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Contos-->O BECO DAS SETE FACADAS -- 03/01/2002 - 10:51 (CARLOS MÉRO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



Eles já se haviam vorazmente flagelado, no inteiro correr de suas vidas de cama comum, sem que nunca se tivessem dado ao cuidado de escolher hora ou lugar, jeito ou maneira, fosse ou não fosse o gesto em direito permitido, tolerado ou até mesmo renegado.
Estouvada como o Diabo gosta, sufocava ela sob o peso de necessidade incontornável de se fazer notada, pelo que se esforçava como louca na caça dos limites, indiferente a qualquer fronteira que apartasse o amável do importuno, o divertido do ridículo, ou ainda o espontâneo do comprometedor. Mas também havia as roupas, escolhidas sempre pelo maior pedaço de peito ou de coxa que poderiam deixar à mostra, além da compulsão pela franqueza, que proclamava como seu maior troféu, e que nunca lhe permitia perdoar o que quer que fosse, ao custo que pudesse lhe custar.
Já ele, apesar de menos entrado nos anos, era como se carregasse nas costas o peso de uma fatigante centúria, o que lhe roubava o fôlego para uma conversa aberta ou um sorriso franco, enterrado como sempre estava na sisudez dos que temem ser desvendados. E mesmo em casa, quando se dizia abrigado em sua própria fortaleza, era ele quem teimava em permanecer inexpugnável, incapaz de assentar um afago em qualquer dos filhos, e, muito menos sob os olhos deles, de emprestar à mulher a mais frígida palavra de carinho.
Dizia ela, não sem um arquejo de orgasmo pressentido, que aquela rabugice apenas fazia parte de uma carranca bem desenhada, pois que debaixo dos lençóis, longe das vistas e das ouças indiscretas, não poderia haver homem de apetite mais adubado e de macheza mais petulante, sem falar na corpulência de encher as vistas e de inundar as entranhas. E acrescentava que, não fosse isso o bastante, era ele um amante liberto de qualquer preconceito, sempre pronto a passear-lhe o hálito pelo corpo inteiro, a lhe beber os humores, a penetrar-lhe nas carnes por onde houvesse passagem.
Mesmo, porém, que se tome isso por incontroverso, até porque não há motivo para duvidar de quem mais poderia ter conhecimento de causa, o fato é que, fora do mistério da alcova, o que parecia mesmo é que o inferno desabara sobre as suas cabeças. Até porque, apesar de se não ter notícia de empurrões ou bofetes, guarda-se o testemunho de semanas a fio sem uma permuta de olhares, mesmo que furtivos, ou ainda de uma troca de palavras, mesmo que curtas e estritamente indispensáveis.
E foi assim que se passaram anos e anos, mais de quarenta, para ser preciso, debaixo da sombra desse duelo insaciável que, no que pese esmoente, sempre surpreendia momentos de imprevista calmaria, sem que no rastro da tempestade jazessem mortos ou feridos.


Dá-se que tendo ele melhorado de vida, mercê de emprego novo como gerente de funerária, resultou decidido que arrebanhariam a penca de filhos, entulhariam as roupas de vestir, de cama e de mesa, além de outros panos de menor relevância, em dois ou três cestos providencialmente comprados no Mercado de Jaraguá, juntariam os poucos cacarecos de que dispunham e se mudariam para uma rua cujo nome nem sabiam, onde fora um sítio do notário José de Barros Lima, ali nas cercanias da Estrada Nova.
Não que a nova casa fosse de fato mais bem arranjada, ou no mínimo mais ampla, já que, a exemplo da outra, não contava com mais do que uma minúscula sala de visitas, de onde se esticava um corredor esguio, rente ao oitão do lado direito, que dava para três quartos entre si estremados por paredes anãs, rasgadas por portas de alcova, desembocando, afinal, na sala de comer que mal dava para a mesa de seis cadeiras, de onde se passava para um cubículo úmido que, pela pia sebosa que se via ao canto, haveria de ser tomado por cozinha. O banheiro, no que também era reeditada a moradia precedente, este se contentava em se ver abrigado por uma tosca edícula que se escondia no fundo do quintal, onde convivia com a latrina fétida que, para ser sincero, mais não era que um buraco rasgado no chão revestido de cimento vermelho.
A vantagem era que os quartos eram forrados, apesar de que aqui e ali já se vissem as cicatrizes da devastação de há muito inaugurada pela polia. Além disso, havia a linha de ônibus que percorria a Estrada Nova, avenida larga, de certa imponência, como são aquelas que se vêem nas cidades grandes, tendo-se ponto que não distava mais de cinqüenta metros do batente da porta da rua da nova morada.
Bom, contudo, era o quintal comprido que se estendia pelos lados e pelos fundos da casa, com alguns pés salteados de jambeiro, mangueira, jaqueira e goiabeira, cujas copas frondosas garantiriam vastos sombreados onde as crianças poderiam brincar à vontade, fazer cozinhados, bater bola e pular macacão. E melhor, ainda, porque daria a ela a ensancha de concretizar um dos sonhos mais acalentados da sua vida inteira, que era o de ter um cercado onde poderia criar galinhas e um outro, mesmo que fosse menor, onde lhe fosse dado cultivar uma horta.
Não sem razão, por conseguinte, mal passada uma quinzena, a contar da data em que se completou a mudança, já se podia despertar sacudido pela alvorada de um galo pedrês, enquanto que já apontavam os primeiros verdores da plantação nascente.

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Tudo corria às mil maravilhas, como se os novos ares tivessem trazido novos hábitos e plantado a semente da tolerância. Até se pode dizer que um certo dia, talvez à boca da noite do Domingo de Ramos, pode-se ver, estampado no rosto dele, um surpreendente sorriso que se de feito logo se apagou, o que vale é que lá esteve quando menos se esperava.
Também ela não escondia o contentamento. Casa nova, marido acomodado, filhos brincando sob os seus olhos vigilantes, alguns ovos dados a serem recolhidos aos começos de cada de manhã, e, melhor que tudo, plantio vistoso a já deixar à vista os primeiros e promissores frutos.
Foi então que, num certo sábado de dorida lembrança, lá vem ela do fundo do quintal, mais precisamente das bandas da horta de onde quase não saía, e atropela sem cerimônia o desjejum que ele calmamente mastigava, com uma notícia insólita que, para merecer fé, convenha-se que exigiria muito esforço.
- Você não vai acreditar - disparou ela. – Você se lembra daquele monte de sementes de tomate que eu lhe mostrei? Pois eu plantei e nasceu tudo direitinho. Só que em vez de dar tomate deu mesmo foi pimentão.
A princípio, apesar do susto inicial, até que ele se esforçou em se mostrar razoável, delicadamente sustentando, como aliás o faria qualquer pessoa sensata e bem-educada, que no mínimo deveria haver um engano. Afinal, muito embora reconhecesse não ter nenhuma ciência nessa área de plantar e colher, até porque nascido e criado na cidade, não poderia nem por longe acreditar que um prodígio daquele tipo pudesse acontecer, ainda que fosse por milagre de Nossa Senhora da Penha, que pode muito mais do que se possa imaginar.
- Mas ela quis, ela pode e ela fez – teimou a mulher. – Você é que é um homem de pouca fé. Além do mais, sua opinião e nada é a mesma coisa. Se não quer acreditar, dane-se. Mas o que aconteceu foi isso mesmo: eu plantei tomate e nasceu pimentão.
Ele ainda tentou contemporizar e até mesmo convocou os vizinhos dos lados, na esperança de que a autoridade das suas opiniões, já que a dele descambava no vazio, fosse suficiente para aplacar a intransigência em que ela se plantara. Mesmo assim, e até considerando que ambos os consultados se firmaram na mesma direção da impossibilidade absoluta do prodígio anunciado, um deles, impõe registrar, do auto da cadeira de comerciante no mercado de frutas e verduras, permaneceu ela resoluta no seu ponto de vista, a ponto de causar um certo mal-estar no seio da singular assembléia.
Até os pais dela, e mais tarde dois ou três dos seus irmãos, pois que os outros quatro já não mais moravam em Maceió, foram atraídos para o turbilhão daquela querela de tamanha elevação científica. Nem por isso, entretanto, ele mais uma vez amparado por juízos tão mais aceitáveis que o dele, eis que proferidos por fontes acreditadas pelo afeto do sangue, logrou vê-la admitindo a irrefragabilidade do absurdo a que se agarrava.
Os dias foram então se acumulando, os meses se sucedendo e a insistência dela desaforadamente se incendiando, até que a perplexidade dele se virou em escárnio, que desandou na impaciência, que semeou a raiva, que engendrou a fúria, que desatou a violência, como se alentada por anos e anos de ira a custo apascentada.
E foi assim que, alguns poucos dias depois daquela noite de agosto, a rua cujo nome nem eles sabiam e que fica nas vizinhaças da Estrada Nova, passou a ser conhecida como Beco das Sete Facadas.
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