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Teses_Monologos-->A Democracia e a Social-Democracia -- 03/04/2006 - 20:49 (Carlos Frederico Pereira da Silva Gama) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A Democracia como Metodologia: frutos problemáticos do sucesso da Social-Democracia do século XX

Carlos Frederico Pereira da Silva Gama

Num intervalo de menos de seis meses, as ruas da França voltam às pautas do noticiário internacional. Após as fraturas étnicas terem sido empurradas para a dianteira no final de 2005, com uma seqüência de carros queimados nos banlieus empobrecidos de Paris, agora são os estudantes universitários, pela primeira vez desde 1968, a trazer discursos incendiários às vias públicas, em protesto contra as políticas trabalhistas do gabinete conservador de Dominique de Villepin. A propalada “Lei do Primeiro Emprego” facilitaria aos empregadores demitir sem justa causa seus empregados menores de 26 anos.

Medidas de tal cepa não são exceção, nos últimos 20 e poucos anos, no cômputo global. Muito antes pelo contrário. Correspondem ao que se convencionou chamar de “flexibilização do mercado de trabalho” e mais de um autor a considera um vetor fundamental da “globalização” contemporânea (Dupas, Manzano, Kóvacs, Rudiger etc). Constatar sua adoção, tanto em regimes políticos democráticos quanto em outros tipos de regime, no mesmo intervalo temporal, alimenta mais do que debates sobre a morfologia da “globalização”. Esta constatação de torna uma oportunidade para repensar o significado atribuído correntemente ao termo “democracia”.

Em diversos artigos, o filósofo Renato Janine Ribeiro caracterizou a Democracia como um “regime do desejo” . Com isso, não quis o filósofo trazer à baila conotações populistas ou cesaristas (no qual as “massas” seriam insulfladas pelo demagogo de plantão); o sentido atribuído ao “desejo” tampouco é o de Sigmund Freud, qual seja, um conjunto de pulsões caóticas carente de um mecanismo regulador (o Estado?). Mais que um conjunto de carências de satisfação imediata ou um conjunto de tendências inatas do homem, o filósofo se refere ao desejo como “futuro contruído”, como aspiração de um ser consciente e reflexivo a alterar sua própria condição.

Ribeiro, em seguida, tece uma comparação entre a Grécia antiga e as sociedades modernas. Na primeira, um grupo socialmente coeso (homens, nativos de Atenas, maiores de 21 anos de idade, proprietários de terra) definia, em uníssono, as questões que julgava relevantes e propugnava soluções (enquanto o restante da população apenas sofria as conseqüências); nas últimas, com a rápida diferenciação social moderna e a progressiva incorporação de novos grupos sociais ao processo, temos um cenário de crescente complexidade e resultante tensão. Como ficaria equacionado o desejo, nas democracias modernas?

Soluções foram aventadas para o problema de contemplar os desejos de uma miríade de grupos sociais distintos. A mais conhecida e antiga delas é a fusão do Estado com a Nação, com a Soberania atuando como “molde” através do qual uma população altamente diferenciada é tornada “idêntica a si mesma”, às custas de outras formas societais (a comunidade aldeã, a comunidade dos fiéis de uma determinada religião etc). Mesmo essa solução não logrou conter os movimentos abarcantes da Modernidade – da racionalidade “cosmopolita” aos à constituição de mercados transfronteiriços. O próprio sucesso relativo de alguns estados-nação tornava-se, em seguida, ímã para o desejo “migrante” de outros grupos sociais alhures (o que os economistas conhecem como “efeito demonstração”). Não custa lembrar que a solução soberana, no mais das vezes, descambou para alternativas não-democráticas.

Uma forma de equacionar o problema do desejo na democracia, no século XX, teve lugar quando do fim da Segunda Guerra Mundial. A derrocada dos regimes autoritários do Nazismo e do Fascismo e a ascensão do Socialismo stalinista implicava um desafio às instituições políticas na Europa. Teve então lugar uma forma de cooperação parcialmente institucionalizada entre grupamentos políticos no plano nacional e transnacional – um novo “pacto social”, mediado pelo Estado soberano, entre o que os marxistas diriam ser os representantes do Capital e do Trabalho. O “Estado do Bem-Estar Social” adentrava o cenário, ombreado por uma série de consensos traduzidos em políticas públicas, garantindo segurança e prosperidade para o empreendedor e para o trabalhador, ao passo que o agregado econômico nacional se recuperava frente aos competidores externos.

Inegável o sucesso dessa forma institucional típica da segunda metade do século XX, em termos econômicos, sociais e por que não, culturais. O “milagre social-democrata” da chamada Era de Ouro do Capitalismo do século XX, porém, deixaria um legado problemático, no que se refere ao conceito de Democracia.

Retomemos a argumentação de Ribeiro. A Democracia, como regime do desejo, no contexto moderno implica a sobreposição e a competição entre diferentes grupamentos sociais, visando a construção de um futuro tido como desejável. O advento (excepcional) do “grande pacto” que levou à criação, frutuosa, do Estado de Bem-Estar Social parecia solucionar ambos os problemas – regimes políticos não-democráticos não tinham performance comparável e a Democracia européia da metade do século XX parecia ter encontrado, reflexivamente, o “ponto arquimediano” entre o Capital e o Trabalho, qual seja, contentando a todos de forma definitiva.

Levando o argumento de Ribeiro a uma conclusão lógica, porém, entrevemos um matiz sutil, mas fundamental para entender o legado problemático da Social-Democracia: o desejo também opera de forma reflexiva. A construção de cenários futuros, por parte de indivíduos e grupamentos sociais racionais, implica uma reflexão que não se esgota no que está posto no “aqui e agora” – implica uma dinâmica de novas demandas e de criação de novas fontes de satisfação. Podemos citar algumas dessas fontes, tais como o avanço tecnológico, o próprio intercâmbio de produtos culturais entre indivíduos e estados.

Se o desejo não cessa mesmo diante de sucessos de monta como o da Social-Democracia, a dinâmica de sobreposição e competição entre grupos sociais reaparece em algum momento do caminhar das sociedades. Escolhas hão de ser feitas e o consenso não pode durar ad infinitum. E isso não representa um desafio à Democracia; este é o perene desafio democrático. O legado problemático de 1945 reside precisamente na suposição de que, após a 2a Guerra Mundial, Democracia confunde-se com consenso; seja consenso axiológico, seja consenso pragmático, referente a um dado conjunto de políticas públicas. Um problema ainda mais grave vem a seguir, quando se passa a supor que pensar e propor alternativas, a qualquer momento, às políticas públicas vigentes constitui uma ameaça à própria Democracia; qualquer “desvio de rota” seria uma ameaça potencial ao próprio regime democrático (um contra-senso, se atinarmos para o mecanismo reflexivo do desejo).

Indo em sentido contrário ao senso comum, não foram os “novos liberais” (sic, sic) da segunda metade do século XX os responsáveis pela consolidação de práticas políticas que “engessaram” a Democracia, regime do desejo, tornando-a apenas de um mecanismo de solução de controvérsias previamente postas, um mecanismo de alocação de recursos escassos ao longo de linhas de ação previamente determinadas, um mecanismo de solução de problemas através da competição entre elites, segundo determinadas regras. Em contraposição ao que poder-se-ia dizer da Democracia no início do século XXI – uma metodologia – ao longo de séculos, assistimos à Democracia servir de berço e sustento para novas idéias e demandas de inúmeros grupamentos sociais, contextualizadas e mesmo universalizadas a posteriori. De outra sorte, a Democracia torna-se praticamente trivial – insípida, inodora (e insatisfatória, um presente para os autoritários de plantão). As semelhanças entre nossas democracias e os regimes autoritários, curiosamente, têm que ver com o sucesso democrático de décadas atrás.

A célebre frase de Margareth Thatcher – “não há alternativas” – longe de um adágio liberal, é o DNA do “grande pacto” social-democrata sendo disseminado num contexto social diverso, propalando práticas políticas anacronicamente tomadas como “atemporais”. O cada vez mais freqüente fenômeno da indistinção programática dos partidos políticos mundo afora , borrando os traços da divisa Esquerda-Direita, não é senão a herança viva do sucesso estrondoso daquele experimento político transnacional do século XX, o Estado de compromisso entre classes e grupos sociais teoricamente antagônicos, erigido através de um consenso excepcional.

Corte para as ruas da França, 2006. Ou para o Brasil, às vésperas de mais um pleito presidencial. Ou para os Estados Unidos da América, nos estertores de um governo. Não é difícil, nesses dias que correm, encontrar exemplos desse aparente “beco sem saída”, em contextos tão distintos quanto os governos Lula e Bush. Mais imediato ainda, salta as olhos a similaridade entre processos que ocorrem nesses regimes democráticos e nos regimes tão pouco democráticos que ainda abundam, nesse século XXI. O desejo não pede passagem, (isso já era sabido em 1945).

Já aprendemos que a Democracia pode avançar em determinados momentos através de um amplo consenso. Resta saber se seremos capazes de aprender a lição, tão ou mais democrática, do dissenso, da pluralidade de demandas e opiniões – que não morram nas palavras. E que não seja olvidado o valor do debate, em ambas as situações.
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