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Contos-->Lugares Reservados -- 12/01/2002 - 16:05 (Pedro Carlos de Mello) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Lugares reservados

Ka tau ka tau ka tau te rei miro
Ka ta’a ka ta’a ka ta’a te rona
Ka ta’a ka ta’a ka ta’a te rona
Titoke titoke kere mata pea
Titoke titoke kere mata pea

O som do idioma rapanui é suave, fluído e melódico. Nas vozes dos integrantes do Ballet Folklorico Rapa Nui Kari Kari, nativos da Ilha de Páscoa, a canção, aliada ao som dos instrumentos musicais exóticos e aos movimentos rítmicos e sincronizados dos dançarinos, envolvia completamente os espectadores. O show estava sendo apresentado no Hotel Hanga Roa, local um pouco afastado do centro da pequena cidade de Hanga Roa, de 2.000 habitantes, que concentra a população da Ilha.

As belas nativas, enfeitadas com algas marinhas e folhas, encantavam a todos. Cantavam e sorriam. Dançavam e sorriam. Rebolavam e sorriam. Suas formas tinham o poder de um potente ímã sobre os olhares masculinos. Com certeza, estavam todos no paraíso. Bem, nem todos. Fuentes não estava.

Fuentes estava acompanhado de sua mulher Isabel. Eram chilenos. Era o terceiro dia na Ilha. Vieram para conhecer, principalmente, os vulcões, os moais e os mistérios da ilha, embora pertencente ao Chile, distante 3.700 Km do continente.

Fuentes estava ali. Mas sua atenção dividia-se entre o homem sentado à sua frente e a lembrança de fatos acontecidos num passado não tão recente mas que se recusavam a abandonar sua memória. Embora decorridos quase 20 anos, tudo o que ele tinha passado nos porões, literalmente, da ditadura militar, hoje estavam mais vivos do que nunca. A tortura de dias e dias, a liberdade que lhe davam, só para terem o prazer de tomá-la novamente a qualquer momento, como o faziam, para seu tormento. Feriram-lhe a carne e a mente. A carne cicatrizou, mas sua mente, percebia agora e mais uma vez, estava ferida de morte, jamais seria recuperada.

Algumas pequenas (seriam pequenas?) coisas aconteceram para deixar Fuentes nesse estado de desesperança.
No dia anterior, Fuentes e Isabel fizeram um passeio pela Ilha, numa van da Kia-Koe Tour, cujo grupo era composto pelo guia nativo Tito e por turistas italianos, brasileiros, espanhóis e outros chilenos. Eram em torno de 15 pessoas. Quando retornavam do tour, já perto da vila de Hanga Roa, avistaram, da estrada, no alto de uma colina, o aeroporto da ilha. O aeroporto era moderno e sua pista permitiria, em caso de emergência, até mesmo o pouso do avião espacial da NASA. Estacionado no terminal, estava um avião da Força Aérea Chilena. Tito brincou com Fuentes e Isabel, que estavam sentados na parte da frente da van.

-- Aquele é o avião do Comandante em Chefe das Forças Armadas do Chile. Hoje é quinta-feira e ele deve ter vindo com a sua comitiva passar o fim de semana na Ilha. Estão vendo? É para isso que vocês pagam impostos.

Tito não sabia o quanto suas palavras faziam mal a Fuentes. Fuentes controlou-se e deu uma risada em troca da observação de Tito. Mas, por dentro, Fuentes sentiu-se um idiota, um escravo, um espoliado, um explorado, um refém de um sistema que o excluía dos benefícios, mas que o integrava no rol de contribuintes escalados a custear esses párias, esses parasitas, esses herdeiros da ditadura e suas farras pelo mundo afora.

Hoje, antes de iniciar o show, Fuentes e Isabel foram dos primeiros a chegar. No entanto, as cadeiras da frente, alinhadas num semi-círculo estavam todas reservadas. Fuentes perguntou para a recepcionista, embora já presumisse a resposta:

-- Por quê essas cadeiras estão reservadas? À tarde, vocês me disseram que não haveria reserva de lugares e que os primeiros a chegarem escolheriam os melhores.

A moça respondeu:
-- É verdade, mas o Comandante em Chefe das Forças Armadas do Chile e sua comitiva estão hospedados no hotel e reservamos os lugares para eles. Podem sentar na fileira imediatamente atrás, que também terão uma boa visão do espetáculo.

Fuentes calou-se, mas seu sangue ferveu. Enquanto ele não via, não sentia diretamente o efeito da espoliação, era capaz de suportar, com grande sacrifício, era verdade, mas era capaz. Agora, vendo acontecer à sua frente uma usurpação de um direito que era seu, um simples direito de sentar numa cadeira de frente para o show, na Ilha de Páscoa, um lugar que ele imaginara livre desse tipo de interferência desses seus outrora algozes, ele não poderia admitir, não poderia aceitar, não poderia viver sentindo-se tão usado, tão desconsiderado, tão irrelevante, tão nada. Ele era um homem, um cidadão e queria ser tratado com respeito. Mas não acreditava mais no seu País, no Governo, não acreditava mais em nada.

O espetáculo estava marcado para as 9:00 horas. Já eram quase 10:00 horas e ainda não havia começado. Estavam esperando os ilustres convidados, que jantavam no restaurante, ao lado. Dava para ouvir suas gargalhadas e o tilintar de copos brindando. Fuentes já não agüentava mais. Era demais para ele. O sentimento de sua insignificância era insuportável.

O show finalmente começara e os lugares da frente ficaram desocupados por um bom tempo. Fuentes via os lugares vazios e isso o incomodava tanto ou mais do que se estivessem ocupados. Então aquelas cadeiras estavam reservadas para um grupo de aproveitadores que poderiam se dar ao luxo de virem ou não ocupá-las?

O Ballet apresentava a peça “Atua o te po o Haumaka”, Sonho de Haumaka. “Um sábio chamado Haumaka teve um sonho astral; seu espírito veio em direção ao sol nascente e se encontrou com uma ilha. Seu espírito baixou e percorreu toda ilha e disse: este lugar é próprio para habitar o rei e sua gente. E regressou o espírito de Haumaka à sua terra de origem”. Mas Fuentes não prestava atenção no desenrolar da peça, seu pensamento estava longe. Maquinava alguma forma de descarregar os seus infortúnios.

O Comandante em Chefe das Forças Armadas Chilenas, acompanhado de sua comitiva, entrou no recinto. Ele e os demais, acompanhados de suas mulheres, tomaram os lugares que estavam lhes reservados. Ele sentou bem na frente de Fuentes. Fuentes ficou imóvel, mas internamente era só agitação. Fuentes continuou maquinando.

Mas Fuentes já sabia de sua decisão. Ele iria matar o Comandante. Já sabia como, só precisava aguardar a hora certa. Depois tentaria fugir, mas sabia que seria quase impossível. A ilha era pequena, totalmente controlada, só poderia ser deixada de avião ou de navio e era longe de tudo, o ponto mais isolado do planeta. Mas percebia que, na realidade, isso não era tão importante. O que era importante era ele conseguir despachar para o inferno um parasita do porte do Comandante. Para Fuentes, se tivesse que passar o resto dos seus dias numa prisão, não importaria mais. Sentiria até um certo gostinho por saber que outros chilenos seriam os escalados para contribuírem com o custo de sua “hospedagem”. Ele é que não queria mais contribuir para nada.

As luzes se apagam. Acendem-se tochas. O Ballet apresenta agora a peça “A’amu o Oroi”, A Lenda de Oroi. “Oroi, irmão do rei Hotu Matu’a, vinha perseguindo o rei desde Hiva, sua terra de origem, com a intenção de matá-lo e ficar com o poder. Oroi preparou uma armadilha com uma corda”

Fuentes, aproveitando-se da semi-escuridão e do cântico rapanui, retira o cinto de suas calças e enfia a ponta do cinto na fivela, formando uma espécie de laço.

A peça continuava: “O rei sabia do sucedido, então pisou a corda e Oroi tirou-a. O rei neste momento lança uma maldição e Oroi cai morto”. A música eleva-se. As tochas são apagadas.

Fuentes, mais do que rapidamente, enlaça o pescoço do Comandante e puxa o cinto com todas suas forças. Os gritos do Comandante confundem-se com os gritos de guerra dos bailarinos do Kari Kari. O Comandante cai morto. Fuentes, ainda beneficiado pela escuridão, mas já notando o princípio de confusão que se anunciava, foge para a noite. Sob qualquer hipótese, sua vida seria outra daí em diante. Mas sentia-se bem. Tivera o seu dia de algoz.
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