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Humor-->Foi a Michele! -- 27/02/2014 - 19:09 (Tânia Cristina Barros de Aguiar) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Levantei cedo, ansiosa por buscar a prometida nova ajudante para as coisas daquilo que chamamos lar.

Neste, reina a Eudina, comedora contumaz de framboesas, que são frutas macias e derretem na boca. Colhidas todos os dias, dão a oportunidade de engolir a própria saliva, já que os músculos e o cérebro não têm se entendido, nos últimos anos.

Os músculos, porque a inteligência continua brilhante, a memória é um escândalo e ela sabe exatamente do que gosta - um curau feito pelo Jacqueline, um belo pirão de parida de galinha média da Casa Nordestina, um guaraná Jesus de vez em quando. De cuxá, enjoou, que dá vinagreira demais por aqui, no nosso lar.

Conforma-se, Eudina, com as sopinhas de inhame, mandioca, abóbora, que são mais fáceis de engolir, com seu canudinho grosso. Melhor a gente não comer outras coisas por perto, que ela fica sonhando que dá conta e diz - me dá um pedaço pra eu tentar.

Não se entristeça, leitor. Eudina viveu gloriosos 85 anos sem um remédio, seja pra pressão, diabetes, dor de barriga ou de cabeça. Hoje tem 89 e aos 84 subiu as dunas dos lençóis maranhenses e conheceu a Lagoa do Peixe. Aos 86 finalmente foi a Cuba e andou de volta, a passos firmes, em Varadero, todo o caminho percorrido pela charrete com um cavalo flatulento, enquanto eu, Ricardo, Sônia e Valéria íamos resfolegando.

E, nesses anos recentes, andou no trem das Minas Gerais, se encantou com o Caraça, onde ganhou do padre que alimenta os lobos o seu próprio escapulário. Foi a glória. Tomou mate na Pampulha, rezou na Igreja de São Francisco, mas não conseguiu almoçar no Xapuri, que estava lotado. Repetiu a cuia ao por do sol, nas margens do Rio da Prata no Uruguai - decidida que se mudaria para Colônia del Sacramento se os coxinhas continuarem nessa palhaçada. Ah, ficou toda romântica no museu de Carlos Gardel. Foram 7.500km de carro com a filha louca (diziam os argentinos do Hotel em Buenos Aires), que incluíram Gramado, Canela, Rivera, Punta Del Leste, Piriapolis, Montevidéu, Buenos Aires e uma paradinha em Santa Maria, para ver a Sônia. E, ano passado, andou de canoa no Rio Negro. Neste ano, de barco na Bahia e de cadeira de rodas nas areias de Ponta de Corumbau - ainda no mês passado.

Portanto, hoje, ela acordou animada, porque íamos buscar a Michele. Eudina sabe das coisas. Silvia vem às quartas, sábados e domingos e é o anjo quase silencioso que arruma as coisas, lavas as roupas, lhe ajuda no banho, faz suas sopinhas e cafezinhos da tarde com tapioca. E, de quebra, ajuda naquelas comidalhadas de fim de semana, quando a gente quer receber amigos e jogar conversa pra dentro da alma. Silvia faz milagre e ainda por cima nos acalma a todos, com sua ajuda generosa. Claro que ficam umas teias de aranhas por aí, uma roupa manchada, os panos de prato... mas , milagre ela faz.

Eudina sabe que tem filha aposentada, dada a costuras, pinturas, plantios e viagens. Assim, a Michele, que ficaria de segunda a sexta, era bem desejada. Teríamos mais tempo para framboesas,

Mas, Michele... nem nos deu chance. Quando chegou no lar, já percebemos. Tirou as malas do carro e as deixou na calçada. Quando viu a cadeira de rodas, sequer se mexeu para ajudar. Sussurei para Eudina - essa não fica.

No meio dessa chegada meio conturbada, lá vem Tetê para sua sessão de Reiki, abençoada, com Eudina. E eu falo pra moça - nem tivemos tempo ainda de conversar. Por favor, guarde esses refrigerantes - os Jesus da Eudina - na geladeira da varanda. E ela - "a senhora tem outra pessoa pra cuidar da casa? A Marilza não me disse que ela usava cadeira de rodas". Eu respirei. Eu poderia ter dito que tinha, que ela não faria faxina, nem passaria roupas, nem lavaria as minhas vestes. Que era só para cuidar de mãe - que não dá trabalho, é bem humorada e ainda encanta a gente quando ganha uma comidinha que gosta - "Não brinca! Pudim de leite? " E fazer o almoço, cuidar das roupas e do quarto da rainha. É muito? Eu não acho. Eu faço e ainda costuro, cuido das plantas e cozinho pros amigos. Com ajuda da Sílvia, que ela teria. Com a diferença, claro, que ela estaria recebendo pra isso. Eu faço por amor. E necessidade, vamos lá. Não sou tão altruísta assim.

Claro que eu, acostumada a ver estranhos correrem em minha ajuda, ao verem a cadeira de rodas, já fiquei com ódio da Michele. Aí fiz o teste final - pedi a ela para subir a rampa com mãe na cadeira, do jeito mais difícil. Foi só uma vingancinha. Já sabia que ela não tem coração.

E gente sem coração, tô fora.

Se lascou , Michele. Perdeu banhos de cachoeira, uma viagem pra Europa. Sim, porque nós já estávamos pensando em levar a Michele na nossa viagem para Portugal, Itália e Espanha. Se ela quisesse, claro. Perdeu também as risadas da Eudina.

Fui levar Michele para pegar o ônibus, paguei a metade da passagem, só de raiva e, na volta, Tetê, que é a pessoa mais generosa que conheço, comenta - se fosse eu, tinha aberto a porta da casa e dito - vai por ali, minha filha. A chácara é pertinho da pista.


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