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Contos-->CPF x CGC -- 28/11/2001 - 17:59 (Luís Augusto Marcelino) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Conheci o Carlos Roberto na 5ª série do colégio público Santa Terezinha, na Pompéia. Era um garoto esguio, o rosto coberto de espinhas e os cabelos lisos mal cortados. Era uma espécie de comediante precoce. Apelidou a maioria da molecada da classe, e era sempre o mentor das brincadeiras com as meninas. Teve uma vez que bolou uma cola surpreendente. Tínhamos que decorar uns 30 verbos de Inglês, em todos os tempos. Tirando um ou outro CDF, o resto não sabia nem o nome completo. Foi quando o Carlão teve a idéia de copiar no verso de uma das cartolinas usadas para as tabuadas os miseráveis verbos. Pendurou-a entre as demais e todos aguardamos o início da prova. Foi quase um sucesso: pena o Geraldinho ser meio míope e ter ficado um tempão olhando para cima, até Dona Dulce perceber nossa fraude engenhosa.
Além de tudo era inteligentíssimo. Por mais bagunceiro que pudesse ser, tirava notas muito boas. Parecia mesmo ter futuro. Nossa convivência se estendeu até o colegial. Bom e velho colegial, onde demos nossos primeiros passos para o engajamento político e onde armamos as primeiras passeatas e greves de alunos do colégio. Carlão ia fundo. Foi mandado embora do banco, aos 16 anos, porque insistiu em trabalhar com a estrelinha do PT. Com a boina à la Che, nem permitiam que ele entrasse. Mas o danado se sindicalizou e armou umas boas pra cima dos gerentes da agência. Era o primeiro a levantar a bandeira em defesa dos menos favorecidos. Nossa única pendência foi justamente um desentendimento acerca de uma greve de professores decretada em meados de 87. Eu, mais comedido, era contra participarmos da paralisação; ele, como se esperava ser, apoiava completamente nossa participação. Enfim, nada que uns bons (e muitos) copos de chope não resolvessem em alguns dias. Participei da passeata.
Lembro do dia em que perambulávamos pelo Shopping Matarazzo e aconteceu uma cena comovente. Estávamos já nos dirigindo à parada de ônibus quando fomos abordados por uma velha preta toda maltrapilha e malcheirosa.

- Me dá um trocado, filho? – pediu a velha.

O Mauro, nosso companheiro de baladas desdenhou e fez cara feia, fingindo não ouvir o clamor da pobre coitada. Comunista ele era sim, e culpava o Estado pela existência dos pedintes. Mas não era lá de se comover com crianças desnutridas ou idosos em decomposição.

- Sai dessa, tia! – respondeu.

Naquele momento vi o olhar reprovador do Carlão fustigar o Mauro. Aquela resposta do nosso amigo deve ter atingido o âmago do Carlão. Ele segurou o braço magro da velha. Com a outra mão mergulhou os dedos longos no bolso da calça jeans e de lá tirou algumas moedas – o suficiente para que ela comprasse algum salgadinho (ou quem sabe garantisse uma branquinha para espantar a friagem úmida). Afastou-se. Não quis olhar para a cara do Mauro, que continuou sua caminhada lenta rumo à Av. Pompéia. Pequenas lágrimas começaram a escorrer pelo rosto amarelado do Carlão. Do outro lado da avenida havia uns três moleques pardos pedindo trocados aos motoristas que paravam no semáforo. Mais uma vez o olhar do Carlão se perdeu no vazio. Aquele sentimento que tinha em relação ao próximo era mesmo sincero e contagiante. Quis me aproximar do meu amigo e abraçá-lo, mas não era muito do meu feitio. Limitei-me a ouvi-lo.

- Tá tudo errado, cara! Essa porra desse país está do avesso... Não vai dar, alguma coisa tem que mudar... Vê se isso acontece em Cuba... A gente tem que fazer alguma coisa, Marquinhos!

- Sei, sei. Mas a gente tá fazendo, cacete! – respondi. Quando o Lula assumir essa merda desse país a gente vira o jogo. Mas não dá para deixar a peteca cair, cara!

Ele me ouviu atento, enquanto expunha minhas idéias de divulgação do partido. Depois, juntamo-nos ao Mauro e resolvemos esticar a noitada. Paramos num boteco na rua Clélia e lá discutimos tudo o que devia ser feito no Brasil nos próximos cinco anos. Era como se quiséssemos fazer 500 anos em 5, parodiando JK. Aquela foi apenas uma das vezes em que divagamos sobre política, princípios, dignidade, compaixão... Eram os tempos dourados de convivência com o Carlão CPF...

. . .

Agendei a visita para as 11:00, único horário disponível do Gerente Comercial daquela Indústria Têxtil. Esse é um dos piores horários para se demonstrar software porque normalmente o cliente já está com fome e não vê a hora de ir para o refeitório. Mas quem somos nós para contrariar clientes no final da década de 90? Ao chegar à portaria deu-se início ao manjado ritual do nome que não consta na lista do estacionamento.

- Mas é só ligar para o Fagundes do Comercial, amigo! – supliquei ao Segurança.

- Sinto muito, doutor. Mas seu nome não está aqui. Se eu deixar o senhor entrar vou ser prejudicado.

Tive de pegar o celular e ligar para o tal Fagundes para poder entrar. Era um imenso pátio onde poucos operários transitavam, geralmente em duplas ou trios, sorrindo livremente e esboçando alguns gestos de contentamento. Estacionei ao lado de um velho Monza prateado, meio corroído pela ferrugem. Lembrei-me do meu primeiro carro, um Passat esverdeado duas portas. É impressionante como nossos sonhos consumistas vão se renovando a todo momento ao ponto de, a cada ano, desejarmos um carro diferente, mais novo, mais bonito, mais sofisticado. Vivemos pensando em comprar um sítio, uma casa de praia... sonhamos também com nossos filhos estudando em Harvard e se tornando importantes executivos em empresas de primeira linha... Engraçado que partimos do princípio de que eles terão boa índole, serão honestos e saudáveis. Talvez por não nos preocuparmos muito com isso é que eles se tornem os seres que tanto criticávamos quando jovens. Esse mesmo tipo de ser no qual nos tornamos. A manobra de um novíssimo carro verde interrompeu minha filosofia. Entrou rapidamente pelo portão principal e se dirigiu ao local aparentemente reservado aos manda-chuvas da empresa. Estacionou rapidamente numa vaga demarcada com uma placa de fundo branco pincelada por letras azul-marinho. Alguns minutos depois desceu um sujeito bem alinhado, barba volumosa e pasta executiva a tiracolo. Correu para a entrada do edifício espelhado e quase deu com o rosto na porta automática. Decidi deixar a vida alheia de lado e cuidar da minha. Abri a porta traseira e peguei meu paletó azul, minha pasta e o notebook. Troquei os óculos escuros pelos de grau e me dirigi à mesma porta que o atrasadinho que observava há pouco adentrou apressadamente.

- Bom dia! Vim falar com o Sr. Fagundes do Comercial. Meu nome é Marcos Oliveira, da SIC Technologies.

- Pois não, senhor! Só um minutinho, por gentileza!

Foi um grande alívio ter me livrado daquele mormaço incessante de dezembro. O ar condicionado parecia ter sido regulado especialmente para o meu gosto de temperatura: não congelava meus ossos e amenizava a quentura do ambiente externo.

- Pode subir, Senhor Marcos! Terceiro andar, Sala B – orientou a solícita recepcionista.

- Obrigado.

Chegando ao terceiro andar fui recebido por um simpático senhor de meia idade que trazia um sorriso intermitente na boca carnuda. Acompanhou-me até a pequena sala montada com divisórias até o teto. Reparei nos pequenos quadros que enfeitavam a saleta. Quase todos tinham o mesmo estilo abstrato de cores berrantes e moldura de madeira. Eram assinados pela mesma rubrica. Olhei pela janela e o pátio ganhara mais movimento do que quando da minha chegada, dando um pouco mais de vida àquele lugar soturno.

- Boa tarde.

Era o tal do Fagundes, acompanhado de um bloco de notas acomodado numa pasta transparente. Estendeu sua enorme mão direita e se anunciou. Tinha conseguido agendar aquela apresentação por intermédio do próprio dono da minha empresa, que conhecia o principal consultor de informática da fábrica têxtil. Pela antipatia do Fagundes, supus que os dois não se bicavam muito. Foi logo derra- mando o corpanzil na cadeira e depositando a pasta na mesa branca. Daqui a pouco chega nosso consultor técnico – previu. Como sempre está atrasado.

- Não tem importância. Fique à vontade – respondi.

Uma coisa que me deixava irritado desde que comecei a trabalhar eram atrasos. Nunca entendi porque as pessoas se atrasam tanto e não têm respeito por quem está esperando. Sempre reclamei com tudo e com todos, mas tive de acabar me acostumando a conviver com esse maldito hábito irresponsável. Na condição de vendedor de software fui obrigado a passar por poucas e boas nas mãos de clientes inescrupulosos, folgados e débeis. Ossos do ofício, como diz o ditado.

Surge então o consultor técnico.

- Não é possível! Marquinhos?... Marquinhos do Santa Terezinha? Não é que você está vivo, rapaz?!

Ninguém menos do que o Carlão e seus um metro e oitenta se revelava o consultor técnico do meu mais novo cliente. Não sabia se, naquele momento, devia deixar a formalidade de lado e dar um forte abraço no meu velho amigo de guerra ou se simplesmente lhe abriria um sorriso tímido. Bem ali, na minha frente, o companheiro de tantas jornadas, de tantos porres, de tantas farras. Bem que o Fagundes podia não estar ali para eu xingar o miserável por ter desaparecido do mapa um ano depois que entrou na faculdade. Minha alegria era tão grande que o pobre Fagundes deve ter pensado que eu era boiola. Devia bem estar estampada em meu rosto a satisfação de ter encontrado meu velho companheiro. Olhei para a mão esquerda: sim, ele estava casado. No mínimo tinha dois filhos – era o que vivia dizendo nos velhos tempos de colégio – e tinha lhes presenteado com “O Capital” e a maldita camisa do Palmeiras – aquele “maledito”. Há pouco tempo lembrara do Carlão. Presumi que tivesse pedido asilo político e tivesse montado um núcleo de estudos políticos brasileiros na ilha de Fidel. E o danado estava lá, cuidando de bits e bytes numa empresa renomada do mercado. Mas como? Tinha entrado no curso de Sociologia da PUC da última vez que tive notícias. Bom, eu também dei uma bela guinada na vida depois de concluir a faculdade de Administração. Mas no caso do Carlão era meio difícil de acreditar...

Esticou a mão e depois me deu um leve abraço. Compreendi. Também não era o caso de nos agarrarmos e deitar no carpete. Afinal, tínhamos um encontro comercial. Dei início a minha apresentação tão logo foi possível, para que o tempo corresse depressa e pudesse trocar uma boa conversa com meu amigo. Enquanto apresentava as funcionalidades do sistema, relembrava as velhas e boas histórias. Nossas viagens ao litoral sempre muito corridas e intempestivas. Bagagem básica: sunga, camiseta, cerveja, cerveja e mais cerveja. Acordávamos lá pelas nove e já corríamos desesperados para a praia, a fim de não perder sequer um minuto. Quase sempre arrastávamos o Tiba e o Alceu, também companheiros da escola. O primeiro, companhia divertidíssima; o segundo, um cozinheiro de mão cheia (pelo menos para o padrão do nosso paladar naquela época). Foi numa dessa viagens que fomos a uma zona pela primeira vez. Bons tempos em que camisinha só servia para prevenir gonorréia... Fui interrompido pelo Fagundes num determinado momento da apresentação:

- Se isso funcionar mesmo do jeito que está falando dá para mandar uns 30 pra rua. Isso só nos 3 primeiros meses após a implantação do sistema.

- É, mas precisamos reduzir o quadro ainda mais. Não dá pra continuar nas mãos daquela peãozada preguiçosa. Ouvi um rumor de que estão arquitetando uma greve. Vê se pode? A gente dá de tudo pra esses filhas das putas e eles vão atrás desse sindicato de merda...

Naquele instante não me apeguei à declaração do meu amigo. Achei até que ele estava apenas ridicularizando o Fagundes. Afinal, o sarcasmo era uma característica marcante do Carlão. Prossegui e encerrei minha apresentação, após uma hora e meia. Despedi-me do Fagundes e recebi dele a promessa de um retorno formal dentro de 5 dias. Pelo entusiasmo do cara, achava que tinha acabado de fechar mais um bom negócio. Quis convidar o Carlão para almoçarmos juntos, mas ele se antecipou a mim.

- Como é que é, amigão? Almoça comigo?

- É claro, Carlão. Temos muito o que falar, seu ordinário!

Chegamos ao restaurante a 1h15 e, ao contrário dos nossos hábitos pretéritos, pedimos água mineral. Preferimos conversar a nos servirmos no bufê. O assunto puxado pelo Carlão dizia respeito às economias que tinha proporcionado à companhia, o que lhe houvera rendido uma bonificação extraordinária para realizar parte de seus sonhos. Casou em 93 com uma analista de sistemas chamada Vanda. Mostrou-me a foto dos filhos – dois garotões lindos e saudáveis. Estava morando em Santana, mas brevemente se mudaria para Pinheiros. Aguardava apenas o fim da construção do edifício de 20 andares na região da Praça Panamericana.

- Mas você detestava apartamento, Carlão.

- É. Porém a cidade está muito insegura. Imagine só: os garotos vão escoltados por mim ou pela mãe para a escolinha. E, por falar em escola, não é que o mais velho já está se virando no Inglês!

Ali comecei a me dar conta de que o Carlão efetivamente tinha mudado. Pensei que seus rebentos teriam de aprender Russo ou, no mínimo, Espanhol com sotaque caribenho.
Mas estavam aprendendo a boa e velha língua Bretã. Poucas vezes citou uma de nossas aventuras juvenis ou tentou perguntar como eu estava. Fez questão de detalhar cada passo de sua carreira meteórica e brilhante, construída a custa de uma total dedicação ao mundo “ware”.

Resolvemos nos servir. Enchi o prato de verduras e mais uma vez caí na esfera do passado. As coxinhas esquentadas a luz, feitas pela mãe do Bidu, dono do boteco em frente à escola, muitas e muitas vezes recheou nossos estômagos ocos durante as noites efervescentes de Sexta, dia preferido de 9 entre 10 estudantes petistas da minha geração. O Carlão por sua vez não parou de falar enquanto nos servíamos. Invariavelmente falava sobre o passado recente ou sobre seus planos de carreira para o futuro. Parecia estar fugindo das reminiscências que certamente circundavam sua cabeça tanto quanto a minha. No fundo devia estar fugindo da responsabilidade de explicar o por que da sua transformação radical. Acho que lá dentro do peito sentiu vontade de falar sobre a passeata e sobre o episódio do shopping. Mas talvez temesse que eu o repreendesse.

Antes de começarmos a refeição, insultou o garçom por ter demorado a trazer a entrada. O que me irrita nesta vida, Marquinhos, é a incompetência dessa gente – declarou enfaticamente.

- É óbvio que sua empresa se preparou para o Bug... Não quero me gabar, mas se não fosse eu os idiotas passariam o réveillon preocupados com a paralisação de todo o sistema administrativo. Há dois anos venho falando do Bug – falou-me rapidamente.

Ao final da ceia trocamos cartões. Fiquei de ligar para o Carlão e marcar um almoço para apresentarmos nossas novas famílias. Despedimo-nos com um ar assim meio tímido. Meu velho amigo entrou em seu carrão verde – aquele mesmo que eu vi chegar às pressas no estacionamento de sua firma. Notei que ligou o rádio e ficou alguns segundos estático, esperando que eu saísse. Seu rosto se transfigurou, fazendo sua fisionomia se tornar mais pensativa. Buzinei ao passar por ele e segui meu caminho.

Foi impossível não julgar o velho camarada. Fiquei imaginando como um pretenso comunista como ele se transformara naquela criatura tão desalmada. Quis buscar explicações; vasculhei cada canto da minha mente, mas desisti. Não sabia se ligaria para o Carlão, nem se o atenderia caso telefonasse. Iria comentar com a minha mulher. Tirei o Carlão da lista de exemplos de amizade que apresentaria à minha filha. Foi duro reencontrar meu amigo CGC, mas o rio continua procurando o mar. Parei num semáforo na Marquês de São Vicente.

- Compra uma balinha pra me ajudar, tio? – pediu a menina preta.

Fechei os vidros.

(Parte integrante do livro "A Comédia da Vida S/A")
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