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Cronicas-->Café do portuga -- 08/02/2023 - 19:43 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Considerando o que se viu até aqui, dou-me o direito de continuar a descrever a difícil relação do mundo com o mundo interno dos homens e das mulheres. Até aqui, vimos como e quando se origina um mundo, seja ele interno ou externo, captando a essência de uma alma que eu decidi que iria ser boa, porque aqui sou um pequeno Deus.
Eu acho que somos escritos, não sei como, mas não é na Bíblia que dizem: “No livro do Senhor eu escrevo teu nome” e “ A Casa de meu Pai tem muitas moradas”? Sei que talvez seja algo assim, eu creio que confundo um pouco as coisas, esta história de ler demais já me atrapalha um pouco, as citações são a pior parte de um pequeno Deus que escreve porque acha que chegou a hora de mostrar ao mundo seus pequenos talentos, então está bem, eu escrevo enquanto mastigo o misto-quente, saboreando a textura do pão feito recentemente, o sabor do presunto e do queijo derretido e sentindo no nariz o carinho dos grãos torrados de café que logo descerão e estimularão meus sentidos já exacerbados pela força da chuva que cai lá fora, vendo as pessoas passarem depressa no rumo de suas vidas rápidas nas janelas do mundo todo; eu raciocino cá em meu âmago que eu poderia ser um chinês em Beijing tomando um chá e o assunto seria talvez em como o ar está carregado hoje ou em Bombaim onde o odor das especiarias disfarçaria o estranho fedor do rio que desce caudaloso dos Himalaias, ou talvez no Camboja onde um camponês tira um berne de um boi sofrido e que serve de arrimo à minha família (tanto faz porque não sou nem Cambojano, nem africano, nem indiano, sou desta terra daqui mesmo). Eu sei que a relação do mundo interno com este estranho Mundo vasto é difícil e dolorosa, a montagem dos roteiros começa cedo e dependendo dos vetores e das direções dos ventos e estrelas, nem Deus sabe onde acabará a história. Então eu decido que a vida de meu retratado será uma cheia de paixões e áreas de sombra como é a vida de qualquer mortal, eu inclusive.
Eu não me arrependo de ter começado isto, e embora às vezes eu sinta que quem está no comando é ele, este pequeno indivíduo que nasceu de um desejo oculto e que tomou o mundo com suas mãos esmeradas, como uma divindade eu dou as guinadas nele e eu toureio sua paciência e claro está, a sua de leitor volátil. Digo volátil porque hoje ninguém se preocupa com a estabilidade e a segurança como antes se fazia, talvez porque o planeta era dividido ao meio e se sabia a quem recorrer em caso de dúvida atroz. Hoje a Verdade tem tantos lados que não se sabe mais quem mente ou se o lado que fala tem a vertente verdadeira ou é a falsa mentira estampada feito lençol vermelho em janelas lascivas, lá vem a palavra que fala de luxúria, este difícil desejo e um dos pecados capitais. A luxúria; o desejo. Eu vejo daqui as pernas bem torneadas da moça que passa, guarda-chuva para o alto, o vento quase arrancando as hastes de metal, a bunda empinada para evitar o arrojo do jato de água lamacenta que vem da rua lavada em vendaval repentino. Ah, o desejo de estar ali, nas mãozinhas dela, o rosto aflito que se debate em gozo discreto e em raiva passável, o delírio de escapar das chamas do absurdo e inútil sentimento de posse e pertencimento; nada escapa ao óbvio olhar que passa ao largo e da janela posso ver que ela tem um belo corpo esguio, talvez meu café contenha cantárida, não sei, eu aqui sentado e a moça ali, impávida enfrentando as ondas como um pesqueiro na borrasca. Em outros tempos ela seria mais frágil, hoje se liberta de amarras e pula como pulam os pés de noivos antigos. Ela está lá e a chuva enche de ruídos a rua, ainda sem sombra de sol algum no horizonte, apenas as severas nuvens de novembro.
Definitivamente, eu não me arrependo de movimento algum que fiz e falo isso como um escritor e tenho certeza de que meu amigo amargurado também não se arrepende de muita coisa, menos algumas que deveria ter feito se tivesse mais coragem e não vivesse às vezes de lado, como fazem muitas pessoas que desejam sobreviver e acabam sendo vividas por outros que se aproveitam de sua passividade. Você vai ver e, sim, você não viveu, foi vivido e nada do que você fez teve ou tem sentido. Deus é um roteirista dos melhores. Ele se compraz de dar início à jornada (o tal motor imóvel que inicia essa coisa toda), mas depois, observa os bilhões de destinos que criou e enlouquece de vez, daí se retira em sono porque criar cansa. Criar cansa, penso eu no destino que originei neste calhamaço e pouco interessa a não ser para mim, que sou a origem deste palco todo e mesmo da peça e seus autores! Considerando o que vimos até aqui, vou me recordar de que ele teve passagens de gênio e muitas outras de manco.
--Pensando na morte da bezerra?
Eu vejo a janela e suas múltiplas reflexões, as sombras dos passantes que ficam na retina, sorvendo o café que agora abafa os restos de presunto, excitando o paladar com um leve aroma de caramelo, a máquina do portuga é boa. Ele sabe passar um café dos antigos tempos, modernizou-se como todo o planeta; há coisas na tecnologia que são magia para os que um dia nos antecederam, essa é a graça de toda esta vivência que temos e eu vejo o pequeno vulto de todo homem como a sombra de uma escritura de uma página arrancada de um livro antigo, sempre a mesma história que se repete: tudo tão sem sentido, tudo vão como o vento que passa sob as árvores e enfuna o cartaz que diz que “Deus é um nó e nós somos a tripa da terra” e por aí vai, o café descendo maroto pelo esôfago e chegando aos estômago intumescido e ruidoso de meu corpo destacado no escuro do bar do portuga. Eu sinto elevar-se o pulso da especiaria e imaginar que tudo isto começou nas areias do infinito, hoje somos arremedos dos anos do Início, onde o dedo Dele estalou e disse que era tudo bom.
--Bezerra, não, meu amigo!
--Ora, pois se não é em seu amigo esquisito.
--Eu comecei isto, portuga. Tenho de terminar.
--Quer uma dica?
--Toda dica é bem-vinda, meu caro.
--“Olhe o todo e não as partes”.
Até estaquei e suspendi a xícara, como o chinês suspendeu a chávena, o vietnamita a cabeça, o boi o focinho, o frança o boné.
Como não havia pensado nisso? Um destino se compõe de partes mas o todo, o todo, o todo!
--Gênio!
--E dizem que somos os bestas. Ora, pois.
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