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Contos-->O DESCASAMENTO DA PAZ DESCOSIDA -- 03/01/2002 - 10:49 (CARLOS MÉRO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



Já não se acamavam juntos por uns três pares de meses. Não que se tivessem desencontrado no rastro das desavenças e muito menos se inimizado aos solavancos da malquerença. Muito pelo contrário, fora vindo ninguém sabe de onde, até parecendo sem razão de ser, que pouco a pouco se plantara a distância surda que lhes parira a indiferença. E nisso, a bem dizer que quase imperceptivelmente, afogou-se a paixão, empedrou-se o desejo, amornaram-se os toques, enregelaram-se os beijos, apartaram-se os destinos, e, de uma hora para a outra, desfez-se o amor no vazio que lhes ocou os destinos.
Não fosse o casal de filhos que viam dormir no quarto ao lado, o mais novo faz pouco desmamado, o outro mal se erguera sobre os próprios pés, talvez há mais tempo já se tivessem dado conta do sem-remédio, cada qual tomando o rumo que lhe apontasse a esperança ou lhe ditasse o desengano. Ela mesma, afogada no fingimento de uma interminável arrumação, já consumira tardes inteiras a inventariar seus livros, suas cartas, seus discos, seus álbuns de retratos que a cada olhada lhe arrancavam algumas lágrimas incômodas, suas roupas, enfim, seus sapatos e suas raras jóias. Já ele, percorrendo as noite como um mal-assombro, vezes sem-número refizera as contas, pressentira os compromissos, preconizara o depois, antegozara a liberdade que não sabia ao certo se era aquilo mesmo o que perseguia.
Mas quando enfim se encolhiam sobre os lençóis agora não mais compartilhados, e, afogados em um sono de faz-de-conta, cada um catava refúgio contra possíveis ardências que consumissem o ventre do outro, era a imagem dos infantes que lhe lotava as mentes amortecidas. E por mais que se quisessem livrar dos seus olhares de busca, dos seus sorrisos de entrega, dos seus abraços de súplica, era como se morressem a cada vez, reincidentemente esmagados pela impiedosa certeza do remorso anunciado.
E não fora por outra razão que, cada um a seu modo, vez por outra se empenhara em recolher os destroços, ao ponto de até margeando a corrente do orgulho, este que nos garante a condescendência com que nos toleramos, admitir um pouco da culpa que os empurrara ao desconsolo. Só que era como se o próprio tempo conspirasse contra eles, nunca se dando que seus espasmos de concórdia se cruzassem sobre um mesmo ponto de confluência.
Uma dia, então, como se as suas histórias tornassem a convergir, mesmo que agora no contraditório rumo da inevitável dispersão, firmaram-se na certeza da farsa que é o amor que se não basta em si mesmo. E assim, finalmente certos, cada um ao seu modo, de que era pela tração do pretexto dos pequenos, e não ao empuxo da comunhão dos seus recíprocos ofegos, que pesadamente se arrastava a aliança que os consumia, deram-se de frente num cair de tarde, e, como se cuidassem da maluquice do clima, ou talvez da utilidade da aurora boreal, desposaram-se na disposição de se descasarem.


O acordo foi selado sem qualquer angústia ou contratempo. Dos meninos, eis que ainda pelancos não teriam como se desgrudar do rabo da saia da mãe, cuidaria ela sob a proteção dos sustento que seria por ele garantido. Dos bens, que não somavam mais que um apartamento de dois quartos e uma cansada perua de quatro portas, primeiro carro que não haviam comprado de segunda mão, sem contar as coisas da casa, cuja repartição não teria sentido, a ele só caberia mesmo a condução, até porque, destinado ao regresso à casa paterna, montada de um tudo, não teria de se preocupar com mais nada. Todo o resto, portanto, ficaria do jeito mesmo como estava, só que de rigor passado para o nome dela.
Em certo momento, mesmo, até se sorriram, varridos pelo alívio que lhes domara as consciências, para logo se aventurarem a alguns afagos faz pouco desusados, muito mais tangidos pelo sossego redescoberto que pelos apelos dos desejos redespertados. Mas mesmo assim findaram por celebrar o ritual de uma estranha despedida, ele teso como nunca mais estivera, ela derramada em humores que lhe ensopavam as coxas trementes, até que depois de se lamberem de corpo inteiro, ela escancarada, ele enfiado em suas carnes hospitaleiras, explodirem num gozo retumbante nunca dantes convivido.
Logo depois, ao se ensaboarem compartilhando o mesmo chuveiro, faltou-lhes engenho e arte para disfarçar um certo constrangimento, do que davam testemunho aqueles desbotados ares de riso com que incomodamente se surpreenderam. Só que não passou disso. E já nos começos da tarde do dia seguinte, bem mal fora aberta a porta do cartório, eis que o advogado comum, sob seus olhares complacentes e resignados, aforava a petição que lhes era conduto do descasamento complacente.
Se esperavam, contudo, um desfecho acelerado, até porque inexistente contenda, pondo-se cada coisa pressurosamente no seu devido lugar, logo tiveram de tirar os seus cavalinhos da chuva. Audiência, o que é bom, só para quatro meses mais adiante, porque nenhum magistrado, para ser franco, seria burro de carga para suportar o caminhão de trabalho despejado naquele Juízo.
Ademais, nem mesmo o pedido de separação de corpos seria desde logo despachado, porque sendo quinta-feira, véspera de feriado, seria no mínimo um despropósito acreditar numa decisão assim tão precipitada. Que aguardassem, portanto, que escorresse o curso natural das coisas, em sendo o caso se separando de fato, se isso lhes fosse do desejo, no que aliás prontamente consentiram.
Cada um então, perseguindo o seu novo destino, catou o caminho da própria casa, aquele mesmo que lhes alargava a distância.


Só que não foi no momento previsto que se deu a ansiada audiência. Como também não aconteceu na segunda e muito menos na terceira data que foi solenemente designada para tal ato solene, quando o primeiro impulso do juiz seria convencê-los a se reconciliarem, como se o desastre de uma vida inteira pudesse ser apagado por um apelo à tolerância e muito menos por um exercício de assanho das emoções.
Assim, mais de seis meses já se haviam derramado desde o dia em que o socorro judicial fora provocado, quando de repente foram surpreendentemente chamados à presença do juiz, e, mais espantosamente ainda, por ele escutados e estimulados ao recomeço que não teve alvorecer, sendo ainda mais incrível que só nisso se ficasse, tangendo-se a sagração do acordo para dia de futuro incerto.
Acontece que foi naquele mesmo instante em que ele, não saberia dizer se fustigado por um pouco ou por um bom bocado de sentimento de posse ainda não domesticado, deu-se a enxergar uns olhares atravessados que se estiravam entre ela e o advogado. A princípio até que se empenhou em se plantar a convicção de que esbarrava em fantasma. Quando já haviam deixado, porém, o empoeirado cubículo que se erigia em cartório, cujo piso era quase repleno de pilhas e pilhas de processos encalhados, quais insólitos obeliscos testificadores da impotência das leis, eis que viu se esfumar, de uma vez por todas, a derradeira dúvida de que ela já se apressara em acasalar-se, logo ela que, pelo convicção agora subitamente reconstruída, ainda era desenganadamente a sua mulher, quer quisesse, quer não. E sendo assim, fora um desaforo ter ela aceito a melosa oferta do advogado, quando, já não calçada, prontificou-se a levá-la em seu carro, fosse ela para onde fosse.
Começou, então, a segui-la de longe, a telefonar-lhe mais do que o aceitável, a esgueirar-se nas palavras e nas perguntas, no afã não admitido, porém mesmo assim deliberado, de surpreender-lhe um escorrego, como se estupidamente só lhe servisse o desvendamento da traição tardia. Chegou mesmo a por no seu encalço um certo primo tirado a valentão e esmerado na arte de criar boatos, coisa que é de dizer só lhe entornou a ciumeira, na hora em que, estupidamente bestificado, deu com os dois de conversa animada, escorados no ponto de ônibus na Rua das Verduras.
Daquele dia em diante, a primeira coisa que fez foi deixar de lhe mandar a cada mês, como vinha fazendo religiosamente, o dinheiro que se prestaria ao sustento dos meninos. O toca-fitas, que pelo acerto ficaria com ela, passou a lhe ser bem de valor estimativo, vez que lhe fora dado por sua mãe, razão por que numa manhã de domingo, quando sabia que ela estava na praia, invadiu-lhe a morada e arrebatou-lhe o equipamento. Já o apartamento, dado que só ele trabalhava e por conseguinte também só ele levava dinheiro para casa, fora adquirido ao custo do seu suor e do seu sangue, pelo que injusto ficasse ela com ele, sendo mais acertado, muito mais mesmo, fosse vendido para que partilhassem o fruto meio-a-meio.
Ela, por sua vez, já não o deixava ver os meninos, baixou ordem na portaria para que não permitissem que ele subisse ao apartamento, passou a cortar caminho sempre corriam o risco de se cruzarem, danou-se a sair à noite com as amigas solteiras, coisa que sabia que profundamente o molestava, a ponto dele findar maldando que ela hasteara a bandeira do arco-iris. Até no jeito de se vestir ela mudou, encurtando as saias, enterrando o biquini no rego da bunda e espichando as mangas das blusas para desvendar os peitos que ainda eram duros e empinados como dois cavacos-chineses.
De que ele tenha tido prova de que ela andou com quem quer que seja, ou mesmo de que ela o tenha feito, ainda que ele disso nunca tenha tido certeza, temos aqui pontos que nunca foram esclarecidos. Do mesmo jeito que nunca se fez demonstrado, apesar de tudo o que ela disse e mesmo da pedrada com que seu irmão estraçalhou o para-brisa do carro dele, que foi ele o mandante da tentativa de atropelá-la no Dia da Confraternização Universal.
Mas não se pode deixar de admitir é que, meses e meses depois, quando o juiz encontrou uma brecha para ouvi-los sobre o acordo que haviam proposto, já nem de longe lhes persistia a idéia da separação consensual, aquela que pariram juntos, na noite em que, depois de olhares aliviados, afagos imprevistos e gulosos beijos de varrer o corpo inteiro, despencaram no meio da sala de visitas, bem no meinho mesmo, vitimados por um orgasmo plenificante de ninguém botar defeito.


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