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Cronicas-->Uns corpos que caem -- 14/09/2001 - 19:08 (FAUTH) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Estava com o livro "Os cem melhores contos brasileiros do século" na mão, aberto na página 579, bem na hora do embarque, quando o rapaz me disse: "não pode. Com esse livro não pode." Não entendi, de imediato, e ainda quis argumentar: "quero ler durante o meu despencar". Minha ingenuidade só foi quebrada depois que tudo acabou em três segundos. Simples como quem cai de um prédio de 23 andares. Simples como despencar do Edifício Itália, em São Paulo. Só que este tem 42 andares. Portanto quase o dobro da altura de onde eu cairia: seis segundos. Resumindo, se tivesse escolhido o Edifício Itália do conto, conseguiria ler, no máximo, a frase: "Por simples acaso, dois desconhecidos encontraram-se despencando juntos do alto do Edifício Itália, no centro de São Paulo." Mas eu teria apenas metade do tempo e só leria: "por simples acaso, dois desconhecidos..."

Já que estava sem livro - fora confiscado pelo tal rapaz - perguntei ao senhor a meu lado, também desconhecido, se tinha certeza do que estava fazendo. Estou arrependido, ele disse, enquanto o elevador subia. Mas já era tarde. Eu começava a pensar a mesma coisa depois de ver o minúsculo tamanho dos carros no estacionamento.

Todos sabíamos que o elevador despencaria depois de chegar ao vigésimo terceiro andar e mesmo assim entramos, por livre e espontànea vontade. Ninguém nos obrigou, pois era um suicídio em massa. Por ser panoràmico, olhávamos o mundo do alto, em silêncio. Eu não me aguentava. Não conseguia ficar calado. O senhor pretende cair de olhos abertos ou fechados? Abertos, claro, quero ver tudo até o fim. E o fim estava próximo. O elevador começou a subir mais devagar, preparando-se para cair livremente.

Tlec. Primeiro estalo, já haviam me dito isso. Começava a estalar, antes de cair. Uns três tlecs, apenas, graduais e lentos, como um cabo de aço que arrebenta. Lá em baixo as pessoas eram como formigas e, pior, olhavam para cima a rir da nossa desgraça. Um frio subia pela barriga, mas não havia mais o que fazer. Foi Kafka quem escreveu: "de certo ponto em diante não há mais retorno possível. A esse ponto é que é urgente chegar". Essa estúpida filosofia levou-me a entrar naquele maldito elevador. Agora não tinha mais jeito. Era esperar pela morte. Tlec.

Mais um estalo e a queda livre daria conta do resto. Ao contrário da história da página 579, em que os personagens se encontram e conversam durante a queda, o silêncio tornou-se sepulcral nos milésimos de segundo finais, antes do derradeiro tlec.

Tlec.

"Roda mundo, roda-gigante, roda moinho, roda pião, o mundo rodou num instante nas voltas do meu coração!"

E só. E pronto. "Por simples acaso, dois desconhecidos..." e já estávamos no chão. A sensação de cair livremente é indescritível aqui. Todos ficamos traumatizados diante da pequenez humana. Nem de pensar eu fui capaz durante a queda e, ao lembrar da página 579 dos Cem melhores contos, tive maior compreensão do significado verdadeiro da palavra ficção. Enquanto caía, eu era um mero cocó de pombo. Nada mais. Aguardava, apenas, o meu estatelar no chão. Deixava mulher, filhos e muito serviço para outros assumirem no meu lugar. Deixava projetos, deixava saudades, enfim.

Mas o ciclo ainda não se completara. Depois da morte, o silêncio novamente. É quando abrimos os olhos e começamos a ver outras pessoas; ou quando a massa pastosa do mundo que passou e ficou carimbada nas retinas dos que caíram de olhos abertos vai se desfazendo e tudo vai se reconstruindo. Começamos a ver, então, pessoas sorrindo, incluindo mulher e filhos, além de diversos outros que foram deixados aqui em baixo quando tivemos a infeliz idéia de subir naquele brinquedo horroroso.

O funcionário do parque de diversões devolveu-me o livro e os óculos depois que retirei o cinto e desci da cadeira de plástico amarelo. Abracei a mulher, beijei os filhos e disse que precisava sentar um pouco. Abri o livro na página 579 e reli o conto do Trevisan.

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