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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->29. PRATICANDO A MEDIUNIDADE -- 21/06/2002 - 10:33 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O relacionamento entre Fernando e Dolores estava prestes a definir-se pela separação religiosa. Tinham ambos a impressão de ser fato irreversível. Ela não se sentia capacitada a dissuadi-lo, percebendo que as invocações de caráter sentimental não surtiriam efeito. Ele tinha os argumentos íntimos da solidariedade espiritual, impossível de fazer valer em demonstração argumentativa racional, falto de comprovação. Aliás, sentia-se mesmo impedido de relatar os diferentes contactos, para não dar demonstração de insanidade mental. Bastava a experiência da loja com o Joaquim.

Estavam, pois, tacitamente de acordo que fariam conforme as consciências. Assim, às sete horas, após repasto frugalíssimo, em que evitou tocar nos pratos à base de carne, Fernando saiu, não sem convidar a esposa a acompanhá-lo ao Centro Espírita “Jesus de Nazaré”. Se sentisse a respiração da consciência, iria percebê-la aliviadíssima.

Em caminho, lembrou-se de solicitar aos mentores que o ajudassem, para que pudesse cumprir as obrigações. Pelo que lhe foi dado ver, na única sessão a que compareceu, talvez não se sentisse à vontade para reproduzir as falas dos sofredores. Sentir-se-ia envergonhado. Pedia força e, se fosse possível, que algum médium trouxesse mensagem de Jeremias ou, ao menos, notícia de seu estado psíquico. Temia que não estivesse bem, à vista do sofrimento que lhe foi permitido visualizar durante o enterro.

Foi recebido à porta por João. Queria dar uma palavrinha antes, a respeito dos serviços de escrituração.

— Temos meia hora e aqui, na secretaria, não seremos atrapalhados. O pessoal que vem hoje está ligado aos cursos. Da diretoria, só eu mesmo, que pouco atuo junto à mesa. Você verá. Mas o Eduardo me passou as informações colhidas em diversos fornecedores. Muitas das notas que desapareceram eram “frias”. Não constam da contabilidade dos fornecedores. Se nós denunciarmos a entrada das mercadorias e quisermos pagar os impostos correspondentes, iremos ter de denunciar a falcatrua, desde mais acima. Tudo indica que os mesmos fiscais estão envolvidos. Recebiam de você e dos outros. Pode estar acontecendo, também, que haja rede bem maior, a partir de departamentos...

— Como entra o Silvano nessa jogada?

— Desconfio que desconheça o terreno em que está se metendo. Por mim, prudentemente, vou fazer o levantamento de todas as faturas “quentes”, para propor ajuste fiscal relativo aos débitos comprováveis. À parte, darei balancete completo das atividades paralelas. É como se existissem duas firmas: uma no plano da realidade, outra no da fantasia. Como matéria e espírito...

João jogava com a terminologia, mas não pretendia gracejar. Exemplificava, tão-somente. Estava apreensivo, pois qualquer deliberação do comerciante iria envolver o setor da escrituração contábil. Se julgasse melhor denunciar, haveria que estabelecer levantamento dos estoques, para comprovação da origem. A fiscalização reagiria de forma imprevisível, pois não se poderia saber até onde se implicariam os agentes do Governo. Se, ao contrário, se optasse por manter os livros de acordo com as notas e faturas existentes, ficaria a possibilidade de ir para frente a instigação de Silvano e tudo o que se registraria como “caixa dois” poderia ser esclarecido pela Corregedoria.

Fernando compreendia o impasse do contabilista.

— Faça de acordo com a consciência. Após o levantamento completo, quando se caracterizar a extensão dos procedimentos desonestos da fiscalização, dos fornecedores e da firma, resolverei o que fazer. Mas não vou furtar-me de considerar as suas ponderações. Penso que não esteja afastada a hipótese de uma visita ao Doutor Onofre. Ou ao Silvano.

João percebeu que Fernando iria até o fim e louvou-lhe a decisão.

— Deu tempo para iniciar alguma leitura?

— Quase completei O Céu e o Inferno.

— Está gostando?

— É muito esclarecedor. Kardec diz muita coisa que os padres não gostam de mencionar. O que mais me impressionou foi a criação do Purgatório. Pensava que fosse da tradição eclesiástica, como reflexo da própria verdade. Um local de purgação para quem não praticou pecados capitais...

— Kardec diz-nos que o Purgatório existe, mas é aqui na Terra mesmo...

— E está perfeitamente certo. Se foi criação do sacerdócio para a venda das indulgências, então que mereça interpretação mais coerente com a verdade.

— Se você tivesse lido O Livro dos Médiuns, iria sentir-se melhor preparado para esta noite.

— Talvez. Mas O Céu e o Inferno correspondia melhor às minhas íntimas necessidades.

Não dava tempo para as explicações das “íntimas necessidades”.

— Os trabalhos de hoje vão desenvolver-se numa sala menor. Aquela mesma dos passes. Venha comigo.

Ao adentrar a saleta iluminada, Fernando pôde observar que era maior do que lhe parecera na outra noite. É que ampla mesa tinha sido disposta no centro. Durante a sessão de passes, ficara encostada na parede, o que limitara o vão para as cadeiras. Pensava sobre essas coisas, enquanto permanecia silencioso, em meditação. As oito pessoas presentes concentravam-se, sem darem atenção aos recém-chegados.

Furtivamente, Fernando perpassou o olhar pela assembléia para ver se reconhecia alguém. À cabeceira, o capitão da reserva, Francisco. Cabeça baixa. Em oração.

João fazia as vezes do contra-regra, cuidando do som e da luz. Quando chegaram, ouvia-se suave melodia de câmara. Violinos, violoncelos. João diminuiu a intensidade da luz, até um ponto em que se pudesse ler. Abaixou o som, deixando-o como que provindo de muito longe. Alguém, com leve dificuldade de audição, diria que fora desligado o aparelho.

Uma senhora assumiu a direção dos trabalhos e solicitou de todos o máximo de concentração à leitura. Abriu um dos livros à sua frente e pôs-se a ler texto a respeito de Jesus. Falava sobre o Mestre, em sua passagem pela Terra. Mas não reproduzia os evangelistas. Falava como se fora em tese, sobre a bondade, sobre a caridade, sobre o dom de curar o corpo e a alma, sobre a solidariedade. Só fatos positivos. Dizia que Jesus era espírito de elevada categoria, sobre quem pesava o fardo de orientar o Planeta, o que fazia com o máximo de competência. Citava de passagem a maldade humana, para afirmar, em seguida, que a humanidade vinha melhorando, século a século. Terminava prometendo a redenção do homem para o terceiro milênio, sob a luz do Espiritismo.

Fernando esperava que se fizessem comentários, mas a senhora pôs-se a orar a Prece de Cáritas (segundo o que ela mesma declarou). Em seguida, rezou um pai-nosso (Fernando notou que diria padre-nosso) e cometeu uma série de deslizes de concordância, o que incomodou o neófito. O Padre Timóteo, pelo menos, começava com vós e jamais imiscuía o tu desagradável da intimidade com o Pai. Aí, percebeu que não estava devidamente concentrado na oração. Era preciso superar essas preciosidades formais. Deveria dar importância ao aprendizado que viera buscar. O espírito crítico poderia prejudicar-lhe a aquisição desejada. De si para consigo, resolveu orar um padre-nosso, buscando desligar-se do grupo.

Ia em meio da oração, quando Francisco, com o vozeirão característico, declarou que a entidade que se incorporara era o Irineu. Sua flexão, no entanto, transmudara-se muito. Era o mesmo timbre, contudo a maneira de falar parecia de outra pessoa. Se estivesse num palco, dir-se-ia que representava muito bem sua personagem.

Irineu conclamou os presentes a que se mantivessem coesos na vibração espiritual, para o que deveriam concentrar-se na idéia de que Jesus poderia estar presente. Imaginassem o Mestre à porta de entrada, espírito superior de luz, a dar a todos a tranqüilidade da perfeição, do equilíbrio, da paz. Havia alguns espíritos desejosos de se manifestarem, para quem os proponentes-médiuns deveriam dar passividade.

Um a um, os que rodeavam a mesa foram falando o que lhes vinha à mente. Era uma pessoa desejando informar que estava bem, que a morte era só passagem para outra dimensão (“para a pátria espiritual”, como disse). Era uma sofredora que desejava restabelecer os vínculos do amor maternal, porque a filha estava esquecida dela, embora forcejasse para fazê-la sentir sua presença. Era um rapaz muito novo, morto atropelado há algum tempo, que pedia orações, pois sentia muitas dores na cabeça, local atingido na queda.

Quando Irineu pediu para Fernando falar, imediatamente sua visão abriu-se para o etéreo. Ouvia Roque dizendo-lhe para reproduzir-lhe as palavras. Era como se estivesse com fone de ouvido e devesse retransmitir a mensagem. Não era bem essa a idéia que fizera da incorporação e ficou receoso de não atingir os objetivos do orientador espiritual. Mas pôs fé em que não seria difícil. A luz tinha sido amainada mais ainda, e, naquele ambiente azulado, pôde ver que os demais estavam cabisbaixos, como se não estivessem prestando atenção em nada do que pudesse dizer.

Irineu insistiu para que falasse.

— Amigos, boa noite! Que a paz de Jesus esteja com todos! Estamos tristes porque um amigo querido foi enviado para o plano dos imortais, sem condições adequadas de usufruir a felicidade de consciência tranqüila. Todos aqui conheceram Jeremias, que conosco primava o prazer destas reuniões de aprendizagem e amor fraternal. Todos sabem do elevado desejo de aprimoramento espiritual que portava. Pois lhes peço para, serenamente, enviarem prece saudosa ao irmão, para que sinta a nossa vibração de amizade, de afeto, de solidariedade.

Fernando sentia que traduzia mal a manifestação, como se, na verdade, recebesse vibrações sutis no âmago do cérebro, no hemisfério reservado ao desenvolvimento dos pensamentos, e que devesse transformá-las em palavras, em orações, mantendo-lhes o tônus de elevação moral. Mas intuía que a tradução estava deficiente, que o vocabulário não correspondia exatamente à terminologia do jargão espírita. Acabou por atrapalhar-se com a duplicidade das informações e não deu seqüência às idéias que lhe vinham suavemente, mas em fluxo contínuo. Resolveu reproduzir apenas o que configurava como principal, contudo a visão do protetor se desvaneceu, enquanto lhe fazia gesto de incentivo e agradecimento.

— Graças a Deus!

Diria melhor, se dissesse: “O Senhor seja louvado!” Mas forte cruzar de tendências religiosas bloqueou-lhe o raciocínio. Emocionara-se com a primeira experiência testemunhada de mediunidade. Não sabia, contudo, se ficava eufórico ou se devia estabelecer desde logo a crítica dos titubeios, que lhe pareceram ter ficado evidenciados para a platéia. Qual seria a opinião...

Não chegou a formular a pergunta. Ao volver o olhar ao derredor, deu com a Tia Ana, cintilante de luz, enxugando as lágrimas. Intimamente, sabia que eram de felicidade. Teria correspondido aos anseios da protetora? Já não lhe importavam as opiniões.

Após o encerramento da rodada mediúnica, Irineu estabeleceu elogios gerais e calou qualquer apreciação de caráter particular. Estimulou a todos para que continuassem com o mesmo fervor e pediu-lhes que efetuassem leituras edificantes, nos dias das sessões de aprendizado da mediunidade.

João deu tempo para todos se recomporem, antes de acender as luzes.

Em plena claridade, todos se felicitavam pela noite esplêndida. Queriam conhecer Fernando. Francisco fez as apresentações e quis saber o que ocorrera, para tanta felicidade. Desconhecia o que se passara. João interveio e relatou sucintamente como cada participante reagira. Elogiou a fala do novato e fez ver aos demais a necessidade do atendimento ao pedido de preces, especialmente quanto a Jeremias. Nesse ponto, perguntou a Fernando se tinha conhecimento de que o amigo cursava a Escolinha de Médiuns. Não sabia ao certo. Parecia ter ouvido falar qualquer coisa nesse sentido. Pois era assíduo, não tendo perdido nenhuma sessão, desde que ingressara no Centro.

Formalizadas as despedidas, Fernando voltou para casa pensativo. Estaria sendo útil ao exercer aquele tipo de ministério? Decepcionara-se com a reação dos demais. Parecia-lhe que houve excessiva frieza, como se todos desconfiassem uns dos outros. Teriam inventado as historietas? Se tiveram visões tão claras quanto as dele, por que não evidenciaram? Por que não foram mais efusivos no contacto com a “pátria espiritual”? O que lhe fora fundamental na deliberação de buscar entender os fenômenos mediúnicos, não repercutia na assembléia com a mesma intensidade psicológica. Estaria sendo exigente demais? Será que João iria convidá-lo de novo para a reunião das segundas-feiras? Se convidasse, não seria por estar-lhe prestando serviços profissionais?

As perquirições afloravam-lhe à mente, mas não se definiam as respostas. Era como se não estivesse em sintonia com os protetores. Onde estaria errando? Levaria a preocupação para o leito. Talvez sonhasse como quando viu aqueles outros espíritos da sessão anterior.



Em casa, encontrou Dolores vendo televisão. Os olhos excessivamente inchados. Vermelhos. Esquivou-se do abraço do marido. Recolheu-se ao dormitório. Fernando acreditou nos sentimentos da esposa. Deixara-a só, em noite em que as sensações do dia tinham sido muito intensas. Condoeu-se. Sentiu remorsos. Fora atrás de aperfeiçoamento mediúnico. Para quê? Para ajudar os espíritos. Para praticar a caridade evangélica. Esquecera-se da pessoa mais querida. Aquela que lhe dera praticamente a vida toda. Sentiu-se mal, como se algo estivesse muito errado.

Quando se encheu de coragem para ir ao quarto, Dolores assomou à porta da sala. Trazia pequena valise na mão. Fazia menção de sair àquela hora.

— Vou embora. Aqui não fico mais. Estou cansada de ser tratada como cachorro. Faça bom proveito de seu espiritismo...

Surpreendentemente, Fernando não reagiu. Deixou-a partir sem um único murmúrio.

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