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Contos-->UM CAUSO DE NATAL -- 29/12/2001 - 22:48 (CARLOS MÉRO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Dizia Frei Sertório, com aquele linguajar atravessado que às vezes até custava decifrar, que sempre que vencia as distâncias do interminável claustro do Convento de Nossa Senhora dos Anjos, nas horas caladas que se enterravam noite a dentro, cruzava de quando em vez com as almas penadas de alguns tonsurados, alguns sem cabeça, outros arrastando pesadas correntes, outros, enfim, com as faces derretidas pelo que poderia apontar para o furor queimoso de implacáveis labaredas.
Na primeira vez em que esbarrara em tais assombrações, talvez porque noviço em tais transações com as coisas do além, desembestara como um louco no rumo da sua cela, onde, trancado por dentro, espantara a escuridão com as chamas vacilantes de quatro ou cinco velas, jogara-se na cama, encolhera-se todo e se cobrira de corpo inteiro, salvo pelos olhos vigilantes que não se despregavam das frestas da porta.
De tanto, porém, que tais visagens passaram a fazer parte do seu dia a dia, logo mais nem mesmo susto lhe causavam, pelo que, apesar delas, continuava a piedosamente ler o seu Breviário, até que o sono o domasse ou que a luz da manhã se restaurasse por detrás da torre nanica que chamava para a ofício das cinco.
E assim se deu por anos a fio, até que numa certa noite de Natal, tudo preparado para a Missa do Galo, lá saiu ele da sacristia, todo paramentado, com capa de asperges e tudo o mais, trôpego, como sempre andava, refém dos artelhos deformados que se montavam uns sobre os outros.
Foi então que deu de frente com Pinha, demente de nascença, porém naquela noite mais demudado e arquejante do que nunca estivera antes, ali ajoelhado em frente ao altar-mor e desmanchado em lágrimas, tartamudeando, aos prantos, uma reza ininteligível, salvo para o infante sorridente que lhe abria os braços do fundo da manjedoura, pois que sendo Filho de Deus é claro que conhece tudo, mesmo o que vai por dentro da cabeça dos que são faltos de juízo.
Mas nem por isso Frei Sertório deixou por menos. E foi então que, bufando de raiva, arrancou a estola, derrubou quatro lapadas nos costados do miserável, e, aos gritos, mandou-se a tangê-lo igreja conventual a fora, até que o viu largado no olho da rua.
Só que mal lhe deu as costas e um puxão na alva lhe chamou as vistas para um menino de quatro ou cinco anos, olhos claros de um brilho estranho, rosto redondo de anjo barroco, que lhe perguntou com a mansidão dos puros:
- Ele não disse que os inocentes terão o Reino dos Céus?
O frade, ainda babando a sua ira, até que não deu muita atenção ao que ouvira.
Mas logo mais, quando chegou a hora de dizer o sermão que preparara faz dias, era só aquela frase, eram só aqueles olhos límpidos, era só aquela voz macia que lhe vinham à mente, enquanto que uma rouquidão inesperada tapou-lhe a garganta.
Na hora do ofertório, então, com seus passos trôpegos sobre aqueles pés gigantes de artelhos escanchados uns sobre os outros, ainda teve fôlego para cumprir a nave da igreja, mostrar-se na porta maior, seguir até o meio da rua, colher a mão de Pinha e conduzi-lo até os degraus que levam ao altar mor, dizem que com duas lágrimas a lhe lamberem as faces estriadas pelo rigor dos anos e pela austeridade da vida franciscana.
E a partir daquela noite, sempre que varava as madrugadas a percorrer o interminável claustro do Convento de Nossa Senhora dos Anjos, olhos presos nas páginas amareladas do seu Breviário, Frei Sertório nunca mais foi perturbado pela visão aterradora de frades desencarnados e penitentes, alguns sem cabeça, outros apresados em pesadas correntes, outros, enfim, com as faces derretidas pelo que poderia apontar para o furor queimoso de implacáveis labaredas.



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