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Artigos-->25. DÉCIMA PEREGRINAÇÃO ASSISTIDA -- 11/09/2001 - 10:07 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Décio seria o próximo a se submeter à regressão de memória, como mais modernamente os homens estão denominando essa imersão no eu profundo, por meio dos recursos psicanalíticos, entre os quais o da hipnose induzida. Entretanto, o nobre companheiro abriu mão da vez, alegando que não estava preparado para a segunda parte dos trabalhos, ou seja, para a excursão à crosta terrestre.



Resildo lhe propôs a alternativa de decidir-se posteriormente ao exame que levaríamos a efeito. A resposta de Décio foi mais ou menos assim:



- Prezados colegas, sei que todos deveremos passar pela prova dos noves arbitrada de comum acordo com os professores. Só desejo adiar a minha vez, porque me sinto muito inseguro só com a idéia de me expor ao pessoal da família ou aos parceiros da turma das arruaças. Como vocês sabem, pertenci a uma torcida uniformizada, daquelas que não gostavam de se ver sob a arrelia dos adversários vencedores, mas que tudo fazia para depreciar os outros, quando nosso time vencia. Foi na sede da entidade (dita) esportiva que aprendi a fumar maconha, derivando desde logo para outros vícios. Vejam que eu era um trabalhador muito sério, apesar de humilde. Exercia o ofício de boy e me considerava o mais feliz dos mortais. Namorava muito e me dava bem, porque tinha facilidade de falar e muita lábia para as meninas. Mas isso não vem ao caso. O pior de tudo é que escondi de meus pais o que acontecia internamente no prédio da torcida, correndo por fora para a surpresa desarvorada (este termo aprendi com Resildo quando fui entrevistado pela primeira vez) dos meus parentes, quando sucumbi vítima (vejam só) de uma bomba caseira que eu e mais dois preparamos para atirar sobre os desafetos. Só eu pereci no evento. Os outros dois tiveram algumas queimaduras sem importância e foram capazes de desaparecer, largando o meu corpo dentro do ônibus em que viajávamos. Sendo pobre, a polícia, como acontece quase sempre (se estou precipitando um julgamento desabonador, perdoem-me os leitores), não foi fundo nas investigações e tudo terminou em pizza. Meus pais, coitados, é que ficaram muito tristes porque gostavam de mim e o dinheiro que eu levava para casa, apesar de pouco, sempre ajudava nas despesas das compras de comida para os mais novos. Essa minha absoluta falta de responsabilidade tenho atribuído à inveja que dedicava aos mais abonados, aqueles que podiam ter os seus carrões do ano e outras coisas que eu só conhecia através das revistas que ficava folheando nos escritórios, onde passava o tempo fazendo hora. Estou me revelando um cara bom de bico, malicioso e, para o cúmulo do azar (para mim, é claro), os meus pais se voltaram para o espiritismo e ficam toda a hora amargurados, porque eu não vou conversar com eles durante as sessões. Eu bem que falei que era bom de papo. Se vocês me derem corda, não vão nem precisar fazer com que eu me interne em mim mesmo.



O redator pede a compreensão dos leitores jovens para o fato de não haver transcrito totalmente a linguagem do companheiro, toda ela muito expressiva pelos termos de seu uso coloquial de paulistano. Ficou a fala do parceiro meio macarrônica e explicamos o porquê do fato. Tivemos a intenção de solicitar ao orador que corrigisse o texto, mas ele teve a boa idéia de falar antes com Resildo, porquanto desconfiava de que todas as suas expressões particulares tornariam a fala obscura para os leitores de outras regiões ou de outras épocas, com o que o instrutor concordou. Décio foi um pouco além:



- Vocês devem fazer força pra contar o que se passa com a gente da melhor maneira, mas não creiam que terão o privilégio de serem lidos por muitos encarnados. Se forem, pelo menos resguardem o linguajar misturado, acrescentando (como se fosse uma nota de pé de página) esta minha recomendação. Não é verdade que sou um cara prevenido?



Mas voltemos ao dia em que Resildo fez a proposta ao amigo para que se submetesse de boa vontade à imersão consciencial.



Após a longa fala, tivemos oportunidade de demonstrar que não concordávamos com a atitude dele, a qual daria oportunidade aos demais de solicitar a mesma coisa. Na verdade, o critério de Resildo para a escolha não era exatamente aquele da fila dos necessitados. Ponderava o mestre, principalmente, os meios disponíveis para um bom resultado, cabendo-lhe a ingrata tarefa da pesquisa junto aos elementos envolvidos nos relacionamentos de cada um de nós. De resto, mantinha as fichas atualizadas por informações trazidas pelos monitores que designava para os contatos.



Sendo assim, Resildo encostou o aluno na parede:



- Caro Décio, é bom que você saiba que estamos muito interessados em oferecer à classe a oportunidade da visita a um local para nós sagrado, qual seja, o ambiente de modesto centro espírita, onde pessoas mais humildes do que você, mais pobres e menos espertas (no sentido de passar a conversa nos outros), se reúnem para a prática do amor evangélico em relação aos sofredores do etéreo. Se você me frustrar essa fase do planejamento, terá mais um tópico com que se entender com a consciência. Nós atribuímos a cada aluno o devido valor, mas não podemos evitar o momento crucial da decisão. O seu livre-arbítrio vale tanto quanto o de qualquer outro na colônia, em função das realizações programáticas. Está entendendo aonde quero chegar? Arrisque um palpite.



O colega, coitado, suava em bicas, porque não esperava semelhante raspança. Mas não tinha o que fazer porque os argumentos eram muito enérgicos e ele fora tomado de surpresa. De qualquer maneira, intentou uma explicação:



- Não pretendo ser a ovelha negra do redil. Se quiserem que eu me doe à imantação, tudo bem. O que não sei é se vou poder corresponder às expectativas, quanto a me apresentar aos meus pais.



- Quer dizer que concorda com a ida ao centro?



- Depois de ouvir a fita gravada pela voz da minha consciência.



- Você acha que vamos extrair alguma coisa além do que já nos disse?



- Nunca se sabe.



Após uns bons vinte minutos de trabalho, finalmente o companheiro se deixou influenciar pela indução hipnótica.



- Quanto tempo você permaneceu perdido no Umbral?



- Uns seis meses.



- Você acha esse tempo muito ou pouco?



- Sofri como um condenado. Só fiquei sabendo que se haviam passado seis meses, quando fui recolhido pelos socorristas da colônia.



- Mas esse tempo foi longo ou curto?



- Às vezes, dez minutos parecem muito mais do que cem anos.



- É sempre dessa maneira que você reage às questões diretas?



- Pouco mais ou menos. É que não vejo utilidade em pensar a respeito do maior ou menor mérito que tive em ser trazido para cá mais ou menos cedo que os demais.



- Terá você receio de despertar a inveja dos outros, dizendo que foi o que logrou a passagem mais rápida pelo desespero consciencial?



- Eu não iria tão longe nas conclusões. Talvez isso tenha passado pela minha cabeça, mas não teve peso muito grande na decisão de não responder.



- Então, o que mais pesou?



- Acredito que tenha sido o fato de subsistir a renitência em me apresentar aos meus pais.



- Você não vê nenhuma vantagem em dar conforto aos velhos?



- Vendo por esse prisma, até que deveria aplaudir a decisão deles e de Resildo.



- Mas não é verdade que, para progredirmos, temos de pensar muito mais nos outros do que em nós mesmos?



- Se fosse essa a minha idéia lá na terra, não teria sequer entrado para a torcida. Mas por que é que os humanos incentivam tanto as competições, as facções, as lutas e litígios entre os grupos? Até dentro das cadeias, onde os criminosos mais... (vocês entenderam), eles se reúnem para o efeito das gangues. Nas igrejas e até no espiritismo, formam-se grupos que estabelecem padrões de conduta comuns, para a defesa dos seus pontos de vista e de seus interesses espirituais. Em suma, não levem em conta o que estou dizendo, porque sou ignorante e só passo o tempo indo de um lado para o outro, não sei se pelo vezo adquirido de boy ou se fui boy pela própria natureza da minha personalidade.



- Esse ponto chega a preocupar você?



- Não preocupa mas eu sei que deveria.



- Você tem facilidade de falar. Por que não estuda mais para ter sobre o que falar?



- Então vou dizer algo bastante sério para mim: eu acho (digo acho porque não posso ter certeza) que possuo bom senso para me dar bem com as pessoas (menos quando estão do outro lado da área de isolamento nos estádios).



- Permita-nos uma correção. Você não tem bom senso. No máximo, sabe qual é o modus vivendi daqueles com quem convive e vai levando a existência na flauta. Isso não recebe o nome de bom senso. É uma espécie de senso comum. Mas também não é totalmente o que se denomina de senso comum, porque você restringe o seu procedimento a duas ou três camadas sociais (em termos terrenos), desconhecendo completamente como deveria operar para satisfazer os princípios de convivência dos setores mais amplos da sociedade. Em todo caso, o peixe morre pela boca e você nos deu motivos suficientes para que reforcemos a sua peregrinação. Não é verdade que você se considera apto a se dar bem com as pessoas?



- Vocês estão com a razão.



A bem da verdade, no dia em que comparecemos à sessão espírita, Décio esteve muito aquém daquele sujeito desenvolto que conhecíamos. Envergonhou-se perante os pais e não foi capaz de exprimir seu arrependimento nem pôde pedir desculpas de viva voz. Acontece que tínhamos recursos suficientes para copiar-lhe as características, a fim de que fosse identificado pelos pais, de modo que um de nós se manifestou em seu nome (dele), incentivando a busca da verdade como o fator primordial do progresso cármico. Mas os encarnados fundamentavam seus projetos espíritas em espontânea fé e profundo sentimento caritativo, de sorte que pudemos usufruir de momentos plenos de felicidade, quando lhes ouvimos as recomendações doutrinárias e as preces.



Difícil foi o companheiro, ao regressarmos à colônia, conter as lágrimas. Mas essa é sensibilidade a que não estamos habituados, de forma que não temos condições de descrever-lhe os sentimentos com emoção ou empatia. Mas havemos de lá chegar um dia, se Deus quiser!



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