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Artigos-->Usineuras e Texto Engajado -- 12/01/2004 - 22:48 (Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Esse meu artigo, feito no calor da publicação,

não sabe com quem fala, como disse ZPA a respeito de seu u-zine. Como todos nesse sáite.

Mais uma vez, não me espanto dos ataques ao sáite: eles são fruto de irritantes mal-entendidos. Nós, não-assinantes, quando tentamos publicar nossos textos, somos inicialmente informados que "esse texto já foi publicado".

Mauro Decca pediu-me para editar alguns textos, mas eu não tenho como alterar os textos colocados sob o nome de "Juninho".

Surpreendo-me mais como o fato da esposa de Clésio gostar do Torre de Portus Calle do que

do fato do Usina sofrer ataques. Há algum tempo

João dos Santos queixou-se de ter feito a assinatura e ter ficado uma semana a esperar sua efetivação. Sendo assim, como podemos confiar nesta assinatura, que além de tudo não nos foi informada corretamente, pegando a todos de surpresa?

Sem mais para o momento, envio abaixo um importante texto de César Benjamin sobre as novas medidas do governo Lula.

_________________________________________________

Projeto de Análise da Conjuntura Brasileira

Laboratório de Políticas Públicas da UERJ e Fundação Rosa Luxemburgo

Página na internet: www.outrobrasil.net



Economia e Política Econômica

César Benjamin (com Rômulo Tavares Ribeiro)



Data do fechamento: 12 de janeiro de 2004

Tema do mês: Autonomia legal para o Banco Central: uma tragédia anunciada.





1. Em economia, três idéias marcaram o discurso do governo Lula ao longo

de 2003: (a) a adoção de uma política econômica continuísta, no início

da nova gestão, decorria da existência de uma situação de descontrole

conjuntural, logo apelidada de herança maldita; (b) essa política,

meramente tática, prepararia as condições para uma virada posterior na

direção das mudanças coerentes com a história do PT e reclamadas pela

população brasileira; (c) passado um ano de governo, comemora-se agora o

êxito das escolhas feitas: o descontrole teria dado lugar a uma fase de

tranqüilidade que antecede a retomada do crescimento em 2004.

Infelizmente, são falsas todas essas linhas de argumentação, e a virada,

que agora se anuncia, aponta para um aprofundamento do modelo

neoliberal, com o anúncio de uma medida de que trataremos em detalhes na

análise deste mês: a concessão de autonomia legal ao Banco Central.

Vamos por partes, começando pela herança maldita, uma expressão

misteriosa, cheia de metafísica, que se difundiu entre militantes e

simpatizantes do PT muito mais por produzir conforto psicológico do que

por esclarecer os processos reais.



2. Apesar de todas as inconsistências e fragilidades da economia

brasileira  denunciadas há muitos anos pela oposição , em dezembro de

2002, quando Lula se preparava para assumir, não havia nenhum

descontrole macroeconômico, nem do ponto de vista das contas externas

nem da trajetória prevista para a inflação, os dois indicadores mais

sensíveis e mais citados pelos que sustentam essa idéia. Leda Paulani,

da Universidade de São Paulo, demonstrou isso, com simplicidade e

competência, no artigo Brasil delivery publicado no livro A economia

política da mudança, organizado por João Antônio de Paula (Belo

Horizonte, Editora Autêntica, 2003). Vale a pena revisitar seus argumentos.

Quanto ao risco de inadimplência externa, Paulani mostrou que em

dezembro de 2002 [último mês do governo de Fernando Henrique], do ponto

de vista das condições necessárias para honrar os compromissos externos,

a situação estava equacionada. (...) A balança comercial vinha

apresentando resultados absolutamente impressionantes, superando em

cerca de 50% as previsões feitas pelo próprio governo. Do ponto de vista

da performance futura das contas externas, em dezembro de 2002 as

expectativas eram muito melhores do que as existentes, por exemplo, um

ano antes. (...) Considerando conjuntamente, de um lado, o comportamento

do nível de reservas e, de outro, as boas perspectivas da balança

comercial já claramente perceptíveis no final de 2002, e considerando-se

além disso que já havia sido assinado o acordo com o FMI, o que

permitiria enfrentar qualquer tempestade inesperada, fica muito pouco

plausível a versão oficial de que as drásticas medidas monetárias e

fiscais tomadas no início da gestão Lula teriam sido necessárias porque

o Brasil estava quebrado.

No front das contas externas, em vez de uma herança maldita, Lula na

verdade recebeu um dote, nas palavras de João Sayad, pois o ajuste da

taxa de câmbio e o salto no saldo comercial foram feitos ainda na gestão

de Fernando Henrique.

Na seqüência de seu artigo, Leda Paulani também desmontou a argumentação

governista sobre o risco de descontrole inflacionário: Como defender

tão implausível diagnóstico [o de que havia pressões inflacionárias por

excesso de demanda] com a economia estagnada e o desemprego batendo

recordes atrás de recordes? De onde poderia estar vindo tamanha pressão

por reajustes de preços [em dezembro de 2002], de modo a comprometer a

estabilidade monetária do país? (...) Não existia nenhum indicador de

que o processo inflacionário estivesse fora de controle. Evidentemente a

elevação súbita [em meados de 2002] de um dos preços mais importantes da

economia [a taxa de câmbio] teria conseqüências do ponto de vista do

comportamento dos índices de preço, mas era perfeitamente possível saber

a extensão do estrago. Ele estava limitado a uma reconfiguração da

estrutura de preços relativos. (...) Não existia, por absoluta falta de

oxigênio na economia, nenhuma possibilidade de essa reconfiguração de

preços transmutar-se num descontrole monetário e/ou desencadear

mecanismos informais de indexação que ressuscitassem a inflação

inercial. (...) O IPCA do IBGE, por exemplo, que chega a apresentar um

crescimento de 3,02% em novembro de 2002, cai para 2,1% em dezembro

desse ano e 2,2% em janeiro de 2003, reduzindo-se sustentadamente a

partir de então para atingir 0,22% em maio.

Assim, Paulani mostra que o repique inflacionário, causado pela

desvalorização cambial, já estava perdendo força em dezembro de 2002.

Lula assumiu o governo com uma inflação ainda baixa e em queda.



3. Avaliemos agora a segunda idéia do raciocínio governista, a de que o

descontrole em fins de 2002 deu lugar à tranqüilidade em fins de

2003. Selecionamos um amplo conjunto de indicadores relevantes, de modo

a comparar a situação brasileira nesses dois momentos. Vamos a eles.

(a) Taxa de inflação em doze meses (IPCA): dezembro de 2002, 12,5%;

dezembro de 2003, 9,5%.

(b) Taxa de crescimento do PIB em doze meses: dezembro de 2002, 1,5%;

dezembro de 2003, 0,1% (estimado).

(c) Taxa de juros (Selic): dezembro de 2002, 22,8%; dezembro de 2003, 16,3%.

(d) Taxa de desemprego aberto (IBGE): dezembro de 2002, 10,5%; dezembro

de 2003, 12,8%.

(e) Renda média dos trabalhadores: dezembro de 2002, R$ 940,00; dezembro

de 2003, R$ 820,00 (queda de cerca de 15%).

(f) Juros pagos pelo setor público como proporção do PIB: ano de 2002,

8,09%; ano de 2003, 9,77%.

(g) Déficit nominal do setor público como proporção do PIB: ano de 2002,

3,08%; ano de 2003, 4,71%.

(h) Dívida líquida do setor público: dezembro de 2002, R$ 881,1 bilhões;

novembro de 2003, R$ 905,3 bilhões.

(i) Relação dívida / PIB: dezembro de 2002, 56,5%; dezembro de 2003, 57,2%.

(j) Saldo comercial: dezembro de 2002, US$ 13,4 bilhões; dezembro de

2003, US$ 24,0 bilhões.

(l) Conta corrente do balanço de pagamentos (resultado em doze meses

como percentual do PIB): dezembro de 2002, - 1,7%; dezembro de 2003, + 0,4%.

(m) Reservas internacionais líquidas: dezembro de 2002, US$ 16,4

bilhões; dezembro de 2003, US$ 17,3 bilhões.

(n) Avaliação de risco-país (J.P. Morgan): dezembro de 2002, 1.446

pontos; dezembro de 2003, 468 pontos.



Os número falam por si. Alguns indicadores melhoram (principalmente

aqueles mais relevantes para as operações do capital financeiro), outros

pioram (principalmente aqueles que mostram a situação da economia real e

as condições de vida da população), no contexto de uma situação

qualitativamente semelhante. A maior parte das variações ocorre na

margem. Aparecem variações positivas significativas apenas no saldo

comercial e na avaliação de risco-país. No primeiro caso, deve-se levar

em conta que o saldo realizado em 2003 foi em larga medida preparado em

2002, pois os contratos e as decisões de produzir antecedem em pelo

menos seis a nove meses o embarque; além disso, parte desse saldo

decorre da profunda recessão causada pelo governo Lula em 2003

(crescimento de 0,1% do PIB), que empurrou para fora parte da produção

nacional, sem mercado no próprio país, e inibiu as importações.

Quanto à espetacular queda do risco Brasil, amplamente divulgada pelos

meios de comunicação, ela foi obtida em um contexto internacional de

queda generalizada das avaliações de risco em todos os países por causa

do excesso de liquidez no mercado financeiro internacional. Nada teve a

ver com uma situação específica daqui. A posição relativa do Brasil no

ranking das aplicações de risco permaneceu praticamente inalterada:

passamos da quarta para a quinta posição entre os países considerados

mais arriscados (ultrapassamos apenas a Nigéria). É bom lembrar, aliás,

que esse indicador mede apenas o grau de confiança do sistema financeiro

internacional na vontade e na capacidade de um país pagar suas dívidas.

Nada tem a ver com o bem-estar, presente ou futuro, da população do

próprio país.



4. Os indicadores mostram que não havia descontrole macroeconômico no

final de 2002 e não há tranqüilidade no final de 2003. Estamos na mesma

pasmaceira. Por que, então, autoridades, analistas e meios de

comunicação projetam uma situação qualitativamente nova para 2004, com

uma retomada sustentada do crescimento? Além de compreensíveis

necessidades de marketing, diante de uma sociedade que começa a

cansar-se, não vemos nenhuma razão. É certo que depois de um período de

baixo desempenho acumula-se capacidade ociosa e torna-se fácil obter

algum crescimento na margem, mesmo sem investimentos novos

significativos. Prossegue-se assim a trajetória que os economistas

chamam de stop and go, que admite soluços de crescimento mas conduz a

resultados medíocres no médio e longo prazos. Sob esse ponto de vista,

2004 pode de fato apresentar alguma melhora, até mesmo por efeito

estatístico, pois a base de comparação (o ano de 2003) será

especialmente deprimida. Três fatores, porém, pesam em sentido contrário.

O primeiro: em 2003, com a contração dos investimentos do governo e a

queda na renda das famílias, o crescimento das exportações foi o

principal componente de demanda autônoma na economia brasileira,

permitindo manter o crescimento do PIB em torno de zero em um contexto

de forte contração da produção voltada para o mercado interno. Não se

espera a repetição das mesmas taxas de crescimento das exportações em

2004, admitindo-se, ao contrário, uma queda no saldo comercial.

O segundo: a pequena recuperação observada no final de 2003 deveu-se, em

parte, à recomposição de mecanismos de crédito ao consumo privado, pela

entrada em vigor de medidas de incentivo a setores específicos (como

eletrodomésticos e automóveis), a facilitação do refinanciamento de

dívidas e o crédito amparado em desconto em folha, todos claramente de

fôlego curto, insuficientes para produzir uma retomada sustentada da

demanda.

O terceiro fator negativo a ser ponderado é o reconhecimento, por parte

do PT, de que a política econômica adotada em 2003 não era de fato uma

esperteza tática, destinada a driblar dificuldades herdadas. Ao

contrário. Tanto as declarações das autoridades econômicas como as ações

objetivas afirmam a continuidade. Assim, a economia brasileira

permanecerá em 2004 convivendo com o viés fortemente contracionista,

expresso por exemplo na manutenção de elevadíssimos superávits primários

e na aprovação de um Orçamento da União  o primeiro elaborado pela

equipe de Lula  ainda mais apertado que o anterior. Os gastos com juros

e amortizações da dívida pública federal custarão ao Tesouro R$ 182

bilhões em 2004, engolindo 29,5% do Orçamento. Separadas as

transferências obrigatórias a estados e municípios, a reserva de

contingência e os recursos destinados ao superávit primário (cujo piso

foi aumentado de R$ 65 bilhões para R$ 71,5 bilhões), sobram R$ 230

bilhões para gastos em custeio e investimento, contra R$ 250 bilhões no

Orçamento anterior.

A desproporção dos gastos com serviços de dívidas, em relação aos demais

gastos do Estado, é muito chocante. Um mês de juros e amortizações

corresponde ao dispêndio anual com atenção hospitalar e ambulatorial no

âmbito de todo o Sistema Único de Saúde. Dez dias correspondem a todos

os recursos alocados no Programa Bolsa Família, que unificou as ações

sociais do governo. Uma semana supera os gastos anuais previstos com o

Programa Brasil Escolarizado. Um dia cobre com sobras todo o gasto

previsto para a construção de habitações populares. Uma hora supera a

dotação anual para conservação de monumentos históricos. Finalmente, um

minuto de juros e amortização das dívidas corresponde à alocação anual 

sim, anual  de recursos com a política de direitos humanos. É assim o

primeiro Orçamento preparado pelo governo do PT.



5. Entre as diversas manifestações de que a adesão do PT ao

neoliberalismo é doutrinária, e não circunstancial, destaca-se a

promessa de que o governo encaminhará em 2004 ao Congresso o projeto que

prevê a concessão de autonomia legal ao Banco Central (BC). Em carta ao

FMI, datada de 21 de novembro de 2003, o ministro Antônio Palocci afirma

que o governo continua empenhado em que seja aprovada uma lei para dar

autonomia ao Banco Central, assim que haja espaço na agenda do Congresso.

Esta é a mais importante reivindicação estratégica do setor financeiro,

e não foi aceita nem mesmo pelos dois Fernandos  o Collor e o Henrique

 responsáveis pela implantação do neoliberalismo no Brasil. Se levada

adiante por Lula, será o ápice da operação-desmonte do Estado nacional,

abrindo uma situação política qualitativamente nova no país, pois

dificilmente se pode imaginar que a necessária retomada de controle

sobre o BC possa ser feita fora de um contexto de ruptura institucional.

A gravidade do passo que o governo atual pretende dar fez com que o

autor deste texto [César Benjamin] publicasse um artigo sobre o tema

antes mesmo da posse do presidente Lula, quando surgiram as primeiras

notícias sobre essa possível concessão (Tomara que dê tudo certo, em

Caros Amigos de novembro de 2002). Vale a pena revisitar alguns trechos

desse artigo, mesmo um pouco longos, para em seguida retomar outros

aspectos da questão, tal como está colocada hoje.



6. O artigo, resumidamente, dizia o seguinte: Passada a ressaca das

comemorações, faço aos dirigentes do PT um apelo para que não cometam um

erro fatal. Refiro-me às notícias de que eles concordariam, ou até mesmo

patrocinariam, uma alteração constitucional que abriria caminho para uma

regulamentação parcial e casuística do artigo 192 da Constituição. O

objetivo explícito dessa manobra seria permitir a edição de uma lei

complementar que concederia autonomia legal ao Banco Central. A crer no

que sai na imprensa, dirigentes do peso de José Dirceu, Guido Mantega e

Antônio Palocci vêm se posicionando a favor da medida, considerada por

este último como uma sinalização importante para o mercado [financeiro]

da seriedade com que o PT pretende conduzir a economia.

Entre todos os erros que podem vir a ser cometidos nessa fase de

transição, este é, de longe, o mais importante, por seu alcance e por

seu caráter irreversível. Precisa ser evitado, nem que seja por simples

prudência, para ampliar o debate e amadurecer melhor a questão. Conceder

autonomia legal ao Banco Central de forma açodada, em vez de seriedade,

será uma demonstração de incompetência e fraqueza.

A linha de argumentação dos que defendem essa medida é a seguinte: o

Banco Central deve trabalhar com metas de inflação definidas com

participação do governo, mas suas decisões operacionais devem ser

preservadas de qualquer interferência política indevida; por isso, seus

dirigentes passariam a receber um mandato de quatro anos, sancionado

pelo Senado, tornando-se independentes do próprio presidente da

República. O argumento, à primeira vista, é apenas simplório. Pois

poderia ser usado para defender autonomia legal para todos os órgãos

governamentais. Afinal, qual deles não deve ter metas? Qual não deve ser

preservado de interferências indevidas? A educação, a saúde, a

previdência, o Incra, o BNDES, as empresas de energia e as demais  em

qual desses setores a politicagem deve ser tolerada? Em nenhum, é claro.

Logo, a mesma lógica deveria conduzir à proposta de que, depois de

definidas as metas setoriais, todos os ministérios, órgãos e empresas

públicas fossem declarados entes autônomos, por força de lei, restando

ao presidente recolher-se a uma casa de praia, para não mais interferir

na racionalidade (supostamente) técnica que a partir de então presidiria

as decisões dos gestores...

Isso não é sério. Por trás do caráter aparentemente simplório da

proposta, nela só há esperteza. É o Banco Central quem estabelece as

regras de operação do sistema financeiro, gerencia as dívidas interna e

externa, cuida das reservas internacionais, fixa a taxa de juros, conduz

a política de câmbio, permite a remessa de recursos para o exterior e

emite (ou deixa de emitir) dinheiro, entre outras atribuições. Tudo isso

define quais serão as taxas de crescimento esperado da economia, o nível

do emprego, o montante dos gastos públicos e o volume de crédito

disponível para o setor produtivo real. Ou seja, o Banco Central executa

o núcleo duro da política econômica. Talvez por isso, todos os

presidentes brasileiros, incluindo Fernando Henrique, recusaram-se a

aceitar esse tipo de autonomia que agora se pretende estabelecer.

O PT tem todas as condições  legais, políticas e morais  para não

ceder. Não custa lembrar que foi a bancada federal do PT quem tentou

regulamentar o artigo 192, apresentando na época adequada um bom projeto

de lei que, entre outras coisas, pretendia submeter as decisões do Banco

Central (considerado independente demais!) a uma avaliação periódica por

parte de instâncias representativas da sociedade. Exatamente o oposto do

que se defende agora. O projeto está parado na Câmara há onze anos,

barrado pela maioria conservadora. Por que aceitar que se faça agora, em

sentido oposto à posição histórica do PT, uma regulamentação que os

conservadores vêm se recusando a fazer há catorze anos, desde a

promulgação da Constituição de 1988?

O que está em jogo não é pouco. Em primeiro lugar, como disse acima,

está a capacidade controlar a operação do sistema financeiro. Bancos são

empresas especiais, que por definição não podem honrar seus compromissos

em nenhum momento específico. Pois, em uma ponta, recebem depósitos que,

em tese, seus clientes podem sacar a qualquer momento; na outra ponta,

usam esses depósitos para conceder créditos, que só podem ser cobrados

depois de cumpridos os prazos contratuais. Assim, os bancos estão sempre

em desequilíbrio. Interessa à sociedade que eles corram esse risco, pois

as operações de crédito são essenciais ao desenvolvimento econômico. Por

outro lado, também interessa à sociedade que eles sejam empreendimentos

seguros, pois uma crise bancária sempre é muito grave. Para compensar o

risco inerente à sua atividade e garantir solidez ao sistema, os bancos

 ao contrário das empresas comuns  podem recorrer a um emprestador de

última instância, que lhes dá cobertura. É o Banco Central, a quem, como

vimos, a sociedade concede a especialíssima prerrogativa de fabricar

dinheiro.

Ora, se o Banco Central (um órgão público) tem a obrigação de garantir

a solvência do sistema bancário privado, usando para isso a faculdade de

emitir a moeda nacional, é claro que ele precisa deter poderosos

mecanismos de acompanhamento e controle de todo o sistema. Por isso,

também desse ponto de vista os bancos não são empresas comuns. Estão

sujeitos a regras muito mais estritas que aquelas vigentes para os

demais setores da economia. No Brasil e em outros países, os bancos

centrais dispõem de instrumentos bastante fortes de regulação do sistema

financeiro, que aqui vêm sendo subutilizados. É por isso, por exemplo,

que os bancos especulam abertamente contra a moeda nacional, com toda

impunidade, e ganham bilhões. Aceitar a autonomia legal do Banco

Central, nas condições atuais, é radicalizar essa situação. É legalizar

a criação, para os bancos, de uma espécie de território liberado, que

o governo brasileiro desistiu de submeter às suas próprias decisões. Em

situação de crise  situação mais do que provável , o presidente da

República estará legalmente privado de poderes para intervir, alterando

a política monetária e cambial, se assim achar necessário.

A luta pelo controle do Banco Central é a mais importante arena atual

do debate sobre a mudança do modelo econômico. (...) O novo governo

precisa libertar-se das camisas-de-força, e não criar novas. Em vez de

tornar-se autônomo, o Banco Central precisará trabalhar de forma

intimamente articulada com o Tesouro Nacional, ambos perseguindo metas

combinadas não só para a inflação e o câmbio, mas também para o emprego,

a plena utilização da capacidade produtiva do país e o volume de crédito

ofertado à economia real. Essa ação articulada deve assegurar que a

economia seja irrigada com os fluxos monetários e financeiros

necessários para conduzi-la, com relativa estabilidade de preços, a uma

posição cada vez mais próxima do pleno emprego, ou seja, ao nível em que

a produção efetivamente realizada coincida com o uso do potencial

produtivo existente. (...) Se a operação montada para promover a

autonomia legal do Banco Central se completar, estará eliminada a

possibilidade de mudar o modelo nessa direção, ou em outra qualquer,

igualmente progressista. Neste caso, o governo Lula não se constituirá

plenamente. Todo o esforço para viabilizá-lo política e eleitoralmente

culminará em uma espécie de Batalha de Itararé  a grande batalha da

história do Brasil, que não chegou a ocorrer. Esperemos que Lula não

aceite ser o presidente que foi, sem ter sido. Tomara que tudo dê certo.



7. A evolução dos fatos, desde a publicação desse artigo, é preocupante.

Já no poder o PT alterou a redação do artigo 192 da Constituição, de

modo a tornar possível o envio do projeto de lei de autonomia para o

Banco Central. Logo depois, em carta datada de 28 de maio, o ministro

Antônio Palocci prestava contas ao Fundo Monetário Internacional (FMI):

A emenda constitucional que facilita a regulamentação do sistema

financeiro  um passo para a formalização da autonomia do Banco Central

 já foi aprovada (ver www.fazenda.gov.br). No fim de 2003, como vimos,

concluída a tramitação legislativa das reformas previdenciária e

tributária, o ministro anunciou o segundo passo, com tramitação da nova

lei para o BC sendo prevista para 2004. Em seguida, seria empossada uma

diretoria autônoma no BC, com mandatos fixos de quatro anos, não

coincidentes com os mandatos dos presidentes da República. Como sempre,

essa operação recebeu um rótulo pomposo, cuidadosamente escolhido para

impedir o debate: Lei de Responsabilidade Monetária. A mensagem é clara:

só os irresponsáveis podem se opor a uma lei com este nome.



8. A irresponsabilidade do governo do PT nas suas relações com o Banco

Central vem de longe. Começa na nomeação de Henrique Meirelles para a

presidência da instituição. Anunciada por Lula em Washington ainda em

2002, no fim de uma reunião com representantes do governo

norte-americano, a decisão foi justificada pela necessidade de manter a

credibilidade do Brasil junto ao sistema financeiro internacional.

Meirelles, como se sabe, era presidente mundial do Banco de Boston

(EUA), e ao assumir seu novo cargo em Brasília continuou a receber 

recebe até hoje  750 mil dólares anuais de seus empregadores

norte-americanos, que não por acaso mantêm em carteira o segundo maior

estoque de títulos da dívida externa brasileira (o primeiro está sob

controle do Citibank). Quando Meirelles assumiu o seu novo cargo, os

títulos brasileiros valiam menos da metade de seu valor de face. Um ano

depois, graças à sua atuação no BC, o valor desses títulos mais do que

dobrou, propiciando ganhos extraordinários para os seus detentores,

entre os quais, como vimos, destaca-se o Banco de Boston, que paga o

salário do próprio Meirelles. Não há no mundo nenhum caso em que o

presidente do Banco Central de um país é assalariado de um banco privado

estrangeiro e leva adiante, sem grandes contestações, uma política que

resulta na valorização dos ativos desse banco que o remunera. Em países

sérios, isso seria impensável. Derrubaria governos e levaria gente

importante à cadeia. No Brasil, em outras épocas, o PT pediria uma CPI.

Mas, no governo, em busca de credibilidade, o PT preferiu aceitar

reduzir o Brasil à condição de uma república de bananas.

É a este presidente de Banco Central e à sua equipe  notoriamente

ligada, pela sua trajetória profissional, aos interesses do sistema

financeiro  que agora se quer garantir mandato fixo, tornando o BC um

poder autônomo, desvinculado do poder político na Nação. A justificativa

para isso, dada pelo ministro Guido Mantega em entrevista à revista

Teoria e Debate (número 53, março-maio de 2003), é quase surrealista:

Havendo autonomia há uma perda de comando, uma diminuição do grau de

ingerência do Executivo sobre o Banco Central e, portanto, sobre a

política monetária. A vantagem é que ela dá ao mercado [financeiro] uma

garantia de que a inflação tende a ser mais baixa, pois não poderá

acontecer uma situação de o presidente da República pegar o telefone,

ligar para o Banco Central e dizer eu tenho eleição no ano que vem,

abaixa aí as taxas de juros; não importa que tenha mais inflação; eu

quero crescimento já, quero aumento de emprego.

Se Guido Mantega não existisse seria preciso inventá-lo. Pois, como

sempre, sua fala ingênua explicita a questão-chave que outros preferem

dissimular: o Brasil pode ou não pode autogovernar-se? As potências

coloniais  ontem organizadas em impérios formais, hoje em torno do

sistema financeiro internacional  sempre negaram esse direito aos povos

do Terceiro Mundo. É o que também nos diz agora o ministro do PT. Ele

aceita alegremente a representação ideológica de um hipotético

presidente do Brasil construído à imagem e semelhança dos piores

estereótipos colonialistas: irresponsável, aventureiro, bufão  quem

sabe mulato (ou nordestino), com certeza monoglota , que faz bobagens

por telefone, numa republiqueta situada abaixo do Equador, sem

instituições, procedimentos e regras. Na outra face dessa representação

está implícita a imagem de um banqueiro asséptico, responsável, racional

 certamente limpinho, branco e bem falante do inglês , que justamente

por isso precisa isolar-se das irracionalidades dessa gente tropical que

o cerca. Não passa pela cabeça do nosso ministro que o contrário possa

ocorrer: o presidente do Brasil pode ser um patriota, politicamente

responsável perante a Nação, com sua ação sujeita às regras

institucionais da democracia; o banqueiro, politicamente irresponsável,

pode ter outros interesses a defender.

Ao dizer essas bobagens, Guido Mantega se posiciona à direita do

ultra-conservador Milton Friedman. Em Capitalismo e liberdade (Nova

Cultural, 1985, p. 53-54), ele diz o seguinte: O Banco Central

Independente (BCI) é um mau sistema para os que acreditam na liberdade

justamente porque dá a poucos homens um poder tão grande sem que seja

exercido sobre eles nenhum controle efetivo por parte do corpo político.

Este é um argumento-chave, de natureza política, contra um BCI. Mas é

também um mau sistema, mesmo para os que põem a segurança acima da

liberdade. Erros não podem ser evitados em sistemas que dispensam a

responsabilidade mas dão amplos poderes a um pequeno grupo de homens,

tornando as ações políticas altamente dependentes de acidentes de

personalidade. Este é um argumento-chave, de natureza técnica, contra a

existência de um BCI.



9. Qualquer um pode entender o que está em jogo: dada autonomia ao BC,

os governantes brasileiros, eleitos pelo voto direto de milhões de

pessoas, deixam de comandar a mais importante instituição formuladora e

executora da política econômica no país. Os governos ficarão

condicionados a implementar suas políticas econômicas de forma a atingir

os resultados macroeconômicos desejados pelos mercados financeiros, diz

Eduardo Maldonado Filho, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A

questão central diz respeito, portanto, ao equilíbrio de poderes no

interior da sociedade brasileira. Banco Central autônomo representa mais

poder para o sistema financeiro e menos poder para o Estado nacional

visto como um todo. Representa menos, muito menos, democracia. Ao

contrário de Mantega, nós queremos exatamente que os presidentes da

República possam ouvir as demandas do povo por emprego e as demandas da

Nação por desenvolvimento, e tenham instrumentos de política econômica

capazes de responder a elas.

Na defesa da proposta há os argumentos risíveis e os mais sofisticados.

Alguns ressaltam, por exemplo, que falam em autonomia e não em

independência, pois o governo definiria a meta de inflação a ser

perseguida em cada período (um simples número), outorgando ao BC

liberdade para persegui-la. Evitaria assim a subordinação do BC,

apresentada de forma caricatural na entrevista de Guido Mantega. João

Sicsú, da Universidade federal do Rio de Janeiro, responde: Os

argumentos que contrapõem independência e subordinação são meros

bodes. Nenhum economista sensato os defende. A alternativa à autonomia

do BC é uma ação coordenada deste com o governo central, ação que teria

o objetivo de auxiliar o Executivo a manter a estabilidade monetária e

buscar o pleno emprego.

Um segundo argumento risível é o que associa BC independente e atração

de capitais internacionais. A China não preenche esse requisito (e

realiza extensos controles sobre a movimentação de capitais), mas

recebe, de longe, a maior fatia de investimentos externo no mundo. A

Argentina adotou uma versão radicalizada de BC independente (o chamado

currency board) e sofreu uma gigantesca fuga de capitais.



10. Os argumentos mais sofisticados favoráveis à autonomia do BC podem

ser divididos em dois grupos: aqueles que lançam mão das experiências

norte-americana e européia, e dizem pretender nos aproximar delas, e

aqueles que buscam razões na teoria econômica. Comecemos pelos

primeiros, descrevendo resumidamente as arquiteturas institucionais que

prevalecem nos Estados Unidos, no Brasil e na Europa. Ficará clara a

falácia do primeiro grupo de argumentos.

Nos Estados Unidos, o Banco Central (chamado Sistema de Reserva Federal,

ou FED) é formalmente independente, mas essa independência é definida em

lei de uma forma que o força a operar todo o tempo, necessariamente, em

articulação com o Departamento do Tesouro (correspondente ao nosso

Ministério da Fazenda). O arranjo é muito inteligente. O FED é obrigado

por lei a perseguir simultaneamente três objetivos: utilização plena da

capacidade produtiva instalada, pleno emprego da força de trabalho e

estabilidade de preços. O Tesouro, por sua vez, também por lei, é

obrigado a cumprir o Orçamento da União votado pelo Congresso e aprovado

pelo presidente da República; para isso, por meio de contas bancárias,

recolhe tributos da sociedade e paga as despesas previstas no Orçamento.

Se, por qualquer motivo, as despesas orçamentárias superam em algum

momento o recolhimento de tributos, as contas ficam negativas, mas

permanecem sendo movimentadas normalmente. Nesses casos, bastante

comuns, o Tesouro estará operando em déficit, automaticamente coberto

por meio de uma conta de compensação alimentada pelo FED. As ordens de

pagamento do Tesouro serão sacadas pelo público (entrando em circulação

sob a forma de expansão de moeda fiduciária) ou recolhidas às reservas

bancárias (se permanecerem depositadas nas contas dos seus

destinatários). O aumento das reservas pressionará para baixo a taxa

básica de juros. Agindo em estrita observância daqueles três objetivos

acima definidos  crescimento, emprego e inflação  cabe então ao FED

decidir se prefere enxugar essa liquidez aumentada (para evitar pressões

inflacionárias, por exemplo) ou sancioná-la (para estimular a demanda

agregada, por exemplo). Ele faz isso manejando a compra e venda de

títulos no open market: vende títulos para recolher dinheiro, ou compra

títulos para injetar dinheiro. Assim, através do open, o FED regula a

liquidez da economia norte-americana, e com ela a taxa de juros, de modo

a buscar aqueles três objetivos, sempre dando cobertura à execução, pelo

Tesouro, do Orçamento aprovado pelos poderes democráticos da República 

a Presidência e o Congresso.

O FED  cujos comitês decisórios são muito abertos à participação da

sociedade  só é independente para tomar certas decisões operacionais,

mas, como se vê, o arcabouço legal e institucional em que ele opera

disciplina essa independência e o força a atuar de forma intimamente

articulada com o Tesouro na busca de objetivos que interessam à

sociedade. Esse arranjo permite que ambas as instituições atuem de forma

permanentemente anticíclica. Em períodos de baixa atividade econômica (e

baixo recolhimento de impostos) o Tesouro tende a incorrer em déficit,

as reservas bancárias tendem a aumentar, e as taxas de juros, operadas

pelo FED, tendem a baixar. E vice-versa.

Os dois segredos principais do arranjo norte-americano são esses:

objetivos múltiplos para o BC (crescimento da produção, pleno emprego e

estabilidade de preços) e alta coordenação entre a ação do BC e do

Tesouro para garantir a execução do Orçamento da União e possibilitar a

adoção de políticas flexíveis, potencialmente favoráveis ao crescimento.



11. O caso brasileiro é o exato oposto. Embora o nosso Banco Central não

seja formalmente independente (ao contrário do FED!), ele já é

independente de fato (ao contrário do FED!!) e atua de forma

permanentemente pró-cíclica (ao contrário do FED!!!), de modo a impedir

a execução do Orçamento da União (ao contrário do FED!!!!) e tendo como

objetivo formal apenas a estabilidade de preços (ao contrário do FED!!!!!).

Falamos em objetivo formal, pois a preocupação fundamental do BC

brasileiro é garantir condições para rolar as dívidas financeiras do

Estado. Aqui, tudo começa na definição das taxas de juros que o sistema

financeiro considere adequadas para aceitar essa rolagem. Como a conta

de capital do balanço de pagamentos está aberta (decisão estapafúrdia

que data do governo Collor), os aplicadores financeiros ameaçam fugir a

qualquer momento para o dólar. Assim, podem impor ao Estado brasileiro

um alto prêmio para aceitar permanecer com seus ativos denominados em

reais. Este prêmio são taxas de juros suficientemente atrativas, que

sejam um múltiplo da taxa básica paga no sistema internacional aos

ativos denominados em dólar. Para suportar essas altas taxas, que

realimentam a própria dívida, o Estado brasileiro necessita retirar do

seu Orçamento vultosos recursos. Assim, parte significativa dos tributos

cobrados pelo Estado à sociedade se esteriliza na forma do famoso

superávit primário (R$ 70 bilhões em 2003), que comprime todas as demais

despesas previstas. O Orçamento da União, aprovado pelos poderes

democráticos da República, nunca pode ser cumprido, nem longinquamente.

É esquartejado na boca do caixa para caber nos recursos que sobram

depois que o Estado paga aqueles juros acordados entre o BC e o sistema

financeiro. Para completar a lambança, o BC brasileiro (também ao

contrário do FED!!!!!!) está proibido de financiar o Tesouro, que por

isso não tem a possibilidade de operar em déficit.

Resultado: o Brasil não pode fazer políticas econômicas anticíclicas e

funciona sem Orçamento. Ao longo do ano, estabelece-se uma permanente

briga de foice para definir quais gastos serão de fato efetuados pelo

poder público e quais serão contingenciados. Dono da chave do cofre, o

Ministério da Fazenda apequena e subordina os demais ministérios, e o

Executivo apequena e subordina o Legislativo. Tudo depende de decisões

casuísticas, que não são transparentes, não obedecem a um projeto e

abrem os espaços para a perpetuação do fisiologismo político. Nesse

contexto, a democracia brasileira continua a ser o mesmo tremendo

equívoco apontado por Sérgio Buarque de Hollanda há setenta anos, pois

os poderes democráticos da República não controlam, de fato, os gastos

públicos.

Na prática, o Estado brasileiro já é comandado por um Banco Central

independente, opaco, intimamente ligado ao sistema financeiro,

permanentemente contracionista, inimigo do crescimento e socialmente

irresponsável. Trata-se de um problema, não de uma solução. A

arquitetura institucional da nossa política econômica está virada de

ponta-cabeça, com o rabo (o sistema financeiro, através do Banco

Central) abanando o cachorro (o Estado nacional e a economia real). A

autonomia do BC brasileiro consagrará em lei essa aberração, tornando-a

praticamente irreversível. Não há nada, nessa operação, que nos aproxime

do inteligente modus operandi do Estado norte-americano. Ocorrerá

justamente o contrário.



12. O caso europeu, como dissemos, é diferente dos dois analisados

acima. Lá o Banco Central é de fato independente, tanto do ponto de

vista legal como real. A situação, que não analisaremos em detalhes

aqui, explica-se por estar a Europa em um estágio intermediário de

construção de um Estado continental, tendo como ponto de partida Estados

nacionais. Já há um Banco Central Europeu, mas os Tesouros (ou seja, os

ministérios da Fazenda) ainda permanecem submetidos aos Estados

nacionais constituintes da União Européia. Essa assimetria impede a

adequada coordenação de políticas monetárias e fiscais. Sem essa

coordenação (que, como vimos, o Estado norte-americano realiza com

grande competência), a Europa também perdeu a capacidade de realizar

políticas anticíclicas eficazes e deixou-se prender na armadilha do

baixo crescimento. A própria Alemanha já percebeu a necessidade de

livrar-se desse arranjo, mas todos os movimentos da União Européia, por

sua própria natureza, são especialmente complexos e lentos. A situação é

tão diferente da brasileira que não vale a pena analisá-la detidamente.

Mesmo assim, na comparação com o Brasil, uma coisa chama a atenção. O

Tratado de Maastrich permite que os Estados da União Européia operem com

déficit (ou seja, folga orçamentária) de até 3% do PIB; mesmo assim,

hoje todos o consideram draconiano demais, contracionista demais;

provavelmente ele será revisto para ampliar essa folga. Já o acordo do

Brasil com o FMI, feito pelo governo Lula, estabeleceu como piso um

superávit (ou seja, aperto orçamentário) de 5% do PIB. Assim, o Estado

brasileiro tornou-se o maior inimigo do crescimento brasileiro. As metas

Maastrich, para nós, seriam consideradas nababescas. Nem os chamados

radicais do PT ousariam propô-las.



13. Vamos olhar agora, rapidamente, para os argumentos teóricos

favoráveis à autonomia do BC. Eles pressupõem que o crescimento

econômico não é influenciado por variáveis monetárias e que os agentes

agem segundo as chamadas expectativas racionais, sendo por isso

capazes de antecipar (e neutralizar) as ações das autoridades

econômicas. Deixada livre de interferências, a economia de mercado

tenderia a um ponto de equilíbrio em que oferta e demanda globais se

encontrariam, ponto correspondente à plena utilização dos fatores de

produção disponíveis. Nessa concepção, políticas monetárias

expansionistas não têm efeito a longo prazo sobre as variáveis reais da

economia  produto e emprego , mas apenas sobre as variáveis nominais,

como o nível de preços. Daí a idéia de subordinar a ação do BC, apenas,

a metas de inflação, isolando-o das pressões da sociedade por

crescimento e emprego.

Estabelece-se então a seguinte seqüência conceitual: (a) o único

parâmetro relevante para a ação do BC é a estabilidade de preços; (b) o

único instrumento relevante para obter a estabilidade de preços é o

manejo da taxa de juros; (c) as taxas de juros, por sua vez, devem ser

usadas tendo em vista, apenas, o controle dos preços, sem levar em conta

seu impacto sobre as demais variáveis da economia nacional. O melhor

instrumento para operar dessa forma é, de fato, um Banco Central

independente, que realize políticas monetárias sempre com viés

contracionistas, definidas unilateralmente, de modo a retirar graus de

liberdade das demais autoridades econômicas. Um dos defensores desse

caminho, o economista norte-americano ultraliberal C. Goodhart, deixa

claro que o objetivo é institucionalizar orçamentos governamentais

enxutos e políticas monetárias que persigam objetivos apenas nominais.

Problemas de crescimento e emprego desaparecem do horizonte. São

deixados para o mercado.

Note-se que, se a justificativa teórica para um BC autônomo é tão

conservadora, essa medida só tem sentido se servir para perpetuar no

comando da instituição diretorias igualmente conservadoras. Não teria

sentido lógico instituir a autonomia do BC para entregá-lo em seguida a

um grupo de economistas progressistas, que defenda a coordenação entre

as políticas fiscal e monetária, bem como a adoção de metas de emprego e

crescimento, pois esses economistas, por coerência, precisariam fazer

logo o movimento inverso, reintegrando a ação do BC à ação do governo

como um todo. O debate doutrinário, portanto, esconde opções políticas

claras. Um BC autônomo será sempre um bastião da direita. Que bastião!



14. Todas as afirmações teóricas feitas acima sempre foram contestadas

pela maioria dos economistas  inclusive muitos conservadores  e são

politicamente orientadas para fazer prevalecer, em qualquer

circunstância, os interesses do sistema financeiro sobre os interesses

da sociedade. É fácil ver que as diferentes políticas monetárias não são

neutras. A riqueza está distribuída em diversas formas de ativos, cuja

rentabilidade relativa é alterada por essas políticas. Isso conduz a

economia real a assumir diferentes configurações. Dependendo dos

resultados dessas políticas, lembram Marco Crocco e Frederico Jayme Jr,

da Universidade Federal de Minas Gerais, expresso na rentabilidade

comparada da posse de cada um desses ativos, podem existir situações nas

quais os capitalistas prefiram valorizar sua riqueza em ativos cuja

ampliação não implica a geração de emprego, como é o caso dos ativos

financeiros. Ou seja, a política monetária tem o poder de permitir que a

valorização do capital ocorra no chamado circuito financeiro e não no

circuito produtivo. (...) As políticas monetárias podem,

indefinidamente, possibilitar aos capitalistas a ampliação de sua

riqueza pela demanda de ativos cuja oferta não implica a contratação de

mão-de-obra. Esta é a lógica do equilíbrio com desemprego, descrita por

Keynes. Aceitar que a política monetária possa afetar permanentemente o

nível de atividade econômica implica aceitar que é necessária a

coordenação entre essa política e a política fiscal.

Podemos concluir dizendo que a estabilidade de preços é um dos

parâmetros relevantes para a ação do BC, que o manejo das taxas de juros

é um dos instrumentos para obtê-la (pois há inflações, como a

brasileira, que não são causadas por pressão de demanda) e que,

portanto, o uso desse instrumento deve ser calibrado com outros e levar

em conta as demais variáveis relevantes da economia nacional. Nem o BC

pode, sozinho, controlar inflação de custos e inflação inercial sem

agravar de forma intolerável a recessão e o desemprego, nem a atividade

econômica pode recuperar-se sem uma política ativa de expansão da moeda

e do crédito pelo BC, lembra José Carlos de Assis.

É clara a necessidade de coordenar políticas monetária, cambial e

fiscal, todas elas subordinadas a metas de desempenho econômico e social

definidas pelo poder político da Nação. Por isso o Banco Central não

pode ser autônomo. Dizemos mais: ele nunca é autônomo. Subtraído do

controle do Estado, ele passa a gravitar, automaticamente, na órbita do

sistema financeiro nacional e internacional, especialmente em uma

economia tão vulnerável como a brasileira. Impedir que isso seja fixado

em lei, tornando-se a partir daí um padrão impermeável à decisão

política da sociedade, é o mais importante foco de resistência, hoje, ao

avanço do neoliberalismo no Brasil.



15. Entre os economistas não vinculados ao mercado financeiro há uma

esmagadora opinião  talvez uma unanimidade  contrária à autonomia

legal do BC. Ela inclui nomes de grande prestígio, a começar por Celso

Furtado, que chamou essa operação de privatização do Banco Central.

Se, à revelia dessa opinião qualificada, o governo enviar o projeto ao

Congresso, estará confirmando um padrão de comportamento já observado

antes. As reivindicações de mudanças em favor dos interesses populares

caem sempre na vala comum dos pedidos de paciência, recheados de

metáforas e conselhos de auto-ajuda, pois o presidente Lula reafirma

nesses casos que as mudanças têm de ser feitas devagar, com muita

cautela e responsabilidade, sem açodamento. A caneta de Lula, nesses

casos, é pesada, lenta  imóvel, a bem dizer. Já as mudanças em favor

das elites, mesmo radicais, controversas e profundas  como a reforma da

Previdência, a liberação dos transgênicos, a anistia aos devedores do

INSS, a lei de falências , são decididas com inusitadas rapidez e

agilidade. A caneta de Lula, nesses casos, torna-se leve, ágil, nervosa,

infinitamente submissa. O governo do PT sabe que os poderosos não têm a

paciência dos humildes nem se deixam embalar com historinhas de futebol.

No caso, porém, da entrega do Banco Central ao sistema financeiro, de

papel passado, todas as fronteiras da decência terão sido ultrapassadas.

É de alta traição aos interesses da Nação que se trata.





PS. Este texto estava pronto quando a edição de 12 de janeiro do jornal

O Estado de S. Paulo saiu com a seguinte manchete de primeira página:

País recebe pressão pela autonomia do Banco Central. Diz a matéria: O

presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, foi questionado ontem,

na Suíça, por representantes dos maiores bancos do mundo sobre quando a

independência da instituição será, de fato, uma realidade. Nada mais é

preciso dizer. Está claro a quem tal decisão interessa.











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