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Artigos-->E O MEU MENINO SAIU DE CASA... -- 02/02/2004 - 12:21 (Lílian Maial) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
E O MEU MENINO SAIU DE CASA...

Por Lílian Maial







Acordei com aquele telefonema, uma tal Dona Miriam, falando todos os “S” que tinha direito, num sotaque tipicamente paulista.

A princípio, talvez pela sonolência, que insistia em manter minha mente confusa, achei que fosse engano, que a ligação havia caído errado, até que ela falou em ITA.

Dei um pulo de onde estava, tratei de acordar à força, apurar a audição e prestar atenção ao que ela tentava me dizer:

- “A senhora é a mãe do Gabriel?”

- “Sim, eu mesma, do que se trata?”

- “Aqui é do Centro Tecnológico Aeroespacial, de São José dos Campos, para informar que seu filho deverá se apresentar ao ITA, no dia 23 de janeiro, para escolha do alojamento.”

- “Mas que alojamento, senhora?”

- “O local onde ele deverá passar os próximos 5 anos, mãe.”

- “Desculpe-me, dona Miriam, mas do que a senhora está falando?”

- “Ora, senhora, seu filho foi aprovado no ITA! A ligação é para informar que hoje estou postando um envelope com todas as informações para inscrição, documentos, normas, enfim, tudo o que ele vai precisar para regularizar a situação de aluno da ativa, conforme opção dele no vestibular.”



Aquelas palavras ecoaram por alguns instantes. Um frio na espinha percorreu ligeiro toda a medula, congelando meus sentidos. Não sabia se ria, se chorava, se gritava, se morria. Fiquei imóvel, lágrimas nos olhos, que nem boba, agradecendo à tal dona Miriam pelas palavras mais abençoadas dos últimos tempos. Sim, porque aquele menino merecia, e muito, aquela vaga.



Ele sempre fora um garoto diferente da média: calmo, quase sem agressividade, amigo, bom desempenho escolar, nunca deu trabalho em aspecto algum. Lembro-me que havia pulado um ano ainda na pré-escola, ano esse que veio a trazer-lhe algumas amargas lembranças, pela imaturidade emocional e a diferença física para os meninos mais velhos. E, como se sabe, crianças costumam ser cruéis. Mas ele, com a nossa ajuda, ultrapassou tudo com muito amor. Desde novinho aprendera a vencer dificuldades.



Na ocasião das opções de vestibular, ele sempre fora categórico: queria ser engenheiro, e queria ser militar, ou seja, ou IME, no Rio, ou ITA, em São José dos Campos - SP. Tanto assim que, além dessas duas instituições, apenas se inscrevera na UFRJ e na UERJ, nada mais.

Na primeira tentativa, passou na UERJ, na UFRJ, mas não passou no ITA e chegou a passar no IME, mas não conseguiu a classificação dentro das 30 vagas para a ativa.

Ficou triste, mas não desistiu. Quando a maioria dos garotos de sua idade teria cursado a UFRJ, que é ótima faculdade, e curtido as praias, festas, namoradas e amigos no tempo que sobraria, ele não. Começou a cursar a faculdade pela manhã, mas ia direto para o curso preparatório, turma especial IME-ITA, à tarde e à noite. Saía de casa às 7:00 e voltava às 21:30 horas, exausto, com fome e sono.

Chegou a época das provas, aquele sofrimento, aquela ansiedade. O menino vinha de cada prova com um ar irritante de incógnita, sem querer cantar vitória, com medo da decepção. Nada dizia, a não ser um lacônico “vamos aguardar”.

Veio o resultado do IME: eram 30 vagas para a ativa, ele havia ficado em 42º lugar. No ano anterior, ele ficara em 68º, e até o 46º houve reclassificação. Veio uma enorme sombra nos seus olhinhos. Viu o gabarito e soube-se injustiçado na prova que mais sabia, a de química. Levou o gabarito e sua prova para os professores do curso que, unanimemente, o orientaram para a revisão, garantindo que ele conseguiria média para entrar, com a nova nota.

Durante a revisão, foram categóricos em manter a nota, sem maiores justificativas. Quando saiu o resultado, de 42º ele passara a 43º. Tiro pela culatra. Assim mesmo não desanimou, lembrando-se que muitos dali passariam e optariam pelo ITA, que ele ainda teria chances no IME dos seus sonhos.



E aí veio esse telefonema. O menino, apesar das adversidades, havia conseguido, por mérito próprio, a vaga no local mais difícil, que ele mesmo não imaginava que conseguiria. Foi a coroação do esforço, da responsabilidade, da determinação, do caráter bem formado. E eu estava radiante, com a sensação de “missão cumprida”, a certeza de que havia dado a melhor criação possível.



Mesmo sem querer, essa coisa de mãe, por mais liberal, desprendida e moderna que a gente seja, nunca se está preparada para esse corte total do velho e bom cordão umbilical.

Tudo bem, não sou lá mãe de ficar pegando no pé, até mesmo porque eu própria tenho minhas atividades profissionais e pessoais, das quais não abro mão. Sou independente demais para ter um temperamento aprisionador de filho. No entanto, nunca havia me separado antes tanto e por tanto tempo. De certa forma, eles sempre estiveram ao alcance dos meus olhos, embora não debaixo das minhas “asas”.

Agora o moleque iria para longe, habitar um local estranho, com pessoas estranhas, sem os cuidados básicos dos familiares. Como será que ficaria por dentro? Teria carências? Teria solidão? Teria dores, doenças, conflitos? Seria perseguido por alguém, por algum monstro de setecentas cabeças? (sim, porque sete, a essa altura, não dariam conta dos fantasmas que me rondavam).

Quando ele soube, veio correndo me abraçar, com os olhinhos mais brilhantes do mundo. Foi a recompensa pela escolha, pela vitória da vontade sobre as tentações da preguiça e da lei do menor esforço. Ele sabia que havia vencido, que podia, que era. Batalhara por aquilo, merecia saborear com calma. E seus olhos me diziam tudo isso e muito mais. Sua alma repousava sobre a minha, num descanso que só os anjos conhecem. E eu partilhei daquele momento em silêncio, emanando um calor doce, com cheiro de fralda e loção de bebê.

Nova etapa: preparativos para a separação. Ele estava decidido, embora a reclassificação para o IME ainda não tivesse saído. Daí, já que ia mesmo, que fosse da melhor maneira. Separamos os documentos solicitados, cuidamos de roupas, apetrechos pessoais, enxovalzinho. Engraçado é que eu vibrei, como se estivesse escolhendo coisas pra mim mesma, para me mudar, para eu iniciar uma nova vida. Não sei se é egoísmo, autodefesa, ou vontade de dar o melhor.

Na véspera da ida para São José dos Campos, recebemos um telefonema do IME, convocando-o para apresentação. Ele havia, enfim, sido chamado para ocupar a vaga na ativa. Tinha conseguido os dois, ITA e IME! Estava em suas mãos agora a escolha.

Ele não titubeou. Declinou gentilmente do convite do professor.

Lá no ITA, assistimos a apresentação do Reitor, de alguns professores do curso de Engenharia, e instrutores do CPOR (serviço militar). Fomos ao alojamento e tentamos transformar seu cantinho num pedacinho da nossa casa, para que não se sentisse completamente só. Arrumei seu armário, fiz sua cama, separei seus produtos de higiene, suas roupas (do mesmo jeito que ficam no seu armário na nossa casa), instalei os aparelhos básicos (ventilador, rádio-relógio), agrupei livros e pastas. Verifiquei que há previsão para telefone e computador no quarto, e a cabeça já começou a funcionar, mostrando que a distância poderia ser encurtada, de alguma maneira.

Até que chegou a hora de vir embora. Segurei bem a emoção, pois sabia que ele ficaria triste se nos visse tristes. Foi a volta mais silenciosa de uma viagem que já tivesse feito. Os olhinhos de despedida não saíam da cabeça.



Chegamos em casa diferentes. Faltava alguém. A casa parecia lamentar a ausência dele. As portas rangiam, as plantas estavam meio murchas, apesar de adequadamente hidratadas. A casa toda sentia saudade.

Ao desfazer a mala, encontrando peças de roupa com seu cheirinho, o coração não resistiu e encachoeirei camisetas e bermudas.

Foram 2 dias péssimos, sem notícias, até que ele escreveu um longo e-mail, contando sobre trotes, sobre seu exame médico, sobre o entrosamento com os amigos, e o quanto estava feliz e bem. A partir daquele e-mail o dia ficou mais claro e alegre, e as cores voltaram.



Soube que o danado vai fazer o sacrifício para estar aqui no meu aniversário. Vai enfrentar 6 horas de ônibus na sexta à noite, ficar o sábado e voltar no Domingo depois do almoço. É meu maior e melhor presente, que já estou desembrulhando desde agora.



Apesar da distância e da separação, sei que ele está bem e que, se a saudade apertar muito, tenho como arranjar um jeito de vê-lo e abraçá-lo. Em alguns momentos chego a sentir vergonha de sofrer por isso, pensando nas mães que dariam tudo para estar no meu lugar e poder dormir, sabendo que um dia, não importasse quando, ainda abraçariam seus filhos. A essas dedico essa crônica, com todo o meu sentimento e respeito.







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