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Contos-->Aprendizes do Caminho -- 21/01/2002 - 23:43 (Leonardo de Oliveira Teixeira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Os aprendizes do caminho

Léo Teixeira

A terra ruiva e sedenta chora um mar de lágrimas secas, bebe sua própria sede nas nuvens que insistem em não cuspir a doce chuva, visitando a terra que outrora a abraçara saudosamente e a abrigara carinhosamente em seu bojo. O caminho na testa rachada da terra é único. Lustrosas sombras se fixam nas laterais, como uma maquiagem escura respingada pelas lágrimas da amarga e desesperada agonia. O sol já se abaixa envergonhado pelo seu atraso no encontro com a lua, que o segue incansavelmente. É a hora que o sol suspende seus tórridos braços para se enfiar no horizonte, pintando cores, que não conseguimos encontrar em qualquer aquarela, o tecido do céu ao seu redor, exibindo pitorescamente sua áurea iluminada como se carregasse um aquecido sorriso de bênçãos cumpridas. Começo pela selenografia: a lua cheia, várias vezes se cansava da brancura de suas formas, amarelando foscamente a inveja do atrasado sol; e a lua ainda mostrava o retrato da mãe que carrega a criança no colo; às vezes, bem no meio dela, extravasando a sensibilidade do seu núcleo, revezava a imagem do verso desta foto, que imprimia em suas brancas e amareladas terras a forma da mãe andando de mãos dadas com a criança, durante o mesmo único caminho que se vê aqui no chão. As nuvens engoliam em seus algodões a água que a umidade lhe cedia fraternalmente. Mas ainda não sei qual a razão de sua raiva por não remediar a secura esmagada e o calor do suor do nosso solo polvilhado! Seria egoísmo ou presunção demasiadamente ingênua não repartir a água retida e curar a chaga da terra? As árvores do quintal também choravam no balanço rítmico de suas copas, arejadas com o sopro gélido do vento, despedindo por mim de Maria, que seguia sozinha, única como o caminho, agora ainda mais escuro, iluminado só pela lua, consolando minhas lágrimas que escoavam por cima do parapeito liso e curioso da janela da velha casa. A cena se fechava como derradeira. A última vez que vi Maria, enquanto as sombras ainda não engoliam por inteiro as formas do seu corpo, que se afundava e diminuía no caminho da antiga estrada, ela estava de costas, sem olhar para trás sequer uma vez, orgulhosamente, me deixando na companhia da cínica solidão. E não foi um pesadelo ladrão que me tirou Maria. A nascença natural já havia planejado rumores de indisciplina em seu pequeno coração. Como era bela! Apesar de os ventos da maturidade já lhe arranhassem o rosto delicado há um bom tempo, puxando seus belos olhos castanhos e melados de imensidão, agarrando as beiradas, deixando como pistas, as garras das patas das rugas, marcando suave e eternamente sua lisa e clara pele. Os mesmos ventos que intumesceram seu ventre inocente, quando ainda mal acabara de largar a barra da saia materna. Maria carregava um ar indígena de selvagem, indomesticável, que respirava pequenas aventuras nômades em suas pernas pintadas de azul do céu e verde dos lagartos as varizes nas suas coxas. Agora, já na distância que não se pode ver, queria possuir o porte do falcão para localizá-la e, com as afiadas unhas, trazê-la de volta ao ninho. Todavia, um par de roupas e uma fotografia colorida em preto e branco ainda ficaram esquecidos como um fato feito, antigo, sem importância qualquer, idêntico a um profeta ancião que nunca acerta a profecia, como um perdão divino, como uma briga de irmãos, como o documento de um andarilho, tal qual o defunto sem parentes, igual à memória do povo humilde, do mesmo jeito de um texto sem vírgulas, bem como um velho esquecido no asilo, ou uma criança perdida no orfanato. Maria não suportava dificuldades, e o clima árduo de nossa tapera pesava os sofrimentos que passávamos, inclusive com a falta de alimentos, sem recursos para nos sustentar, depois que o fogo se passou por rei momentâneo do nosso império rural.
A fome invadia a alma, pungentemente, revirava o físico, exalando dores azedas, execrando um estado de demência, que sempre jorra reclamações convulsivas, recatadas de martírios fardosos, que machucam sem agredir, enxergando sem ver exatamente o cume da resistência. Maria já não suportava meu desleixo. De barbas malfeitas, roupas sujas e rasgadas, eu, cinzento, não conseguia vender as frutas e verduras da plantação. A terra rachada é a assassina das hortaliças. O sol cuspia fogo no capim amargo e ralo do pasto. O fogo amarelo, em sua algazarra, festejava sua bravura, ardia a pele das matas, que choravam uma seiva profunda e cristalizada de sentir dó. O mato fúnebre da colina expulsava os animais silvestres aos gritos do estalar das madeiras em brasa. As matas virgens imploravam pela vida, ainda esperançosas, mal sabiam da sina que as aguardava. Ledo e infeliz engano. O bafo quente do fogo esculpia formas avulsas no céu, levantava pontos luminosos, farelos das ripas em chamas; almas das plantas se despediam em grupo na subida, traçando a última formação, tal qual um coletivo de vaga-lumes tristes que desligavam suas lanternas estomacais. Tremia a imagem na vasta distância, desapareciam vidas cultivadas pelos anos, filhos do tempo; o fogo atroz e soberano cantava o coro dos choros, castigava os descendentes das vidas, fraturava as barreiras, pulava o aceiro, bailava provocante à beira dos córregos, sufocava o céu e engolia o ar, evacuava cinzas e cobria de uma áspera fuligem o solo indefeso, como um manto, formando os detritos (Que dejeção! Que crueldade!), legando labaredas cintilantes aos restolhos do passado, formando o pó destruído que percorria o caminho. Inutilmente, eu tentava detê-lo. Maria, inerte e desatinada, mostrava-se inapta, não importando que a terra, que tanto bem nos servia, tornasse devoluta. Eu bradava e lutava contra o tempo, pulava o profundo e escuro poço, à procura de uma luz de água para acalmar meu balde, saltava o calor das labaredas, abafava o tumor das cinzas, corria em desespero e clamava por ajuda. Maria não se arriscava, transtornada com a falta do antigo prazer, acostumada com a facilidade das coisas, permanecia imóvel e sólida. Caí de joelhos no chão, no meio do espaço vazio e cinzento, numa languidez fúnebre; desistia do impossível, com naturalidade, após superar todos os limites do meu corpo franzino, estava triste e cansado, pronto para morrer pela terra, esperando paciente como quem já sabe o destino, como se a imagem trêmula em minha frente fosse a morte, esperando a confirmação fatal para dar o último e único beijo salgado. Já imaginava como seria o outro lado, onde finalmente descobriria se voltaria um dia, ou esperaria pelo dia do julgamento. Já visualizava o túnel escuro e intricado pelo qual todos passariam, atraídos pela luz do seu fim, indicando a saída. Aonde vou? Qual é a continuação da vida? Não poderia ser somente a morte medíocre! Fim da carne, fim de tudo! Deve haver algo mais atraente e misterioso, caso contrário, a fé cega não teria sentido algum. Nada me importava. Fechei os olhos incrédulos e sofistas na minha crendice. A morte da vida seria o nascimento da morte. Uma camada de descrença percorria a névoa áspera do duradouro fogo. O niilismo me cumprimentava com um sarcasmo roxo, debochando do que a nação egoísta e individual do meu coração acreditava. Por aí fui percebendo a fumaça, começando a me asfixiar. Fechei meus olhos e pude ver o rosto úmido e covarde de Maria. Agora só escutava: o fogo ainda rufava o barulho dos tambores primitivos e comemorava, numa malícia ardente e febril, minha derrota plausível. Milagrosamente olhei para o céu nublado, que me correspondia fraternalmente com dó inerente aos desprotegidos, um carinho merecedor dos plantadores, a alegria viva de um fruto maduro colhido no alvorecer suado do orvalho, elogiando o meu esforço quase inútil e insignificante, reconhecendo minha insólita luta, à margem de um abismo de derrotas, sem insistir em uma chance, embora torcesse por bons resultados, acreditando na minha guerra, e, apesar de não entupir de orgulho, também não fiz o óbvio, perante a árdua derrota nos momentos de aflição: rogar a Deus e pedir ajuda. Observei um corisco que escapava de uma nuvem passageira, rajando duas lâmpadas dentro dos meus olhos lacrimejantes. O céu convalesceu em prantos, chorou a saudade sedenta da terra que eu pisava, limpando meu suado corpo, sugando o caldo para o chão, encolhendo as almas enfurecidas das chamas, recolhendo seus ódios e suas tétricas brincadeiras. Levantei-me pelo sorriso e chorei de alegria, comemorando sozinho, no meio das trevas, a saliva doce e fria, metralhada pelas dádivas do misterioso céu, caída como cachoeira torrencial. Foi pelo perigo da morte, que beliscava as beiradas do pão da minha vida, que entendi que a vida não é só uma existência passageira, mas não perdura no tempo durante o atravessar calmo da eternidade mais infinita e redundante. Por isso é que se deve valorizá-la ao máximo, não importando o tempo que se vive, mas sim o modo dos passos que percorrem este caminho da testa da terra. A maneira que se conduz o passo não mostra a beleza de uma dança alegre em pistas iluminadas, mas a verdadeira beldade é a capacidade do inesperado e insistente pé dançante, que ultrapassa pântanos arenosos, sem queixar-se do óbice, sem chutar no coice de quem maltrata, sem invocar a fúria imprestável de quem nos irrita, sem devolver o troco, na mesma moeda, a quem nos paga mal. Agora a música era minha. Era minha vez de dançar laudatoriamente as travessuras benéficas e aguardar a reconstituição pacífica da natureza, ajudando no que for possível, agradecendo a bênção gelada que se via.
A neblina enfumaçada já havia ido embora, e com ela se foi Maria, impaciente. Não soube esperar o tempo que o caminho lhe pedia, não quis suportar a falta de alimentos que o fogo roubara. Eu tentei segurá-la, mas ninguém podia. Tentei explicar o meu aprendizado, mas ela nem se importava. Inspirado como um jogral, declamava dogmas incontestáveis, aconselhando a sua querida permanência ao meu lado, mas ela achava que tudo fosse uma insídia, e nem ligava. Eu dizia que o importante é ser persistente quando nos for preciso, ser amável quando estamos sendo odiados, ser paciente quando passamos por dificuldades e raivas, o insigne é ser bom, quando tudo o que nos cerca é ruim, mas ela usava uma armadura do incrédulo e só seguia os passos das ferraduras dos seus pés. Com uma peneira no ouvido, ela escutava só o que queria e entendia só o que já era conhecido. A insígnia dos cegos seguia a carapaça da minha bela Maria. Eu tentei mostrar a contradição do mundo: eu disse que para reconhecer o valor supremo da cômoda facilidade, há que passar pelo aprendizado das dificuldades; eu disse que se aprende muito mais com o erro do que com o acerto, e o melhor aprendizado nasce no aproveitamento do erro dos outros, sendo mais prudente usufruir do amor e da percepção, do que da raiva e da decepção tardia; eu disse que é melhor sofrer tentando do que morrer inerte, esperando por um milagre; eu tentei expressar que só reconhece e valoriza o carinho e o amor quem já sabe o que é a dor e o ódio; eu falei que para ser reconhecido é necessário almejar a humildade do ignorado; a verdadeira paciência só se mostra em momentos de nervosismo; eu mostrei a frustrante visão do mundo por entrar em guerra para se manter a paz, eu apontei vários erros que se têm por vantagens, tal como o malandro que engana o inocente ingênuo e se acha digno de receber uma coroa, pois “o mundo é dos espertos”; eu mostrei que uma solução ou uma alternativa só é buscada quando se tem um problema; eu exemplifiquei que há pessoas que vivem já estando mortas, outras morrem sem ter possuído uma vida; uns já nascem recebendo um dom, mas são os esforçados que superam melhor, na comparação, destacando-se dos que possuem as dádivas; eu explanei que os mais ricos em dinheiro e outros lucros materiais, muitas vezes, são os mais pobres de espírito; que a maior riqueza é a saúde e a bondade, e a sanidade só é comemorada quando se recupera uma enfermidade, e a doença ajuda a valorizar a saúde; que nem sempre os bons tiveram que passar pelas ruínas obscuras do mau, e o melhor é reconhecer sem ter que passar pelo caminho torto e decepcionado da dor; eu confirmei a tese de que quem mais reclama do aprendizado é quem menos procurou e se dedicou no estudo, assim como o estudante revoltado com as dificuldades dos livros, que nem sequer foram abertos; eu indiquei que a verdade muitas vezes é pior do que uma mentira, assim como o pai que revela a falsa magia do papai-noel para uma criança encantada com o mundo de fantasias, onde vive e depende de seu feitiço; eu mostrei que a luz mais forte não depende do grau de luz que se dispõe, mas da quantidade de escuro que o ambiente se manifesta; eu supliquei o entendimento de que a força da razão é muito maior que a razão da força; eu comprovei que é mais fácil se lembrar do que não é importante, tal qual uma publicidade boba, ou uma música com trechos repetitivos; eu implorei para que ela entendesse que a beleza melhor não era a física das carnes, que o tempo e a gravidade sempre se encarregam de afetar; eu mostrei que a atração pode não ser premeditada, que o amor pode nascer do nada, que uma paixão muitas vezes não é escolhida, e provei que muita coisa acontece ao acaso, sem que a mão rígida do destino solte o pó de influências, inclusive o destino, de tão insano e dependente que é, muda constantemente, conforme os fatos, outras vezes nem sequer conclui – como um menino de rua que se torna um líder de ricos intelectuais, ou uma pessoa que vive em altos e baixos, de acordo com os fatos de sua ganância ou harmoniosa vontade humilde –; eu não disse que o melhor riso é o mais alegre, muitas vezes é o mais cínico; eu não disse que o meu riso é sincero, que o meu amor é eterno, que minha vontade é suprema, que meu desejo é único, mas, mesmo calado, posso mostrar, em um único olhar, daqueles que fixam no outro olhar, o que realmente pretendo, as virtudes singelas que realmente me integram, sem fingir que possuo, pois um olhar pode valer mais que infinitas palavras; um texto pode dizer muito menos que suas entrelinhas ou reticências; eu disse a Maria que a colheita é sempre futura, que nenhum projeto se faz ao passado, que o único valor vivo que já morreu é o da história dos altos corredores dos museus; que se planta no presente o fruto suculento de um futuro, mas o fruto pode não vingar, tanto que a certeza mais incerta é a mais sensata, mas a indecisão pode corroer o tempo; o heroísmo é reconhecer os próprios erros e superar os medos, e não apontar as falhas dos outros, numa audácia cega, surda e linguaruda; que por certos males dos filhos são mais responsáveis os pais, que lhes deram a educação desde o ventre materno; que algumas educações de berço nada adiantam, a não ser a esperança mais insistente, de um dia o véu dos olhos caírem ao solo; que nada é seguro, nenhum ato garante seu vigor, nenhuma garantia é sólida, até por ser futura; eu disse que um tapa não pode ser devolvido com um murro, notando a inferioridade ou em pé de igualdade com o agressor; o aroma mais agradável não precisa ser demasiado, mas sutil; que a luta pode ser feita de derrotas; aliás, a luta pode se ganhar pelas derrotas, e a vitória pode ser derrotada pela luta, mas a derrota pode ser a melhor vitória, tanto como a vitória pode ser a melhor derrota, durante a incansável luta; eu disse, ainda confuso e desnorteado pela minha filosofia, que a desistência é a pior derrota, só que a persistência nem sempre é a melhor vitória; o silêncio podia tanto falar mais alto, para que Maria, ainda surda e confinada em perplexidade, me ouvisse.
Agora já não podia se ver nem o reflexo dos contornos de Maria, nem mesmo a sombra, já que o breu havia se encarregado de engolir totalmente o negrume das sombras. Também sinto a falta da nossa filha que foi levada, ainda pequena por ela. Demorei a dar conta de que elas não estavam mais sob a custódia do meu carinho, não estavam mais dentro do meu abraço, não estavam mais debaixo do meu queixo seguro, não estavam mais atrás do meu escudo vigilante. O tempo passou mais rápido que as onças selvagens da colina. Os anos se foram, mas o caminho ainda permanece lívido como o entardecer do azul celeste. Não fico acostumado com o ermo de um eremita. Ainda vejo Maria chegando pelo caminho, que aprendi a seguir e obedecer, fidedigno nos meus sonhos. A longanimidade de um caráter aprendiz me diz que é necessário amar nas distâncias e preparar minha companheira para ser uma pessoa melhor para outra, mas, egoísta, discordo friamente desta posição. Como queria tê-la, beijá-la e acariciá-la. O plantio já se rejuvenescia, mas ainda precisava de cuidados. Verduras e frutas não faltavam mais, frutos de minha luta. Tentei segurar um alazão selvagem, imprevisível, trovador dos mistérios sensíveis que eu poetizava. E a miragem de Maria permanecia, chegando pelo caminho. Já era noite na janela, só a lua era a mesma, onde se via a imagem da mãe segurando a criança, andando no caminho iluminado, em cores brancas, um tanto quanto amareladas. Mas ela se foi, levando nossa filha – as mulheres da minha vida. A imagem aumentava. Comecei a temer alucinações fantasmagóricas. O caminho repetia a fotografia da lua. As duas mães de mãos dadas com as filhas. Uma bem longe, outra no chão molhado de sombras. Cada vez mais, a imagem aproximava, passo a passo, me tocando a face, puxando minhas sobrancelhas grossas, igual Maria fazia, para se desculpar dos seus orgulhos soberbos, ou para iniciar nosso abraço. Não acreditei que realmente fosse vê-la novamente. Pulei a janela e quase as esmaguei com meus braços finos de urso. Comemorações vieram, em meio a choros tristes e aprendizados alegres, durante o caminho. O caminho realmente é aprendiz, nem sempre se vai ao fim, muitas vezes, o melhor final é o próprio começo; muitas vezes se anda mais quando se está parado, e nem tudo que está perdido se perde, como um bumerangue distante. A noite foi o melhor dia de todos. Deitei-me no velho colchão sustentado por um jirau resistente, beijei os gomos dos lábios dela como se sugasse dali a melhor saliva das polpas frutíferas. Meus cílios longos tocaram seus cílios, tal como o apalpar dos artesãos em suas obras. Estiquei meus lábios até a sua macia e rosácea língua, mostrando o aconchego dos meus braços; e o calor das minhas mãos percorriam as curvas de sua pele lisa e descabelada. Filmei na memória a cena íntima do delicioso momento e imaginei o enredo de vocábulos em epizeuxe: Maria, Maria, doce Maria, que alisava, brincava e paparicava o meu pando peito pojado, pelado e repleto de pêlos pretos, que pareciam as plantas dos pampas – eram a panacéia para curar a pandemia da sede do seu pudor –, que sensação! E que sensação! Ela mergulhou nos encantos do meu sonho, molhou no caldo do nosso fluxo, afundou no calor do meu corpo, provou o néctar do meu êxtase, sentiu o eflúvio dos suores calmos, se tornou a egéria da minha vida! Maria, Maria, minha Maria, querida Maria. Nossos cabelos se confundiram num entrelaçar dos novelos, num passar dos cometas, mostrando que a noite ainda nem havia começado. Ela abriu os olhos – os meus já estavam abertos, quase não acreditando em sua volta – ouvi as estrelas dos seus olhos dizerem que ela iria seguir comigo, aonde quer que eu fosse, com uma ternura dos francos; e um colírio caiu em meus olhos, acreditando ser, aquela noite, o começo de um ponto de partida. Depois que ela dormiu, eu trouxe nossa filha, que estava no outro quarto, já mole como o mel em sono, para dormir entre nós dois. Fiquei olhando e sorrindo para as duas, disfarçadamente. Talvez não há como se parar uma chuva que cai, nem os raios do sol, ou o sopro dos ventos. É bem provável que o caminho ensine um trajeto diferente a cada descoberta. O caminho é um rio cheio de afluentes, que se infiltram sem sentir a dureza das rochas. Talvez o destino viva a respirar em sono manso, ou então o acaso corra atrás dos fatos. Às vezes, olhando a lua em seu retrato rústico, lembro de Maria e nossa filha, e penso que o envelhecer pode melhorar os corpos das mentes, as alegrias dos corações, o acertar dos erros, as escolhas aleatórias já acertadas ou não. Hoje o caminho não é nosso aprendiz, no entanto, seguimos e apuramos suas dicas, acreditamos nos seus contornos e aprendemos com seus ensinamentos.


Léo Teixeira
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