Ao regressar do almoço, tomado ali, no mesmo restaurante vegetariano, Fernando estava disposto a pôr em ação o plano que havia arquitetado para ajudar a desconhecida prostituta.
Ligou primeiro para o apartamento de Judite. Mas fê-lo sem esperar nada de positivo. Não acontecera coisa alguma que pudesse mudar a deliberação de Dolores. Surpreendentemente, foi ela mesma quem atendeu, francamente hostil.
— Querida...
— Não me venha com agradinhos. Estou avisando somente que não regressarei para casa. Vá se preparando...
— Dolores, pelo amor de Deus!...
— Que Deus o quê! Você é a última pessoa que pode falar em nome dele. Está simplesmente usando o sagrado nome em vão.
— Mas, querida...
— Vá se preparando para receber o meu advogado. Ainda hoje irá ligar-lhe, para marcar entrevista. Só estou adiantando...
— Dolores, não seja precipitada. Vamos ter uma conversa antes. Só nós dois. Vamos jantar juntos. Você escolhe o restaurante.
— Nem pensar. Estou decidida. Todos os meus assuntos serão resolvidos judicialmente.
— Mas eu não lhe dei nenhum motivo.
— Quem vai decidir isso é o juiz.
Disse e bateu o fone.
A Fernando restava tomar uma única providência: preparar a defesa. Ligou imediatamente para o advogado da firma e pediu-lhe orientação.
— Esse caso está parecendo-me infenso de julgamento por juiz togado. Se cair nas mãos de algum “da pá virada”, vai descarregar o mau humor no pobre advogado da constituinte. E se ela abrir o bico, vai ouvir poucas e boas.
— Não entendi.
— Pelo que você me diz, há apenas problemas religiosos...
— Certamente, se eles não inventarem nada.
— Então?! E a liberdade de culto determinada pela Constituição? Sua esposa vai ter de revelar segredos de alcova, para justificar a separação litigiosa. Do contrário, o caso vai pelas boas e ela não leva nada, a não ser o de direito pela comunhão de bens.
— Você me defende?
— Acho que o causídico contratado por Dolores irá aconselhá-la a desistir, a menos que seja daqueles rábulas aproveitadores. Em todo caso, não é meu ramo. Ligue para o Doutor Antunes. José de Carlos Antunes. É meu amigo e não irá escorchá-lo. Se ganhar a causa, o pagamento dele, quase com certeza, sairá dos bolsos da reclamante.
— Do jeito que você fala a separação é certa.
— Só depende da vontade dela. Ninguém é obrigado a conviver com ninguém. A lei do divórcio decretou a falência do casamento.
Fernando agradeceu. Havia sido esclarecido de aspectos sobre que não meditara. Mas via a coisa muito mais séria e perigosa. Justamente num momento de grandes gastos, aquela ameaça negra de repartição de bens.
— Doutor Antunes?
— Quem gostaria?
— Fernando, sob recomendação do Doutor Edmundo Soldato.
— Só um instante, por favor.
Enquanto aguardava, escutava suave melodia através da linha. Precisaria adotar o sistema na firma, se bem que não era tão...
— Pronto! Doutor Antunes.
— Poderia representar-me em caso de separação conjugal?
— Litigiosa?
— Não sei, Possivelmente.
— Esteja aqui segunda-feira, às dez.
— Obriga...
Fernando não chegou a concluir e já ouvia a batida do telefone,
— Esse Doutor Antunes deve ser muito positivo. Se for essa sua atuação no tribunal...
Pensou em que era boa oportunidade de conversar com Joaquim. A saída apressada dava a ele desvantagem moral.
— Confecções “Santa Rosa de Saveiral”.
— Joaquim está?
— Quem gostaria?
— Fernando...
— Ah! Senhor Fernando. Já vou completar a ligação.
Fernando teve a sensação de ter ouvido um “Doutor Joaquim”. Será que o homem está tão importante? Da noite pro dia?
— Olá, caro chefe, que manda?
— Preciso de ajuda, mas, por telefone, não dá para explicar.
— Passe uma pista.
O tratante o punha como igual.
— É sobre Jeremias. Tenho projeto de ajudar as pessoas que mantiveram contacto com ele, que é possível...
De repente, Fernando percebeu que estava dando com a língua nos dentes. A doença não seria segredo da família?
— Como?
— Você teve conhecimento da doença...
— AIDS.
— Quem lhe contou?
— Dona Maria.
— Pois quero descobrir quem lhe passou o vírus. Apenas para avisar.
— Compreendo. Mas como poderei dizer-lhe...
— Não se faça de desentendido. Você está a par de todas as casas. Não foi você mesmo quem me disse?
— São vários endereços...
— Quero todos.
— Vou mandar um “boy”, com envelope lacrado. Mas aviso que não vai ser fácil.
— Deixe comigo. Mas quero começar a investigação ainda hoje.
Fernando não compreendia a razão da solicitude. Talvez o velhaco esperasse uma raspança, o que seria desagradável para todos. Percebera, pois, que fora respeitado o seu direito constitucional de ir e vir.
— Os contactos com os advogados estão fazendo-me pensar em termos jurídicos. Sim, senhor! Vamos descartar Leonel desde logo.
— Quem gostaria?
As atendentes estavam expandindo essa nova forma de contacto telefônico.
— Caro Fernando, o que manda?
Fernando foi sucinto na exposição do plano. Não acreditava no concunhado do compadre para tal empreendimento.
— Às ordens. Eu ia mesmo convidá-lo para qualquer coisa nesse sentido. Não que esteja movido por sensação de piedade. É que estou curioso para desvendar o lado oculto de pessoa tão chegada. Quem será que, na escuridão da noite, o deleitava... Desculpe. Talvez você pense que esteja sendo mórbido. Afinal, a sua nova crença...
“O que não estarão dizendo de mim nas rodinhas?!”
Em voz alta:
— “Escuridão da noite”, coisa nenhuma. Pretendo fazer tudo à luz do dia. Assim que tiver algo de concreto, eu ligo.
Fernando não sabia o que poderia estar incentivando o abjeto materialista, candidato certo às chamas eternais do Inferno. Lembrou-se do capitão do Exército.
— O aposentado poderá dar uma força, mas não vou esperar até segunda ou quinta. Vou pedir o telefone ao João. Assim adianto o expediente.
João não estava no almoxarifado. Nem nenhum dos contabilistas. Teriam terminado o levantamento, com certeza. Ligou para o escritório:
— Quem gostaria?
— Fernando...
— Um momento, por favor...
Enquanto esperava, rabiscava sobre a fotografia de uma peça de banheiro, em um prospecto colorido. Não percebeu, mas colocou uma senhora sentada na latrina. “Seria Dolores?” Ficou envergonhado e riscou o desenho. Estaria perdendo a compostura em relação à esposa?
— O Senhor João não está. Serve o Eduardo?
— Ligo mais tarde. Obrigado.
Quem poderia fornecer-lhe o endereço do médium? Será que o Centro Espírita teria um telefone? Não se lembrava de ter visto nenhum aparelho na secretaria. Não perderia tempo. Voltou a ligar para o escritório de contabilidade. Mandou vir o Eduardo.
— Será que você teria como me informar o número do telefone do Capitão Francisco?
— O amigo de papai, lá do Centro?
— Esse mesmo.
— Um momento.
Fernando estava aborrecendo-se com as primeiras providências. Se, para ajudar os outros, fossem necessárias tantas iniciativas, todas as vezes, era melhor desistir. Afinal, tinha coisas mais importantes relativas à própria estabilidade na vida. Ficar aguardando um número...
— Pronto!
— Foi difícil de localizar, mas achei nas anotações de papai.
Antes que ligasse para o capitão, soou o telefone.
— É da loja de artigos sanitários...
— Sim.
— O Senhor Fernando, por favor...
— Quem gostaria?
— Diga que é o advogado de sua esposa. Doutor Libório.
— Aqui é o Fernando. Que deseja, Doutor?
— Uma entrevista para estipularmos os itens do contrato de separação.
— Não sabia que era assim que se denominava...
— É desagradável de dizer processo de divórcio...
— Pois diga. Mas vai dizer ao meu advogado.
— Basta dizer quem é. Entrarei em contacto.
— Doutor Antunes.
— José de Carlos Antunes?
— Esse mesmo.
— Tudo bem. Muito obrigado, Senhor.
Fernando estava abobalhado. Imaginou a mesma situação sendo enfrentada por Allan Kardec. No século dezenove. Será que tudo se passava com a mesma rapidez?
— Sem telefone, sem televisão e sem trânsito, dá até para escrever livros e revistas filosóficos. Neste século, tudo se facilita, mas o que se acumula de temas...
Pela vidraça do mezanino, divisou João adentrando a loja. Vinha acompanhado. Um desconhecido. Muito bem arrumado. Terno e gravata. “Na estica.”
— Este é o Doutor Onofre. Veio para uma conferência. Não podia ser por telefone.
— Pois não.
— Estimo que o Senhor esteja querendo ajustar as contas com o fisco. É nobilitante e extraordinário. João me fez ver claro que tudo está sendo feito com o máximo de lisura. Acredito, inclusive, em que o Senhor não devesse estar a par de todas as falcatruas dos agentes. Falemos, contudo, de modo o mais realista possível. Nem a Corregedoria Fiscal teria condições de levantar todas as falsificações e demais atos dos abutres do tesouro. Aconselho, pois, que o Senhor não leve a cabo o intento de envolver os fornecedores.
— Não havia decidido nada.
— Mas, sendo o Senhor espírita, como eu e João, seria tentado a fazê-lo, a bem do restabelecimento da verdade. Há que se saldarem os débitos, o quanto antes. Essa é a idéia. Isso é crístico. É mandamento evangélico de ordem superior. Mas, no caso, estaríamos envolvendo a organização governamental, onde estão assentados os leões das propinas e os lobos da corrupção. Que me perdoem os pobres bichos, pela infeliz imagem. Mas a verdade é que não temos recursos para enfrentar juridicamente os poderosos do setor, que estão por toda a parte.
— Vai ficar por isso mesmo?
— Não me interprete mal. Não queremos precipitações. As investigações estão adiantadas e o “dossier” se compõe de milhares de folhas. Tudo, porém, tem de vir em época oportuna. O seu caso particular é migalhinha. Não irá figurar no processo. O melhor é esquecer os débitos relativos ao “caixa dois” e acertar as diferenças constatáveis nos balanços anuais, conforme apreciação da contabilidade. Da minha parte, receberei e despacharei favorável a que os atrasados sejam ressarcidos em parcimoniosas prestações. Nada que leve ninguém à falência.
— E quanto ao Silvano?
— Já está em Brasília, transferido por ato do Ministério. Acredite, se quiser, todavia o ministro não estava a par das licitações e das propinas do “por fora”. Quando soube, ficou furioso. Mas, político, não quis escândalo. Uma ordem interna resolveu a questão. Silvano voltou para as funções originais.
— E se quiser desforrar-se, levantando a lebre junto à imprensa?
— Improvável. Temos farto material relativo às tramóias. Em tempo hábil, recebeu amostragem significativa. Existe expressão popular saborosíssima para retratar-lhe a personalidade: “Malandro não bronqueia”. Não irá querer queimar-se por algo que não recebeu, acendendo os estopins das bombas que tem em casa, nos automóveis, na fazenda, no iate...
— Tanto assim?
— O amigo iria espantar-se com as “obras de caridade” que se fazem para esses energúmenos postados no poder. Vim buscar a garantia de que poderemos continuar trabalhando silenciosamente.
— Ponho-me nas mãos do companheiro João. O que fizer, estará bem feito.
— Muito obrigado, confrade Fernando. Posso chamá-lo assim, pois não?!
— À vontade.
— Qualquer dia, iremos levá-lo para a nossa reunião lá em casa. Estamos precisando de médium de efeitos físicos. João será a ponte que unirá nossas margens, por sobre o rio desta vida de lutas e...
Não continuou. Julgou a imagem frágil demais. Própria dos “despenseiros do rei”, que era como chamava aos funcionários dos escalões maiores.
Fernando acompanhou o novel amigo até a saída. João quedaria na loja para as providências necessárias ao restabelecimento contábil da empresa.
Nesse instante, chegava um jovenzinho. Estendia um recibo e um envelope:
— Da parte do Doutor Joaquim.
Fernando assinou e devolveu.
— Viu só? Nem saiu daqui e já é “doutor”...
— A minha empresa está sob a espada de Dâmocles.
— ?
— Se Dona Maria autorizar, Joaquim nos dispensa.
— Ah!
Fernando ainda estava sob impressão do jorro vernáculo de Onofre e começava a impacientar-se com as espadas do João. Dâmocles? Estava bem arranjado.
Quando subiam as escadas, lembrou-se do Capitão Francisco.
— Será que aquele médium do vozeirão poderia ajudar-me numa investigação delicada?
Estava introduzida a conversa que terminaria com mais um telefonema.
— Quem gostaria?
Fernando, mais do que João, se aborreceu com a negativa do antigo militar. Estava muito velho. O coração não batia com a regularidade dos moços. Atender aos mortos, vá lá. Enfrentar, todavia, os vivos... Na próxima encarnação. Se fosse para a indicação de nomes e patentes, poderia ajudar. Mas não contasse com muita coisa, que os quadros da ativa estavam muito alterados, desde que entrara para a reserva. Em suma, gostaria de ajudar no que fosse possível, desde que não se envolvesse em peripécias emocionais.