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Artigos-->violência e práticas lúdicas como formas de enfrentamento... -- 24/08/2004 - 10:56 (gilberto luis lima barral) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Violência e práticas lúdicas como formas de enfrentamento dos conflitos sociais.



Diversas políticas públicas, correntes pedagógicas, instituições sociais e ONGs têm relacionado o combate à violência às práticas lúdicas , como forma de enfrentamento dos conflitos sociais. De um modo geral, a sociedade temerosa de seus rebentos busca prepará-los para uma ótima inserção na cultura, nas regulações sociais; numa ótima aprendizagem do “faça a coisa certa”. Por outro lado, o medo de que esses menores “façam o errado” denuncia a desconfiança que se tem nas novas gerações, consideradas como desorientadas, “menos capazes, menos dispostas aos sacrifícios, menos conscientes dos problemas, menos propensas aos compromissos.” E, por outro lado, mas no mesmo sentido, tenta-se promover uma educação/socialização baseada no controle, para que esses adolescentes e jovens não se desviem das normas e valores preestabelecidos, enveredando-se por caminhos enganosos, entregando-se a novas descobertas, a planos subterrâneos, engajando-se em bandos, em galeras, gangues, e por fim no mundo das drogas, dos vícios, da violência e morte. Ao relacionar violência e ludicidade, buscarei explicitar algumas concepções de violência e de ludicidade, tendo em perspectiva o conceito de sociedade como conflito, fundado por Georg Simmel; salientando o impacto dos valores sócio-culturais sobre as percepções e atitudes dos atores sociais; e, ainda, apresentar esses espaços – da violência e das práticas lúdicas – como configuradores de percepções, sentimentos e valores que contribuem para a conformação das identidades juvenis.

O conflito

Ao lançar sua famosa tese de que a história da humanidade até então vinha sendo a história da luta de classes, Marx resumiu, no Manifesto Comunista, sua concepção de sociedade como lugar de contradições, de diferenças econômicas, políticas, ideológicas que condicionam formas de organizações sociais específicas. Nesse sentido a sociologia de Marx é uma sociologia do conflito. No espaço social onde os seres humanos se interagem, as diferenças de classe, geradas pela exploração econômica do capital sobre o trabalho, aparecem, e segundo Marx, somente podem ser superadas, pela eliminação das contradições de classes.

Seguindo essa perspectiva sociológica, da sociedade como lugar de conflitos, Georg Simmel irá, algum tempo depois, corroborar a tese de que não existe sociedade perfeita onde a harmonia seja a matriz das dinâmicas sociais. Nem, ao contrário, poderia existir uma sociedade onde o conflito extremado levasse a uma estruturação social. A luta pela luta é extremamente estéril e assim não produziria sociação. Nesse sentido não existiria união perfeita, construída de pura harmonia ou desarmonia. O conflito e a harmonia estariam em constante movimento e interpenetração de modo tal, a serem constituintes da vida em sociedade. Para seu conceito de sociedade cunhou o termo sociação, que traduz um modelo espaço-temporal de dinâmica, de ação social e tensão permanente, onde os indivíduos estariam numa relação de reciprocidade, como sócios da ação social. Daí a dialética de Simmel, diferentemente, da dialética Marx, que pressupõe etapas entre a tese e antítese, não pressupor etapas, continuidades, mas uma permanente tensão. Desse modo, para Simmel, então é que se pode falar em sociedade, em formação e transformação de grupos sociais: sempre um grupo em relação a outro, para o outro, ou contra o outro, mas sempre em interação.

Em princípio a unidade do indivíduo e a unidade social parecem se assentarem sobre uma base estritamente harmônica, ma uma visão ampliada mostra que “a sociedade para alcançar determinada configuração, precisa de quantidades proporcionais de harmonia e desarmonia, de associação e competição, de tendências favoráveis e desfavoráveis.” (SIMMEL: 1981: 124) Os conflitos, como fenômenos sociológicos, surgem entre indivíduos, entre grupos e coletividades, no próprio indivíduo, nos espaços sociais provocando uma forma específica de interação entre os sujeitos, onde comparecem valores, escolhas e diferenças.(COULON: 1995: 30-33). Mas o conflito deve ser percebido, não como unidades polares, positivas ou negativas, mas sim como uma unidade dialética em tensão permanente. Assim, o que parece negativo, no conflito entre indivíduos ou grupos, pode resultar positivo numa interação mais ampla.

A oposição dá dinâmica às relações, salientando as diferenças, estabelece novas configurações sociais. Nesse sentido a oposição, torna-se um meio de preservar a relação, ganhando assim uma função estruturante. “Se, de início, o conflito parece carregar um efeito dissociador, uma análise mais ampla, mostra que na verdade que a aparência de desassociação é uma das formas elementares de socialização” (SIMMEL: 1981:127). No interior dos próprios grupos divergentes, existem correntes que divergem e outras que buscam convergências. Ou seja, mesmo em casos extremos há uma linha limite para o conflito se resolver. A luta pela luta não produz sociação, sendo os antagonismos, para a sociologia, uma categoria analítica, na medida em que esses podem ser interpretados como formas de interação entre os grupos e dentro dos grupos. “A oposição é um elemento da própria relação; está intrinsecamente entrelaçada com outros motivos de existência da relação. Não é só um meio de preservar a relação, mas uma das funções concretas que verdadeiramente a constituem”.(SIMMEL: 1981:127).

Essa concepção de sociedade como, historicamente, espaço de conflitos, não visa naturalizar as práticas violentas, resultante de relações sociais conflitantes, mas antepor a premissa de que tanto a violência quanto a ludicidade, são modos de se responder aos conflitos. Assim a violência é apenas uma das formas de resolução de contradições, que também pode tomar outras feições, como a que buscamos explicitar e encaminhar aqui, que seria a solução por práticas lúdicas, por determinados jogos, competições e disposições sócio-culturais, que resultem, não na eliminação pura e simples de uma das partes conflitantes, mas no estabelecimento de reciprocidades sócio-culturais alternativas, num sentido de acesso e inclusão das camadas mais pobres em redes de sociabilidades, onde a criatividade, a dignidade, a participação e cidadania possam ser exercidas em suas fartas potencialidades.

Ao adquirir um lugar central nos debates sobre formas de enfrentamento da violência, as práticas lúdicas, sejam artísticas, físicas, intelectuais, manuais, sociais ou ecológicas, ganham um sentido imaterial, ligado a valores, a atitudes e condutas, que orientam, sobremaneira e definitivamente, inúmeras políticas públicas de lazer, projetos pedagógicos escolares ou extra-escolares, organizações não governamentais e comunitárias. Na ludicidade pode-se estabelecer formas de jogos, de competição onde os adversários são chamados ao enfrentamento do conflito, de modo a uma superação, onde não necessariamente supre-se o outro, mas numa perspectiva de sociação. Ainda na ludicidade, busca-se uma liberação das pulsões, através de uma educação ou civilização dessas pulsões no sentido da não violência.

Embora argumentado, de início, que a violência é apenas uma das formas de resposta ao conflito, em meio a tantas outras, é preciso explicitar o que esta sendo considerado aqui como violência, suas formas e manifestações, para que se possa proceder às relações teóricas e empíricas entre violência e ludicidade.

Sobre a violência

Cada sociedade ao longo de sua história funda redes específicas de sociabilidade, sendo que atualmente a discussão sobre a violência no Brasil, tomou os espaços sociais, mobilizando pesquisadores, cientistas, órgãos governamentais, e muitas instituições públicas e privadas. O modo como a violência vem sendo colocada nas mídias, em encontros e seminários, nas discussões do cotidiano, faz parecer que o grau de violência da sociedade brasileira atual é sua principal marca. Na verdade, todas as sociedades, ao longo da história, têm convivido, utilizado e enfrentado modos e níveis diferenciados de violência.

Há vários modos de abordar o tema da violência. Pode-se pensar a partir de Hannah Arendt que via a violência como um instrumento de aniquilação das relações políticas democráticas. Uma forma de silenciamento do discurso e da ação dos indivíduos. Pode-se pensar a partir de Foucault e Bourdieu que perceberam a violência a partir da dominação pelo simbólico, pela exclusão do outro através do estigma, da rejeição. Sendo a violência simbólica uma forma de controle social, aberto e contínuo, perpassando todos os espaços sociais. A violência poderia ser abordada, entre outras concepções ainda, pelos seus aspectos físicos, psicológicos e simbólicos. Bourdieu resumiu a violência como uma forma de dominação, de criação de um sentido legitimado por uma classe dominante. (Bourdieu, 1989:11). A forma de sociabilidade atual, da sociedade brasileira, seria uma combinação de violências física, psicológica e simbólica, sujeitando os indivíduos, causando-lhes danos psicológicos, físicos e morais.

Segundo Ives Michaud vários são os sentidos da violência, sendo que o seu núcleo de significação está ligado a uma força em ação, uma potência, um valor. Essa força tornando-se violência quando ultrapassando medidas e regras sociais, vindo a perturbar uma ordem estabelecida; essa força assume sua qualificação de violência, em função de normas definidas. Esse sentido de transgressão das regras e normas liga-se às definições do Direito. Desse ponto de vista pode haver tantas formas de violência quantas forem as espécies de normas. (MICHAUD: 1989: 8-12). Ainda para esse autor a violência é carregada de valores, positivos e negativos e, ligados à idéia de transgressão, a violência pode servir a causas distintas ou antagônicas. Uma violência positiva diz respeito, por exemplo, à transgressão de uma regra no sentido de superá-la por uma mais atualizada, ou de maior relevância e coerência face às novas realidades. A violência negativa como uma ameaça à ordem estabelecida.

Ao tratar de formas de sociabilidade, Simmel salienta, que a violência, como uma forma extremada de resposta ao conflito, não produz sociação. Para ele, o conflito é uma forma de sociabilidade que cria uma unidade por meio da interação entre pares de oposição. Na competição, por exemplo, os indivíduos concorrem a um bem comum, expressando suas divergências, mas a favor de um benefício que acaba por trazer uma unidade. Recordando, Simmel aponta que tanto a harmonia quanto o conflito extremado não produzem sociação, neste sentido ele nega a violência como forma de arranjo social, pois esta elimina o outro da relação, desrespeitando as regras da competição social, inventadas em comum acordo entre pares divergentes.

O problema da violência na atual realidade brasileira suscita debates, principalmente se pautarmos pelos índices de violência relacionados aos adolescentes e jovens. Hoje, são os adolescentes e os jovens os mais vulneráveis aos imponderáveis da violência. Dados do recenseamento do IBGE de 1996 mostram como tem crescido a taxa de mortalidade entre jovens, sendo que essa mortalidade esta ligada a mortes por violência no trânsito, homicídios ou outras violências, lesões de terceiros, causas desconhecidas e suicídios. (WAISELFISZ: 1998:21-23). Sempre significando um encurtamento muito breve da potência de vida desses indivíduos.

Outro problema da violência que tem impacto sobre os adolescentes e jovens é a criminalidade e o narcotráfico. Problema este que recaí principalmente sobre as populações mais pobres. Devido a problemas estruturais, atrelados ao modelo econômico de desigualdade social do país, ao desemprego, à falta de políticas públicas efetivas de educação, saúde, lazer, esportes e justiça nas áreas excluídas, muitos adolescentes e jovens das classes mais baixas, das periferias pobres dos centros urbanos, se vêem presas da economia subterrânea do narcotráfico e do crime organizado. (ZALUAR: 2001: 146).

Na ausência de políticas públicas nessas áreas, o que constitui uma outra violência, que concorram para uma realização do sujeito, em suas premissas básicas de existência, imperam os valores do comando dos traficantes, comando que se legitima através da imposição do medo. Face à essa realidade brutalizada da vida urbana, à pobreza e às carências, crianças, adolescentes e jovens acabam aliciados pela criminalidade urbana, pelas organizações do narcotráfico. E, esses garotos, circulando pelos espaços da criminalidade, acabam por absorverem e vivificarem valores e atitudes ligados ao prazer da violência, como regra de conduta e visão de mundo. É o caso, por exemplo, dos valores ligados a um ethos do guerreiro, valorizando a arte do amedrontar, da humilhação do oponente. O ethos da força física, das armas, da moral do mais forte se realizando. Embora muitos envolvidos, neste acontecimento, acabem morrendo, antes de atingirem qualquer trajetória singular ou verdadeiramente heróica, essa lógica acaba por prevalecer. O esquema hierárquico do narcotráfico acaba por impor um sistema onde poucas são as crianças e adolescentes que conseguem ascensão, sendo que muitos destes que perseguem essa carreira ou são presos ou morrem antes de atingirem postos mais graduados.

Essa dupla violência, a que constrange o psicológico e ataca o físico e o material e outra violência, a dos modelos econômicos, sociais e culturais sustentados pelas classes dominantes e pelo Estado, dilacera adolescentes e jovens pobres das periferias, através da marginalização e exclusão dessas camadas mais pobres na participação e consumo dos bens sócio-culturais e na construção de redes de sociabilidades mais democráticas. Nesse vácuo deixado pelas políticas públicas de cidadania e inclusão, surgem, entretanto, novas formas de enfrentamento dos conflitos sociais; novos modos de se conduzir os conflitos que tomam o lúdico, o brincar, a competição espirituosa, desportiva e não a violência como instrumento, como resposta. Formas que buscam, não a supressão e eliminação do outro, mas sua assimilação numa interação entre oponentes, constituindo uma unidade maior, uma unidade na diversidade e na luta conjunta; em esforços paralelos na busca por outras alternativas aos processos de exclusão social.

Sobre o lúdico

Para o filósofo Johan Huizinga, o jogo, a brincadeira, a prática do lúdico é anterior à cultura. Quando se diz prática do lúdico pode parecer que estamos esvaziando o conceito de brincadeira, retirando-lhe o caráter de espontaneidade. Mas, como demonstra Huizinga, no lúdico há uma função significante que encerra um sentido. O jogo do lúdico implica um despreendimento, físico e mental, que propicia o surgimento do instantâneo, da liberdade, do poético, do belo. Na forma como o lúdico se desenvolve, ele desemboca num fazer melhor, num ser melhorado. A ludicidade envolve o indivíduo num fazer singular, espontâneo, onde o divertimento e o prazer ganham sentidos inefáveis e indefiníveis. A tensão, a alegria e a diversão experimentados nos jogos, nas brincadeiras ultrapassam qualquer sentido de razão. É nessa capacidade de excitar, de fazer rir e sonhar, que reside a essência do jogo. “Assim o jogo se acha ligado a alguma coisa (imaterial) que não o próprio jogo.”(HUIZINGA: 2000:4).

A opção pelo lúdico como forma de enfrentamento do conflito se efetiva pela contraposição da beleza e graciosidade do jogo ao show-horror da violência, do sangue derramado. Nesse sentido o lúdico ganha importância como fator civilizatório, onde os envolvidos aprendem e desenvolvem regras que limitam as possibilidades de ocorrência da violência. A ludicidade pressupõe formas de conduta de sentimentos civilizados. Não se quer dizer com isto, que não haja a possibilidade de um participante infringir as regras do jogo, mas agindo desta maneira, imediatamente o participante estará estragando a brincadeira; no que então o jogo cessa, pois o lúdico tem como pressuposto, regras e limites, modos de agir e de se posicionar. Como argumenta Huizinga “é no jogo e pelo jogo que a civilização se desenvolve.”(HUIZINGA: op.cit. prefácio). Assim participar de atividades lúdicas remete o indivíduo a planos estéticos e sensoriais que não podem ser vivenciados em outras atividades humanas. Por isto a dificuldade de se definir o que é o lúdico, pois ele resiste a quaisquer interpretações racionais.

Ampliando o conceito de ludicidade, desenvolvido por Huizinga, a pesquisadora Christiane Werneck afirma que as práticas lúdicas estão entrelaçadas à existência humana, às práticas do cotidiano. Nesse sentido “a vivência lúdica está no prazer em sentir-se no mundo, sendo o participante, construtor de sua história e co-participante da construção coletiva de uma vida mais digna para os seres humanos. É o agir no mundo sendo crítico e criativo, vivenciando valores como o altruísmo, a liberdade e a alegria que podem ser expressos na perspectiva da ludicidade.” (WERNECK: 1998:47-65). Corroborando com tal definição, pode-se acrescentar à ludicidade sua “expressão de desafio, da curiosidade, do novo, do inusitado, do envolvimento e do prazer, seja para aprender, para ensinar ou simplesmente para viver.”(SILVEIRA; PINTO: 2001:141).

Nos últimos anos ganhou lugar central, nos estudos e projetos ligados ao lazer, ao tempo livre e ao divertimento, a questão dos valores do lúdico, tais como a liberdade, a possibilidade criativa, a superação de limites, a espontaneidade e o belo, o ritmo e a harmonia. Ou seja, nas práticas lúdicas realiza-se a expressão dos dons mais nobres de percepção estética que o sujeito dispõe, como forma de enfrentamento, consciente e ativo, aos conflitos sociais, culturais e econômicos que se impõe. As práticas lúdicas surgem então, culturalmente, como uma ab-reação, uma espécie de válvula de escape contra impulsos violentos em suas manifestações com sinal negativo.

Simmel, em sua discussão sobre o problema do conflito social, vê na competição franca, clara e dentro de regras, num espírito desportista, uma possibilidade de resolução desse conflito, onde ao invés da supressão do outro, coloca-se um objetivo comum a ser perseguido paralelamente. Para ele a competição é um tipo de conflito que consiste “em esforços paralelos de ambas as partes em relação ao mesmo prêmio.” Na competição o resultado e o efeito que se tem focaliza-se sobre o benefício de todos ou de terceiros e o objetivo não é a destruição do outro, ou o prêmio em si mesmo, mas os ganhos objetivos que se retira do conflito. Nesse sentido a competição traz resultados objetivos, que possuem funções sociativas, civilizadoras, estruturantes, que reforçam e definem grupos, satisfazendo ainda interesses subjetivos para os envolvidos no conflito.

Nas práticas lúdicas, nos jogos e competições os indivíduos entram em interação uns com outros e são chamados a estabelecerem regras e normas que limitem a quantidade de hostilidade possível ao conflito. Desse modo, a resolução desse conflito não causa a destruição do grupo, e não toma outras conotações como a vingança ou a violência. As práticas lúdicas colocam limites toleráveis aos grupos e indivíduos, que indiferentemente dos resultados, acabam por permanecerem unidos.

O reencontro

Desde o século XIX, algumas sociedades vêm experenciando, modos de lazer e práticas lúdicas, como formas de construção de redes de sociabilidades que propiciem uma vivência ligada a melhorias das condições de vida dos indivíduos, no divertimento, na saúde, no tempo livre. A Europa e os EUA iniciaram-se massivamente nessas práticas desde 1800, de modo utilitário, dentro das escolas, através das atividades recreativas e lúdicas buscando orientar os alunos para um sentido positivo na ocupação do tempo livre. Datam de 1800 a entrada de investimentos efetivos do estado e da sociedade, nos países destes continentes acima, em construção de espaços para recreação e lazer, com encaminhamento no sentido de ocupação do tempo da ociosidade, com atividades que proporcionasse desenvolvimento espiritual, físico e social de maneira criativa, participante, consciente, numa tentativa de superação de problemas sociais como a passividade e alienação dos adolescentes e jovens (GAELZER: 1979; MARCELINO: 1996).

No Brasil, iniciativas de lazer, recreação e ludicidade, ligados aos setores de políticas públicas, ao estado, datam efetivamente dos inícios do século XX, com a criação em Porto Alegre, do Serviço de Recreação Pública, mais voltado, no entanto, para jogos e desportos. Com a chamada Escola Nova, nos anos 1930, promove-se o fazer lúdico como meio educativo. Nos anos 1940, as práticas lúdicas vão ser difundidas através dos jogos dirigidos, das sessões de recreação, sendo que em 1941, o Ministério da educação e cultura cria o Conselho Nacional de Desportes, em reconhecimento aos valores educativos e culturais das atividades lúdicas. (MEDEIROS: 2003).

Com a inclusão, no ano de 1948, do lazer, como um “ideal comum” a todos, no artigo 24 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU), ocorre uma valorização dessas práticas. Isto irá refletir no Brasil através da inclusão, pelo MEC, das práticas recreativas e lúdicas como disciplina acadêmica em todas as Escolas Normais do país. Em 1959, por exemplo, a pesquisadora Ethel Bauzer irá compor, a pedido de Anísio Teixeira, então à frente do MEC, um livro com 760 páginas sobre práticas lúdicas e recreativas, contendo 550 jogos voltados para programas e sessões de recreação a ser implementados nas escolas. Ao longo das décadas seguintes, e principalmente nas últimas duas décadas, no entanto, tem havido uma crescente diminuição de pesquisas e investimentos em lazer nas escolas pública e em espaços sócio-culturais que privilegiem o lúdico.

Em contrapartida, à essa carência de investimentos no lazer por parte do estado, tem havido um tímido, mas efetivo, surgimento e propagação de práticas ligadas ao lúdico, por parte de organizações não governamentais, de centros comunitários e outras instituições da sociedade civil. Muitos têm sido os projetos ligados a música, dança, arte e esporte no sentido de trazer as crianças, adolescentes e jovens para perto de práticas sócio-culturais que os afastem dos problemas das drogas, da violência, da discriminação e exclusão a que são expostos, para uma ocupação do tempo livre com atividades “saudáveis” e que propiciem uma melhoria e ampliação da qualidade de suas experiências e vivências nos espaços sociais. Assim, essa perspectiva lúdica atua sobre as identidades coletivas e individuais numa possibilidade dupla, de enfrentamento de problemas ligados à drogas e à violência urbana e também na construção de adolescentes e jovens mais críticos e participativos.

Atualmente, com o fenômeno da violência urbana, da criminalidade e da ampliação e profissionalização das redes de narcotráfico rondando sobre as vidas das crianças, adolescentes e jovens das classes mais pobres, das periferias, onde reina a carência de muitos aparelhos institucionais estatais de promoção do bem-estar público, as práticas de lazer e ludicidade são chamadas para o enfrentamento desses problemas sociais. Projetos, de visibilidade mais ampliada, de reconhecimento nacional como o do grupo cultural Olodum na cidade de Salvador, onde vem “contribuindo para mudar esta situação ao descobrir novas formas de difundir a auto-estima e o orgulho através da cultura, contribuindo para a preservação e expansão da consciência negra através da poesia das letras das canções do Bloco Olodum, da melodia fortemente percussiva da sua banda, das atividades educacionais, da luta pela cidadania, das publicações ou pelo lazer gratuito que proporciona aos visitantes”. (Site oficial do Grupo cultural Olodum) . O caso também da escola de samba Mangueira com o “projeto olímpico que busca afastar as crianças e adolescentes do envolvimento com a droga e marginalidade, incentivando atividades esportivas” no Rio de Janeiro, do Esporte à meia-noite da cidade de Belo Horizonte, ou Picasso não pichava da cidade de Brasília, com o “programa educativo que consiste em oferecer aos jovens pichadores cursos de artes, de diversas modalidades, e de informática básica, permeado por orientação para a cidadania e acompanhamento psicológico, a fim de que eles possam desenvolver suas habilidades artísticas e ao mesmo tempo estabelecer outros padrões de sociabilidade”, de realização e valorização pessoal são demonstrações da importância e atualidade das práticas lúdicas na construções de novas formas de sociabilidade.

Da perspectiva do fazer cotidiano ligado às comunidades carentes, das periferias das grandes cidades, tem havido também uma forte participação de grupos ligados à música, à dança e à arte no enfrentamento do problema da discriminação e exclusão sócio-cultural. Vários são os estudiosos das ciências humanas e sociais que tem se debruçado em pesquisas sobre essas práticas lúdicas, desenvolvidas por esses grupos, apontando para a importância dessas práticas como forma de resistência e luta contra o avanço das violências que recaem sobre essas comunidades mais carentes. (AMORIM: 1998; WELLER: 2004; SILVA & RIBEIRO: 2003).

Enfim, ao se pensar o problema dos conflitos que surgem nas sociedades, como inerentes à própria estrutura social, ou seja, a harmonia e o conflito como constituintes da sociedade, buscou-se apontar como resposta a esses conflitos a vivência no e pelo lúdico. Aqui se afirma que pela ludicidade pode-se dar espaço e voz para as crianças, adolescentes e jovens expressarem seus desejos, suas opiniões e suas criatividades, levando também à construção de identidades coletivas e individuais mais críticas em relação aos valores e questões que circulam pelos espaços sócio-culturais.



Bibliografia

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FORACCI, Marialice N. Você é contra a juventude? In: A participação social dos excluídos. São Paulo: Hucitec. 1992.

GAELZER, Lenea. Lazer: benção ou maldição? Porto Alegre: Sulina. 1979.

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SILVEIRA, G. C. & PINTO, J. F. Educação física na perspectiva da cultura corporal: uma proposta pedagógica. Revista brasileira de Ciências do esporte. V. 22. n.3. 2001.

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WELLER, Wivian. O HIP HOP como possibilidade de inclusão e de enfrentamento da discriminação e da segregação na periferia de São Paulo. Caderno CRH. Salvador. UFBA. 2004.

WERNECK, Christianne L. G. Lazer e formação profissional na sociedade atual: repensando.

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