Da minha janela
vejo os mangueiros e os abacateiros cobertos de flor. Muito agradável. É uma
promessa otimista da Natureza. Apesar das agressões do homem ao meio ambiente,
a força da terra continua impávida oferecendo seus mimos, seus espetáculos e a
produção dos alimentos de que a humanidade precisa para sobreviver. Lá em
baixo, na sobra dois casais de joão-de-barro ciscam o chão procurando alimento.
Mais na tarde, virá o sabiá laranjeira, saltitante, procurar sua comida. No ar,
o gavião sobrevoa a região procurando suas presas. De surpresa, aparece o
tucano à procura de filhotes alheios para sequestrar.
Retido pelo
frio, fico em casa e me sento olhando o computador. Penso em escrever. Mas o
que vou escrever? Não sei bem ainda. Há mil possibilidades de dar sequência ao
discurso. O mais simples por enquanto é sentar,ficar calminho. Deixar o pensamento assentar, deixar entrar a
consciência plena para conceber um plano. Depois organizar as sensações e a
cabeça. Decidir se vou quererproduzir
um texto de imaginação ou um texto referenteao mundo real. Vou ficar no mundo onde assentam meus pés ou me inclino a
escolher rigorosamente o gênero de escrita que vou produzir? Na realidade vou contar uma história real ou
fazer comentário sobre fato acontecido? A cabeça fica toda mobilizada. Passam
pelos neurônios mil estradas que me levam longe e muitas porteiras que me retêm
em mil dúvidas. No entretanto, o pensamento é dinâmico e não se compadece de
nada nem de ninguém. À solta, cumpre sua missão. Cria movimento que vai das
emoções e sensações até à inteligência, memória e imaginação. Esse movimento me
mostra como o mundo é plural e multidiverso. Na convivência dessa ideia, de
minha parte resolvo assumir o comando, chamando o "eu" para dirigir a
ação da escrita na convivência plural e diversa que me habita. A decisão nasceu do fato de não ficar
simplesmente retido ou prisioneiro de minha diversidade. Aí veio a necessidade
de bater o martelo e decidir. A decisão foi a de escrever uma crônica urbana. Na
decisão estava contida a temática e a forma como desenvolver a narrativa. Sendo
assim, que feição vou dar à minha crônica?A primeira coisa seria pegar uma ideia ou um detalhe que me proporcione
uma narrativa. Ao pensar isto, veio-me a
lembrança de Guimarães Rosa. Em primeira mão a proeminência que ele deu ao
diabo em Grande Sertão:Veredas.
Lembrei-me do curso semestral que dei no CEUB em 1971 para setenta alunos
regulares do curso de Letras, analisando e interpretado o Grande Sertão. Veio-me à memória como resumo o episódio narrado em
Veredas Mortas que representa o clímax do pacto de Riobaldo com o Diabo. Ao
mesmo tempo lembrei-me da problemática similar explorada por Goethe na sua inegualável
obra Fausto. Escrever, agora, eis a minha questão. Sei que a escrita é um
jogo. Um jogo onde as palavras ganham lugar e sentido. Onde as palavras
conduzem a mente a fazer uma associação ligando o entendimento a aspectos da
realidade. Onde as palavras são chamadas a representar o que chamamos de
passado, de presente e de futuro.
Na imprensa
quotidiana brasileira, são oferecidos os mais diversos estímulos para uma
crônica cuja espinha dorsal poderia designar-se pelo complexo título de "O
diabo à solta". Não é o caso individual de um Fausto ou de um Riobaldo. É
o caso mais geral do "sertão" encarado por Guimarães Rosa. O significado
de sertão roseano pode ser vertido em termos modernos para o de sociedade. Uma
sociedade cada vez mais complexa enredada em mil situações de dramas, de
crenças, de processos, de ambições, tramóias, crimes, roubos, assaltos,
sequestros, até aos crimes cibernéticos dos hackers. No fundo, o "diabo à
solta" é o rosto do mal agindo e se expandindo. Um mundo oculto, estranho,
com mil atores em mil palcos. Tráfico de armas e drogas, sessenta e três mil
assassinatos por ano, chacinas, presídios desumanizados, assaltos e roubos de
carga, execuções sumárias, roubos espetaculares como o de 718 quilos de ouro. Esta é a parte negra do mundo em que vivemos.
Se o homem, hoje,
fosse esse ser que a tradição consagrou como "animal racional",
teríamos certamente uma história da humanidade que poderia caracterizar-se pela elevação e
pelas grandes conquistas científicas e humanitárias . Não é o que acontece.
Apesar da existência de grandes correntes de espiritualidade e de muitas
igrejas na sociedade contemporânea e do esforço em se apelar para a ética nos
debates e nas conversas sociais, a verdade é que a prática fica longe ainda da
segurança e do respeito aos cidadãos pacíficos. "O diabo à solta"
continua fazendo trágicos estragoscom
chacinas, roubos espetaculares, execuções, desrespeito à lei e à paz da sociedade
pacífica. Muitos membros da sociedade continuam se comportando, como diz o povo, ao nível de "bestas quadradas". A inteligência
humana tem de ser convertida a favor do próprio homem. Educação? Formação? Comportamentos
sociais regidos por leis adequadas? Situações negativas parecem ser parte da
condição humana que a par dos deveres sociais haverá de conviver com a liberdade
individual e com as circunstâncias existenciais ocorrentes que têm sua parte no
surgimento de comportamentos suspeitos e marginais. Não sabemos ainda se num
futuro possível o homem irá ter autoridade para conter tantas atrocidades e
abusos e ao mesmo tempo criar mais espaços para a expansão de seus ideais
supremos. Para já, atenção, o diabo anda
à solta!