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cronicas-->Heleno -- 01/11/2001 - 11:29 (Luís Augusto Marcelino) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Heleno chegou aqui em 1977. Hospedou-se na casa de um tio, ainda que a contragosto do anfitrião. Veio sem avisar. Trouxe uma mala grande, surrada, algumas roupas básicas - duas calças de tergal, três ou quatro camisas de tecido fino, meias, poucas meias, roupas de baixo, um sapato. Preto, sem brilho, de bico fino, de cadarço. Ele dizia que adorava aquele sapato. Tinha sido o primeiro que comprara com o suor do seu trabalho na roça. Comprou-o na feira de Caruaru. O tio impós-lhe a condição de só ficar se arranjasse emprego em um mês. No máximo. Seu Joaquim já passara da casa dos sessenta anos e fumava um cigarro de palha fedorento. Quando Heleno entrou no bar do meu pai pela primeira vez, acompanhado do tio, estranhei seu bigode, que era imenso, e o sorriso incompleto. Seu Joaquim se sentou no lugar de sempre, no fundo do boteco, perto da mesa de bilhar. Heleno foi em direção ao meu pai e pediu duas caninhas. Olhou-me. Enquanto papai se virou para servir as pingas, passou a mão sobre a minha cabeça.

- Tu sabe rodar pião, esse menino?

Respondi que não, balançando timidamente a cabeça. De fato, até àquela fase da vida, eu sabia fazer poucas coisas. Pra dizer a verdade, eu só gostava de colecionar figurinhas de super-heróis e de assistir desenhos animados. Passava horas em frente à velha ABC, preto-e-branco, acompanhando as aventuras do Speed Racer, torcendo pelo Ultraseven e me divertindo com o Pica-pau. De vez em quando me arriscava na bolinha de gude e no futebol. Mas sempre estive longe de ser um craque. Até hoje, confesso, sou meio avesso a essas coisas que exigem uma certa habilidade motora. Mesmo para dirigir, não sou um ás. Pelo contrário: sou um asno. Quando estou atrás do valente, vivo sendo xingado pelas barbeiragens que cometo. Então, aos oito anos de idade, eu não fazia idéia de como os garotos da rua conseguiam fazer aqueles malabarismos com a fieira e o pião. Heleno sorriu. Vixe, Maria! Escutou, tio? O menino não sabe rodar pião!... Aborreci-me com o bigodudo porque causa de seu deboche. Fiquei emburrado e corri para casa, a vasculhar o caixote de brinquedos, para encontrar meu velho pião de madeira. Encontrei-o adormecido bem no fundo, enrolado na fieira encardida de terra e de suor das mãos. Voltei ao bar. Esperei Heleno se virar para mim. Ensaiei soltar o pião. Não o fiz, porque ele se virou para responder algo para o Seu Joaquim. Pouco depois, ele concentrou o olhar na minha mão miúda. Levei o braço para trás, apertei o pião com força e atirei-o em direção ao piso de cimento irregular. Poft!! Foi parar na vidraça da balconete que meu pai tanto preservava. Um estrago só... Os fregueses caçoaram, e meu pai levou-me, pela orelha, para dentro de casa. Naquele dia odiei Heleno. Fdp, fdp! - eu repetia.

Ontem à tarde fui ao Centro, depois de muitos e muitos anos. O que fizeram com o Anhangabaú? Está tudo tão mudado, que quase me perdi. Tinha de estar no escritório do Dr. Amadeu às duas e meia. Contudo, mesmo sob o risco de me atrasar, não resisti e parei na São João para tomar um mate com leite. Não há nada mais delicioso do que o mate com leite da São João... Fazia um calor infernal. Um barulho infernal. Um movimento infernal. Cheguei à conclusão de que São Paulo é um inferno, ainda mais nesses quentes. O inferno é aqui! Afrouxei o nó da gravata. Eu nem precisava mais usar aquela incómoda gravata, para dizer a verdade. Não voltaria para o trabalho, e não sei por quê eu ainda usava aquela porcaria. Acho que é o hábito. Acho que é a maldita sensação de que estar engravatado confere maior respeito. Idiotice. Pura idiotice. Não sei bem ao certo se é idiotice. Às vezes parece que é; às vezes parece que não é. Saboreei minha bebida com calma. 2:35 e eu ainda estava distante do meu destino. Não costumo atrasar, mas ontem, não sei o que me deu, que não me importei. Fodam-se o advogado e a causa! - concluí. Estava meio cansado de chegar aos compromissos no horário certo e levar chá de cadeira. Ninguém respeita horário neste país, é uma praga! No final das contas o cretino só me atendeu às 4 horas. Porém, antes disso, no percurso entre a São João e a Marconi, em frente a uma tabacaria, um homem me chamou a atenção. Um homem com uns cinquenta e poucos anos, maltrapilho, barbudo, cabelos longos e ensebados. Reconheci-o . Era Heleno e seus olhos negros. Tinha certeza de que era ele. O mesmo Heleno que me transformara, após aquele nosso primeiro encontro, no mais habilidoso "rodador" de pião do bairro. Parei à sua frente. Eu queria abraçá-lo, mas não tive coragem. De seu corpo exalava um mau cheiro terrível. Não sei se era do cabelo, das roupas imundas ou da própria pele. O fato é que foi impossível me aproximar mais.

- Heleno?

Ele quase engoliu a bituca de cigarro. Olhou-me assustado, arredio. Abriu a boca imensa, ainda sem dentes, e balbuciou algo que não compreendi. De certo não me reconheceu.

- Sou eu, Heleno! Rodrigo, filho do Meneses, dono do bar da Vila Santa Cruz... não lembra?

Recolheu seu saco de estopa, apavorado, e foi saindo do lugar, de costas, apressadamente. Não entendi até agora o que aconteceu. Era mesmo Heleno? Se era, por que fugiu? Vergonha? Talvez não conseguiu mesmo me reconhecer. Ou quem sabe, me reconheceu e se lembrou de um tempo que quer esquecer. O tempo em que aprendi a rodar pião.
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