mesmo a droga do jornal no olho, no nariz, na boca. Antes que o senhor comece a reclamar o leitor já dobra o jornal, retira uma nota, paga ao cobrador e passa pela catraca, esta feito. Desce no próximo ponto. Agora é matar a fome.

A vinte e quatro horas sem comer Solano sabe que não pode ir ingerindo qualquer coisa. Não pode ser assim uma refeição pesada. Tem que ir aos poucos. Pensa então num pequeno salgado ou sandwich. Olha numa vitrine uma porção de pequenos alimentos. A imagem deles lhe traz certa náusea. Experimenta alguma coisa, logo vomita-a. Vem uma cólica profunda. É preciso esperar um pouco, agora não conseguiria comer. Enquanto espera volta à marquise para vigiar a passagem do idiota, pois lhe ocorre que na noite anterior encontrara-o exatamente nesse horário. Mas esta fraco e titubeante, as idéias confusas. Pensa então em beber alguma coisa. Leite. Ao contato dessa substância com seus intestinos estes se desarranjam completamente. Solano corre em busca de um banheiro em um bar qualquer mas, quando alcança um, sua cueca já esta toda melada. Depois vem uma empolação, parece o fim. Vomita do branco do leite a um caldo escuríssimo. Esta horrível, cambaleando encontra uma torneira, passa água pelo rosto e cabelo, sorve uma golada enorme acreditando com isso limpar o estômago. A água, ao tocar o fundo de seu bucho vazio, faz um buraco. Ele se contorce, no apertado daquele cômodo, geme. Uma cólica sem precedentes lhe acomete, turvado em dores perde o jogo das pernas, cai, bate com a cabeça na rigidez do vaso sanitário. Quando o socorro vem já não há o que fazer ou reparar. Solano e pego com os fundilhos ensopados de merda, num fedor horrível. O dinheiro que havia conseguido, nos bolsos do paletó do homem no ônibus, fora roubado por algum outro larapio que o encontrara naquele estado deselegante. Entre os parceiros perderia definitivamente todo o credito e honra. Já não seria homem para corrigir nem mesma a antiga desfeita. O idiota que lhe ofendera se livrara, sem o saber, de alguma possível vingança. Nunca mais Solano viveria satisfeito.































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