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Contos-->PAI CONTRA TODOS -- 11/01/2002 - 22:41 (marcelo dawalibi) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
PAI CONTRA TODOS

1) A história que conto agora é daquelas em que, bem sei, poucos acreditarão. Eu mesmo não posso atestar sua veracidade, embora também não possa infirmá-la. Mas, lenda ou realidade, o que importa? Como já se disse alhures, importa mais a versão do que o fato. E a versão é a que passo a contar agora.
A época é a Idade Média, ainda em sua primeira fase, em que a nobreza e o clero gozavam de amplo prestígio e poder. O local é um desses lugares perdidos entre tantos outros arrasados pelas sucessivas invasões de povos bárbaros, que dilaceraram a antes próspera e depois decadente, mas sempre brilhante, civilização romana. Situa-se mais ou menos no território que hoje corresponde a Andorra. Era uma cidade próspera e isolada do resto da Europa, chamada Argemira. Por isso mesmo muitas pessoas, cansadas das guerras que assolavam o continente, foram para lá, formando uma sociedade de muitas etnias, mas um só comando. Uma verdadeira cidade-estado, com uma estrutura social bem parecida com a que vigorava no resto da Europa: havia um soberano (chamado Argemiro I), de origem gótica e também uma alta nobreza (formada por duques e condes). Por fim, a maioria da população era o chamado "povo", essa gente que até hoje causa horror e náuseas em nossas elites.
O povo trabalhava e, embora livre, devia obediência aos nobres e ao soberano. Na verdade, não devia só obediência, mas também pesados impostos, cuja sonegação ou não pagamento poderia resultar em penas severas.
Um único homem, porém, não se situava em nenhuma dessas categorias sociais. Seu nome era Charles, e era também chamado de "Homem-Livre", porque, além de ser isento de impostos, não devia obediência a ninguém, a não ser ao Rei Argemiro. A condição de homem livre havia sido adquirida nos campos de batalha, já que, após sua fundação, Argemira havia sido cobiçada por bárbaros germânicos (Francos, segundo registra a história), que tentaram invadí-la, sendo rechaçados pelo rei e seu exército em uma guerra sangrenta. Charles havia se destacado na guerra como o mais valoroso soldado, pelo que Argemiro I deu-lhe como prêmio a isenção de impostos e a liberdade civil sem hierarquia, submetendo-o apenas ao soberano maior.
Aqui começa nossa história.

2) Depois da guerra, Charles passou a integrar o cerimonial do palácio do Rei Argemiro.
Após ter sido vencida a guerra contra os invasores, o valente Charles, único homem livre não-nobre entre os argemirenses, passou a levar uma vida pacata, exercendo seu ofício de assessor do rei.
Foi aí que se deu o fatídico episódio que mudaria para sempre a história de Argemira.
Charles era um homem ainda jovem, e bonito. A seus atributos físicos somavam-se seu prestígio com o rei Argemiro, de quem era amigo, e o respeito que impunha seu passado guerreiro. Os nobres não gostavam dele, mas também não o hostilizavam abertamente, já que ele era amigo do rei. Por isso mesmo, embora fosse um humilde funcionário do palácio, ele freqüentava as festas da corte, e divertia a todos com suas histórias (era um notável contador de casos).
Lucinda, uma bela jovem, filha do Conde Roberico e da Condessa René, apaixonou-se por Charles. Seus pais ficaram, evidentemente, escandalizados: como uma filha da alta nobreza poderia amar um homem que só não era do "povo" porque era amigo do rei?
Lucinda fora criada, afinal, para casar-se com um nobre, talvez com o filho de um duque. Com um homem do povo nunca!
Porém (e, como dizia Plínio Marcos, sempre tem um porém), ao final o amor venceu.
A vontade de Lucinda prevaleceu, não sem antes ter surgido uma questão legal: poderia Lucinda casar-se com Charles? Afinal, as leis da cidade proibiam o casamento de nobres e plebeus.
A questão ganhou os mais altos foros, sendo solucionada pelo Rei Argemiro, que assim sentenciou:
"É bem verdade que a lei proíbe casamentos entre nobres e plebeus.
Todavia, é omissa em relação ao matrimônio de membros da nobreza com homens-livres. Em sentido estrito, o cidadão Charles não é um plebeu. Seu status é outro.
Em não havendo impedimento legal, portanto, autorizo o casamento.
Cumpra-se."

E assim casaram-se Charles e Lucinda.

3) No segundo ano do casamento, Charles e Lucinda tiveram uma filha, que recebeu o nome de Isabel. Era uma adorável garotinha, formosa como os pais.
Os pais de Lucinda, que haviam rompido com a filha depois do casamento, reconciliaram-se com ela quando do nascimento da criança. Aceitaram Charles como seu genro, e viveram em harmonia, até o dia em que a infelicidade rondou aquela até então venturosa família.
O Duque Paulo, nobre da mais alta estirpe da cidade, encantou-se com a menina Isabel. Amigo do Conde Roberico, propôs-lhe um casamento entre a filha de Charles e seu neto, Francisco, filho de seu único filho, Carlos. Francisco contava, então, com três anos de idade, e Isabel com dois.
A esta altura, preciso fazer uma breve digressão, pois o leitor certamente está se indagando como é possível casarem-se duas criaturas em tão tenra idade.
Explico-lhes.
Os argemirenses, como dissemos, eram um povo formado a partir de várias etnias: visigodos, saxões, ibéricos, romanos e até francos. Prevaleciam, porém, as culturas visigótica e romana, notabilizando-se pelo apego às leis e respeito pelo soberano da primeira e pelo Cristianismo da segunda. Existiam, assim, leis escritas às quais todos, nobres e plebeus, se submetiam.
Uma dessas leis criava a figura do pré-casamento, algo parecido com a "promessa" de casamento existente nas culturas de alguns povos, como os islâmicos e os ciganos. Assim, pelo pré-casamento, Isabel, de dois anos, seria "prometida" a Francisco, de três. A diferença é que, além do empenho da palavra, o pré-casamento uniria as pobres criaturinhas pelo vínculo jurídico. Deste modo, juridicamente estariam eles casados, porém, viveriam com suas famílias até que ambos fossem maiores de 15 (quinze anos), quando então passariam a coabitar. Coisas de uma sociedade medieval...
Voltando à nossa história, Conde Roberico de pronto saudou a idéia, assentindo à intenção do Duque Paulo. "Sim", disse ele, "sem dúvida casaremos Isabel e Francisco", disse o Conde, honrado pela proposta de um nobre de tão alta estirpe.
Porém (e sempre tem um porém), havia uma questão a ser resolvida: para que o pré-casamento se realizasse, os pais de ambas as crianças deveriam autorizá-lo.
Aqui a história se complica.

4) Quando Conde Roberico contou à sua filha Lucinda e a Charles qual era a proposta do Duque, o pai de Isabel sentiu-se como se tivesse levado um soco no estômago. Faltou-lhe o chão, tonteou, teve taquicardia. Seus olhos encheram-se de lágrimas.
O Conde, entusiasmado, pensou que aquilo fosse emoção.
Lucinda, de pronto, concordou com a idéia, deslumbrada com a possibilidade de unir sua filha ao neto do Duque Daniel.
Charles, estupefato, não conseguiu falar nada. Seu silêncio foi interpretado como um sim.
Apressado, então, o Conde marcou o pré-casamento para dali a uma semana.

5) Quando finalmente conseguiu falar, Charles repreendeu Lucinda:
"Insensata! Como podes concordar com tamanha barbaridade? Isabel é só uma criança! Nem sabe o que estamos fazendo com ela."
"Como posso concordar? Ora, Isabel se casará com o neto da mais alta autoridade de Argemira, depois do Rei. Não percebes o quanto isso nos honra?"
Seguiu-se uma demorada discussão entre ambos. Ao final, um apelo de Lucinda, desesperado, calou mais uma vez Charles:
"Meu querido esposo! Se me amas de verdade, concorda com este matrimônio, ou me dar-me-ás o maior desgosto de minha vida."
Charles emudeceu. Amava tanto Lucinda que não teve coragem de contrariá-la.

6) Os poucos dias que antecederam a data da cerimônia foram um calvário para Charles. Não conseguia pensar em nada, senão na pobre Isabel.
Não foi ao palácio trabalhar. Perambulava soturno pelos cantos de sua casa, quieto e pensativo. Viveu um conflito interno. De um lado, não queria tirar de Lucinda uma alegria tão grande e dar a ela, em troca, um desgosto tão profundo. Também temia contrariar o sogro, com quem a muito custo de reconciliara depois do casamento, e que já o tratava por "filho homem que eu não tive". Por outro lado, todavia, pensava na crueldade que aquela cerimônia representaria para duas crianças em tenra idade, dois anjinhos que nem sequer sabiam o que seria feito de suas vidas.
E assim, em meio a esse suplício, em meio a esse vale de sofrimentos, Charles atravessou aqueles breves dias.

7) No dia marcado, estava tudo preparado.
No salão mais nobre de Argemira, a mais fina flor da nobreza local aguardava, ansiosa, o enlace de netos de seus cidadãos mais ilustres.
As pessoas do povo que passavam pelo local viam aquilo e não entendiam nada. Foram perguntar a Charles o que ocorria, e quando este respondia que sua filha estava se casando, ficavam pasmos e não conseguiam compreender como aquilo poderia ocorrer.
Charles, do lado de fora, cabisbaixo e macambúzio, contrastava com a exultação dos demais familiares dos "noivos", se é que podemos chamá-los assim. Quando finalmente o Conde Roberico foi chamá-lo para a assinatura da ata do pré-casamento, Charles sentiu os joelhos tremerem. Por um minuto, desligou-se deste mundo. Seus pensamentos elevaram-se para os céus. Fechou os olhos e viu a figura de seu saudoso pai, falecido havia quinze anos, cerrando seus punhos e exortando-o à luta. Viu também a imagem de sua mãe, também finada, a sorrir, dizendo-lhe uma frase que sempre ouvira na sua infância: "Coragem! O verdadeiro homem é aquele que faz o que sua consciência manda."
De súbito, sentiu seu sogro tocar-lhe nos ombros, tirando-o do transe em que se encontrava. O Conde dizia:
"Vamos, filho. Já é hora do casamento."
Foi então que o inevitável aconteceu. Com os lábios trêmulos, Charles respondeu, em voz bem baixa, quase inaudível.:
"Não haverá casamento."
O Conde não acreditou. Fingiu não ter ouvido direito. Charles então falou em tom mais alto, aliás, muito alto.
"Não haverá mais casamento!"
Conde Roberico, então, inquiriu Charles sobre o motivo de sua decisão, mas o "Homem-Livre" começou a chorar convulsivamente. E os convidados, curiosos, começaram a sair do salão e viram a cena: Charles, chorando, não conseguia dizer uma só palavra, e o Conde, ao seu lado, gritava histericamente:
"Sua esposa está de acordo. Eu estou de acordo. A família de Francisco está de acordo. Todos estão de acordo. Há uma unanimidade em torno deste casamento. Como ousas discordar de todos nós?"
O oficial que celebraria o pré-casamento foi ao encontro de ambos. Ao ver Charles, perguntou-lhe o que havia. Ainda sem conseguir falar, o homem livre apenas meneava a cabeça negativamente, e, entre lágrimas, repetia:
"Um dia minha filha vai me agradecer por isso."
Ciente do que se passava, o oficial pediu a Charles que se dirigisse a uma parte reservada do salão para que pudessem conversar.
Na pequena sala, já refeito, o "Homem-Livre" recobrou o espírito guerreiro. Olhou com rancor para o Conde e para o Duque. Fitou com firmeza a Condessa e a Duquesa. Pediu ao oficial:
"Quero fazer um pronunciamento aos convidados. Sou pai da noiva, tenho esse direito."
Pensando que ele se arrependera de sua negativa, eles assentiram. Foi, para eles, um grande erro.
Charles foi à tribuna do salão. E como que tomado do espírito do mais célebre tribuno, falou com a voz retumbante:
"Estamos reunidos aqui para cometer um dos atos mais cruéis que se pode praticar contra duas crianças pobres e indefesas. Estamos aqui para uní-los em matrimônio. Estamos aqui para praticar tamanha vilania.
Hipócritas! Quem pensais vós que sois? Deus? Acaso gostaríeis que alguém traçasse vossos destinos logo ao nascerem?
Insanos! Essas duas crianças, na verdade dois anjinhos, não têm a mínima consciência do que hoje está sendo feito aqui. Será que aos quinze anos terão vontade de se unirem em carne e espírito? Será que aos trinta anos terão vontade de permanecerem unidos?
Pois estou aqui apenas para dizer-vos: não haverá casamento!
Defenderei o direito inalienável de minha filha ao seu livre arbítrio até a minha morte. Eu sou seu pai! Eu a defenderei!
Por isso, vos digo: se quiserdes casar a pobre Isabel, tereis antes que pisar sobre o meu cadáver."
Dito isto, retirou-se.
Nada mais havia o que fazer. Pelas leis argemirianas, a vontade do pai era insubstituível. Sem a sua anuência, não poderia haver pré-casamento.

8) O fato repercutiu por muitos e muitos anos em Argemira.
Os dias que se seguiram foram de puro escândalo. Como alguém foi capaz de fazer tamanha desfeita ao Duque Paulo?
A partir daquele dia, a vida de Charles tornou-se um inferno.
Lucinda o abandonou.
O Conde Roberico e toda a nobreza se uniram contra ele. Por exigência do Duque FRancisco, foi demitido do cerimonial do palácio. Tê-lo-iam condenado à morte, se não fosse a intervenção do Rei Argemiro I. Mas mesmo o Rei, que salvou sua vida, não pode salvá-lo da fúria da nobreza ultrajada por aquele "Homem-Livre". Charles foi internado em uma instituição médica e dado como louco. Ali ficou por dez anos.
Ao sair, já com a saúde debilitada, e sem poder voltar ao seu cargo no palácio real, passou a trabalhar como alfaiate, ofício que aprendera com seu pai, antes de se tornar um guerreiro. Ganhava pouco, pois por ter sido proscrito pela nobreza, só os do povo o procuravam. Mas o que auferia era o suficiente para se manter.

9) Quinze anos já se haviam passado desde aquele fatídico dia.
Charles, já sem o vigor da juventude, e agastado pelos anos de sofrimento, cumpria uma dolorosa rotina: trabalhava em suas roupas durante o dia, e ao final da tarde sentava-se na rua, em frente à sua casa, para pensar na vida.
Em um dessses dias, Charles estava sentado na rua ao lado de seu amigo e vizinho Pompeu, quando viu se aproximar dele uma jovem. Olhou em seus olhos e a reconheceu. Não teve dúvidas: era Isabel. Ela tinha, porém, algo estranho no olhar, algo que o "Homem Livre" já imaginava o que era. Não se surpreendeu, pois, quando sua filha falou:
"Lembra-te de mim? Sou Isabel, tua filha. Impediste-me de casar com o filho do Duque, dizendo que um dia eu agradecer-to-ia.
Velho estúpido! Destruíste muitas vidas com tua teimosia.
Meu avô morreu anos depois do ocorrido, dizem que de desgosto.
Minha mãe anulou vosso casamento, sob a alegação de que eras louco, e casou-se de novo, desta vez com um nobre. Ele a maltrata, e ela chora de saudade dos tempos em que era feliz a teu lado.
Já eu, velho estúpido, estou solteira, e vi Francisco ficar noivo de outra.
Ele se tornou um rapaz belo e ainda mais rico, com uma fortuna capaz de comprar toda esta cidade.
Queres saber o que vim fazer aqui? Não vim agradecer-te, mas sim amaldiçoar-te."
Disse isso e foi embora.
Charles permaneceu inabalável. Seu rosto não passava nenhuma emoção. Surpreso com isso, Pompeu, que assistira à cena, indagou o "Homem-Livre", que respondeu:
"Já esperava por isso, amigo. Mas um dia ela retornará. A vida cumpre seus ciclos. E este, que começou há quinze anos atrás, terminou hoje..."

10) Mais quinze anos se passaram.
Charles, agora já em avançada idade, continuava sua rotina.
Ao final de uma tarde de verão, novamente sentado se achava à frente de sua casa. Viu uma jovem senhora se aproximar. Já sabia, era Isabel. Ela trazia-lhe novas:
"Pai, meu pai querido. Desculpa essa tua filha sem juízo pelas bobagens que lhe falou há quinze anos. Novos acontecimentos provaram que estavas certo em tua decisão.
Francisco tornou-se um cruel assassino. Casou-se, e, meses após o casamento, matou sua esposa, uma moça delicada e indefesa.
Já eu vivo com um homem bom e que me ama. Espero um filho dele, teu neto.
Perdoa-me pelo que te disse. Não estou aqui para amaldiçoar-te, mas sim para agradecer-te. Por Deus que está no céu, muito obrigada por me salvares de um cruel destino."
Charles sorriu, levantou-se e abraçou Isabel, comovido. Disse a ela que sua missão de pai agora estava cumprida. E arrematou:
"Este é o dia mais feliz da minha vida. Quis Deus também que fosse o último."
Disse isso, e caiu nos braços de Isabel, fulminado por um ataque cardíaco.
Morreu com um sorriso nos lábios.


MORAL DA HISTÓRIA: O reconhecimento, quando não é póstumo, é tardio.
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