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Contos-->QUE PAÍS É ESTE? -- 22/12/2001 - 18:59 (Felipe Cerquize) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Era manhã de um dia útil qualquer e o centro da cidade estava fervilhando de pessoas, na sua maioria canalhas(1), que caminhavam pelas ruas de pedestres ali existentes. Muitos olhavam as vitrines, mas poucos ousavam gastar o salário recebido com algumas roupas para o corpo(2). Eu estava entre um bazar e uma relojoaria, com uma caneca de porcelana do enxoval de uma prima, fazendo um biscatezinho como cego, tentando obter uma grana extra para fazer umas apostas no bilhar do Tavares e, se possível, ainda pegar o que sobrasse para umas cachacinhas. Foi aí que aconteceu: alguém chegou para uma outra pessoa e pediu gentilmente um cigarro. Eu aproveitei para levantar a caneca e pedir uma esmola, mas antes que eu pronunciasse a frase clássica(3), já se ouvia o cidadão responder para o outro que no seu maço só havia dois cigarros e que ele não costumava ceder nem guimbas para os outros. Com aquela resposta, deduzi que não conseguiria muita coisa daqueles dois, pois se tratava de um sovina e de um filão. Comecei a baixar a caneca, quando, então, ouvi um barulho de maço de cigarros sendo amassado e passos apressados. Abri os olhos bem vagarosamente e pude constatar que se tratava de um roubo, pois o filão de cigarros afanou os dois que o avarento tinha. O pão-duro, desesperado, começou a gritar por socorro e a implorar para que alguém detivesse o ladrão de seus cigarrinhos(4). O ladrão não quis saber e foi entrando na primeira rua lateral que surgiu, parecendo que já era o dono da situação. De repente, o homem que foi roubado parou de gritar e, num ímpeto de viciado carente que gosta de economizar, saiu correndo a toda velocidade atrás do vagabundo, acompanhando-o cada vez mais de perto. Correram tanto para, no final, pararem para brigar justamente perto do meu ponto de esmolas. A multidão imediatamente cercou os dois e começou a pedir sangue. Eu, aproveitando-me da situação, levantei a caneca e comecei a pedir dinheiro, mas ninguém me dava atenção. Baixei a caneca, cocei o olho por baixo dos óculos, retirei um Carlton do meu bolso e acendi-o para me distrair, enquanto não terminava aquela briguinha. Eu estava aborrecido, pois aqueles dois já haviam tirado muito tempo do meu trabalho.

Finalmente, chegou a polícia. Rapidamente, ajeitei os meus óculos e estendi a caneca, para ver se os homens da lei teriam pena de mim. Mas eles foram direto ao assunto, deixando-me, mais uma vez, com a caneca vazia e ainda me ameaçando de prisão, se continuasse ali. Realmente, eles chegaram e cumpriram o que achavam que era o seu dever, isto é, deram pancada em quem estava assistindo a briga e em quem não estava. Quando conseguiram chegar até os brigões, eles não estavam mais brigando e sim conversando diplomaticamente para ver se era válido o filão ficar com a vinte de um dos cigarros. Os policiais não quiseram saber e entraram dando chute nos dois, que arregaram perante os justiceiros. Percebi que era a hora de usar o último cartucho, para ver se tirava algum proveito daquela situação e, então, estrategicamente, retirei oito moedas que tinha no meu bolso e lancei-as na caneca. Quando os policiais, em momento de maior violência, provocaram o silêncio da multidão, estiquei a caneca e fiz soar o tilintar das moedas, ao tempo que afirmava que era cego e que precisava muito da ajuda de todos. Com os olhos semi-abertos, para ver o efeito da estratégia, percebi que algo brilhante aproximava-se da minha caneca e continuei sacudindo-a euforicamente, à medida que abria os olhos um pouco mais para reconhecimento geral. Foi aí que descobri que se tratava de um par de algemas e que eu estava detido, junto com o filão e o sovina.

Chegando à delegacia, dei de cara com um desses delegados barrigudos, com um charutão pendurado na boca. O dito cujo perguntou-nos agressivamente o que tínhamos feito. Tomei a frente e estendi a caneca com as duas mãos(5), falando que não tinha a ver com aquela história, que era cegueta e que agradeceria uma esmola, se fosse possível. A resposta foi um violento tapa nas minhas mãos, indo a minha caneca parar espatifada no chão. Então, não conseguindo segurar mais a minha raiva, tirei os óculos, falando que todos os presentes no recinto eram calhordas e safados. Pausei para meditação e percebi a besteira que fiz. Besteira para mim, mas não para o filão que, valendo-se da desatenção das autoridades, roubou o charuto do delegado, provocando a maior confusão no recinto. Eu, já com o saco cheio daquilo tudo, saí para o pátio da delegacia e, aproveitando-me da oportunidade de encontrar um policial que estava do lado de fora, não muito a fim de trabalhar, perguntei-lhe que país era o nosso, onde os guardas chutam o povo, calças compridas custam uma boa parte do salário mínimo e a maioria das pessoas se faz de cega para continuar vivendo. Onde para cada passo de liberdade que se dá encontra-se um largo passo de opressão, seja político, econômico ou ambos, dependendo da época. O guardinha, então, respondeu-me que não poderia pensar naquilo, pois, naquele momento, estava com as mãos ressecadas. Falou isto, esperou um pouco e depois se retirou para o lavatório. Eu, como não entendi nada do que ele quis dizer, fui saindo de fininho da delegacia. Quando já estava com um dos pés na rua, um dos policiais que estavam discutindo na sala do delegado botou a cabeça pela janela e perguntou-me se eu não havia levado a sério a minha prisão. Olhei para ele e, dando um aceno de despedida, respondi que quem não estava sendo levado a sério era o nosso país.

E aí? Alguém já sabe que país é este?


(1) O mundo está infestado de canalhas.
(2) Dois pares de meia, uma calça comprida, uma camisa e acabou o dinheiro.
(3) Uma esmolinha, pelo amor de Deus!
(4) Uma questão de afetividade.
(5) Eu estava algemado.

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