Usina de Letras
Usina de Letras
153 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62270 )

Cartas ( 21334)

Contos (13267)

Cordel (10450)

Cronicas (22539)

Discursos (3239)

Ensaios - (10381)

Erótico (13573)

Frases (50661)

Humor (20039)

Infantil (5450)

Infanto Juvenil (4778)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140816)

Redação (3309)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6204)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->A DESASTRADA HISTÓRIA DE UM SUICÍDIO NÃO CONSUMADO -- 03/01/2002 - 10:50 (CARLOS MÉRO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



Felina foi sua amante por pouco mais de seis meses. E foi com tão precipitada urgência que tudo se passou, que quando afinal se desgarraram, com a mesma imprudência com que um dia se engataram, era como se o vazio sobrante se inflasse da negação do tudo aquilo com que um dia se deleitaram.
Já o instante do encontro impregnara-se do insólito. Afinal de contas, o que seria de se esperar era que se tivesse embebedado com a faísca do seu olhar de gata no cio, com a sonsice do seu semblante de tramada timidez, com a triunfal arrogância dos seus peitos vastos e arrebitados, ou ainda com a sua voz cochichada, como que a segredar que andava farta de estranho medo de rasgar o silêncio. Ao invés disso, porém, o que lhe ateou fogo nas tripas, enforcou-lhe os gorgomilos, acordou-lhe os baixios do trono e de veras o fez perder a tramontana, foi o balançar felino dos seus quartos largos e empinados, impudentemente espremidos dentro dos fundilhos delatores da calça de brim azul-marinho, que, como de costume, na época e no lugar, fora propositadamente escolhida um número a menor.
Antes, portanto, de que se enamorasse da mulher, pois que ainda não lhe vira o rosto, não lhe escutara palavra, nem lhe bebera os sentidos, já gemia de paixão sem remédio por suas nádegas polposas, deixando que lhe navegasse o instinto na cadência litúrgica das cadeiras da fêmea.
Não fosse a mãe que lhe caminhava ao lado, octogenário tonel das mais intolerantes virtudes, é quase certo que teria esporado a passada e ali mesmo já lhe teria conhecido o conchego daquele olhar fuzilante, daquele doce semblante de mitrado acanho, da voz macia que idolatrava o silêncio. Tanto mais agora, quando, já passado dos quarenta e a ostentar moderna viuvez precoce, mais ainda lhe cobravam as vistas inquisitoriais de D. Pureza, pelo que qualquer avanço seria uma temeridade e qualquer ousadia um invencível desastre.
Só a grande custo, contudo, encolheu as unhas, amansou o ímpeto, e lá se foi a passo medido, como religiosamente o fazia no véspero de cada sábado, enquanto que a mãe corregedora, pendurada no seu braço esquerdo, namorava as vitrinas que se enfileiram a cada lado do corredor interminável. E era sempre a fastidiosa expectativa de que ela, de quando em vez, descobrisse o que fosse que lhe justificasse o vômito da gana consumista.
Só que por mais que andasse, por mais que a custo esbarrasse, aqui e acolá, refém da procura sem rumo certo de que se fazia comparte involuntário, lá estavam sempre, teimosamente a precedê-lo, aquelas ancas perturbadoramente largas e empinadas que o desfiavam, como se houvesse acordo prévio a lhes debuxar o percurso. Chegou mesmo a tramar uma indisposição súbita, um desarranjo extemporâneo que o forçasse a uma fuga estratégica, livrando-se, por pouco tempo que fosse, da incômoda âncora que lhe peava o impulso.
Mas enquanto se debatia a ponto de um chilique, eis que um toque redentor despertou-lhe o ombro direito. Torceu o dorso e lá estava ninguém mais do que o Grude em pessoa, sabido e ressabido lambanceiro, talvez o mais exímio dos desocupados que se dão à arte do papagaio-de-pirata, sempre a guardar as costas do politiqueiro do momento ou a cumprir os mandados de quem lhe pudesse emprestar uma fatia de sombra.
Um naco de prosa, um intervalo de nada, e já Felício sabia de tudo, tudo e mais alguma coisa, sobre os quadris largos e empinhados que lhe haviam desancado o juízo e incendiado os instintos. E o melhor era que, pelo que lhe foi soprado ao pé do ouvido, também ela já o havia descoberto. Não, diga-se de passagem, que tivesse sido seduzida por seus quartos murchos e faltos de qualquer veneno, mas sim acordada por seu olhar viril, seu semblante circunspecto, seus ombros robustos e sua fala incisiva de quem sabe o que quer.
Não foi de plantar surpresa, portanto, que já naquela noite cruzassem os primeiros olhares, permutassem as primeiras palavras, colhessem os primeiros toques, dançassem a primeiras danças, trocassem os primeiros beijos, gozassem os primeiros orgasmos e finalmente traçassem os primeiros planos para um venturoso futuro que além de primeiro seria o único.
.

Um dia depois da primeira noite, a mesma que, conforme não se esforçavam para acreditar, prenunciava uma vida inteira de transportes intermináveis, eis que já ela se mudava, de malas e bagagens, para o apartamento onde hoje morava Felício, ali quase em frente à touceira de Sete Coqueiros que risca o limite da Pajuçara. A impressão que logo se apoderou dos seus sentidos, mal se viu mergulhada naquele mundo de antigas preferências, amontoado de móveis de desenhos rebuscados e de tons carregados, além do que recheado com dezenas de reproduções de estatuetas do alvorecer do século e povoado de lustres decadentes, foi de que estava a regressar a um tempo que não chegara a conhecer, e que, aliás, não via razão para um só pouco disso se lamentar.
Quase que deu um passo para trás, refugando a idéia de que ali doravante afundaria os seus dias e as suas noites, principalmente as noites, ela que se deixava consumir por um medo danado das almas do outro mundo. E pelo visto, consideradas as idades de quase tudo que enxergava espalhado por ali, desenganadamente que cada coisa já passara pelo senhorio de pelo menos duas ou três criaturas agora desencarnadas, não havendo certeza de que ao menos uma delas, mais apegada à coisas mundanas, não voltasse de vez em quando para vistoriar seus pertences.
Ainda assim conseguiu ponderar sobre o pró e o contra, levar em conta que ia longe, muito longe, a melhoria de se ver arrancada do quarto e sala que compartilhava com duas companheiras de façanhas noturnas, e, além de tudo as vantagens da escora do engravatado afamado, salário de encher os olhos, carro na porta, e, além de tudo, a prevista reverência de um monte de gente que hoje a olhava de mau jeito . E isso, ela bem sabia, haveria de acontecer num piscar de olhos, pois que se é verdade que muitas vezes se vale pelo mal que se pode fazer, nada tem mais serventia que a promiscuidade com os poderosos, a ostentação de um cargo importante, ou ainda a imagem, que seja, de que se carrega um saco dinheiro nas costas, para se ver um intrujão virar cidadão prestante, um impostor ser consagrado em obreiro do bem comum, ou até uma meretriz metamorfosear-se em dama de induvidoso honor.
Só que tais matutações não tiveram muito tempo de vida. Sobrecarregado pelo furor que lhe devastava as entranhas, foi logo Felício a arrancar-lhe a meia-blusa que lhe deixava devassada a varanda dos peitos e escancarava ao mundo a paisagem do seu ventre enterrado, a arriar-lhe a calça apertada de brim azul-marinho e a lançar longe a calcinha asa-delta em tudo e por tudo naquele instante mais do que dispensável, sacudindo-a, finalmente, sobre a cama disfarçada por um lençol gasto que já fora branco, ancas apontadas para o teto enfeitado por um pendente ameaçador.
Pensou ela, mal assanhada pelo sincero susto por que consumida, que logo teria os ofegos dele a lamber-lhe o corpo inteiro, as suas mãos gulosas a amassar-lhe os seios e os seus irreverentes dedos a vencer-lhe as passagens, num ritual lascivo que desmancharia num urro gozozo que o faria desabar exausto sobre seu corpo derretido em suor. O que sentiu, porém, nas ouças e nas vistas, foi a intromissão inconveniente do lampejo da máquina fotográfica, numa profusão incessante de cliques que se repetiam a cada instantâneo e que logo passou a exigir-lhe novos ângulos de visão. Agora pernas juntas, logo depois perdas afastadas, mais tarde pernas dobradas, em seguida pernas estiradas, num momento quartos repousados, noutro quartos levantados, sem que lhe fosse comandado, uma vez sequer, que virasse o rosto ou se fizesse de frente.
Fosse o caso de tudo isso ter parado por ali, talvez as coisas tivessem tomado um rumo diferente. Mas o fato é que a cada dia passaram a se renovar aquelas sessões cansativas, num mesmismo extenuante que já lhe esgarçava a paciência, mesmo que inevitavelmente desaguassem na celebração da entrega, aquela que produz o milagre da conjunção das metades e opera a completação do ser.
Mesmo meses à frente, quando já conquistara ele a sua obra definitiva, pendurando-a na sala de visitas, em tamanho gigante, sem o zelo de lhe presentear qualquer moldura, pois que no seu dizer roubaria a espontaneidade da imagem, ainda assim a estória não chegou a encontrar outro roteiro. E continuou ele, como a cumprir rígido ritual a que compulsivamente se sujeitava, a não deixar que descansasse a teleobjetiva, persistindo na colheita persistente das imagens dos seus quartos polposos e empinados, que dizia insinuantes, quando amassados pela calça apertada azul-marinho, deslumbrantes, quando despudoradamente exibidos na cama, numa promessa de entrega, divinos, quando enfim tocados e desbravados por seus acesos sentidos.

.

Naquela manhã, quando Felício abriu os olhos e deu de frente com a luz do sol que varava a janela, nem poderia imaginar a surpresa que aquele dia incomum lhe reservava. Nem mesmo quando estendeu o braço e procurou a bombordo o corpo quente de Felina, que costuma dormir com o rosto colado ao travesseiro, deixando ao deleite das suas vistas os seus quartos polposos e empinados.
Mas quando descobriu coragem para erguer o corpo,
depois de dois ou três espreguiçamentos que lhe repuseram os ossos no lugar, quando gritou o nome de Felina e não teve resposta, e, finalmente, quando estirou os olhos sobre o bilhete, lavrado em tinta vermelha, que estava colado em uma das portas em espelho do guarda-roupa envernizado, mesmo sem saber o porquê já lhe assaltou a suspeita de que ela não lhe iria responder, pois que na verdade nem lhe era dado escutá-lo. Lendo, então, o aviso embutido naquelas escassas palavras, que lhe vinham em letras mal desenhadas, se bem que com certo aprumo, fincou-se a certeza de que ela anoitecera mas não amanhecera.
- Cansei de ser menos importante que a minha própria bunda – dizia ela. – Quem sabe um dia, se você criar juízo, a gente ainda possa se cruzar.
É claro que o impacto foi dilacerante. No instante pontual, até que Felício por pouco não saiu correndo de cuecas, escada abaixo, pois que, naquele transe, não tinha como ser o tanto paciencioso para aguardar a ronceira ascensão elevador, na esperança de ainda encontrá-la no meio do caminho, cobri-la de promessas que de ante-mão sabia que não ia cumprir, e, finalmente, reconduzi-la todo ancho ao apartamento de antigas preferências.
Chegou mesmo a sentenciar que a sua vida desmoronara, como o fazem todos aqueles que são atropelados pelo infortúnio do abandono. E até cogitara de matá-la, no rumo da evitação de que ela se jogasse em outros braços, perenizando o oco da perda, ou até mesmo de se dar fim, o que lhe consagraria o providencial escape da convicção da ausência.
Já passado dos quarenta, contudo, sentado na experiência que lhe precedera a sua moderna viuvez, e ainda sacudido pelas admoestações que por certo viriam da sua mãe corregedora, esta que era um tonel de intolerantes virtudes, concluiu, mesmo que a duras penas, que nada disso faria o menor sentido. Ninguém é senhor do corpo ou da mente ou do amor de quem quer que seja. O esforço de qualquer um, na procura ansiosa de se fazer querido por quem de fato não o quer, quase que fatalmente só se desmancha na decepção ou na desgraça. De resto, como se deixar de ser desamado, quando só se quer mudar o outro sem que se aceite mudar a si mesmo?
E estava sacramentado que ele não mudaria. Até porque andava tão cioso dos seus próprios motivos, que nem tinha tempo para sequer procurar saber das possíveis razões em que ela se assentava. Quanto mais para sopesá-las. Assim sendo, ela, se o quisesse, que tratasse de mudar, porque ele não arredaria um só pé do que quer que fosse.
Ao topar, entretanto, com aquele vazio que desnudava a sala de visitas amontoada de móveis de desenhos rebuscados e tons carregados, amontoada de reproduções de estatuetas do alvorecer do século, eis que finalmente explodiu o seu desespero. A foto já não estava lá. Aquela foto instigadora, deslumbrante, das quase divinas cadeiras de Felina, aquela de fala macia de quem tem medo de conspurcar o silêncio.
Até aceitaria que ela se fosse, que o desprezasse, que até mesmo o humilhasse, passando-lhe na cara a evidência de novas paixões. Isso tudo seria coisa fácil de suportar. Mas surrupiar a foto da sua desnudada bunda polposa e empinada, era isso condená-lo a verdadeira orfandade. Tal afronta não teria ele com engolir.
Daí por que até teve de reclinar a cabeça na abúlica e aparentemente alheada paciência de um analista, em cujas notas, que por estranhos desígnios foram descobertas na lata do lixo, está registrada a curta passada que distanciou Felício da consumação do suicídio.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui