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Contos-->Perda -- 18/04/2000 - 00:22 (Erasmo Junior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
De cima do pilar da varanda pode-se vê-lo parado bem no meio do jardim, perdido nas decorações da festa de aniversário vazia e nas suas angústias infantis.
Ninguém consegue ser forte o tempo todo, ninguém.
Ele faz oito anos de idade hoje e está sozinho assistindo o espetáculo deserto do final da tarde. Pode-se sentir o quanto é uma criança ansiosa não pelas suas roupas abarrotadas, a calça folgada demais com a barra dobrada torta, o tênis encardido e a camiseta curta com manchas de água sanitária, ou pelo cabelo molhado e penteado para trás desordenadamente, mas pelo seu olhar de milhares de anos aos olhos de alguém que se importe.
Dentre os balões, um escapa e é solto no espaço. Voa para cima e explode longe do olhar de qualquer espectador, mas não dos olhos milenares dele, porque simplesmente não há mais ninguém ali. Talvez fosse pior se a sua festa estivesse cheia, lotada com dezenas de pessoas povoando o seu jardim e provando do bolo colorido, pois seria uma maneira dele ficar mais sozinho do que nunca, como um deserto pela noite, como uma piscina seca no verão, onde tentam jogar em vão baldes de água na esperança de um dia enchê-la, mas tudo o que se consegue é alimentar a secagem. O seu jardim, que está bem cuidado, decorado com a mesa grande de doces e com um baú para brinquedos, parece consentir com seu coração que, se aquilo estivesse cheio, seria como se tudo dentro estivesse quebrado e sem funcionar. Brinquedos quebrados.
Brinquedos quebrados.
Por quanto tempo ele sentiria a perda? Não a perda da festa, por não haver absolutamente ninguém lá, nem seus pais, nem seus tios, nem seus primos, parentes, avós, ninguém, nem cachorro, gato, passarinho, um raio de desolação enorme ao seu redor, sem amigos ou colegas de sala de aula, da hora do recreio, até os meninos maiores que tanto gostavam de subjulgá-lo, essa história todo mundo conhece quando se tem menos de dez anos de idade, de levar porradas na cabeça, ter o caderno riscado e os bolsos da camisa cheios de areia, só porque não conseguia secá-los depois por ser pequeno demais, será que é isso que se passa dentro da cabeça dele agora? A perda que ele insiste em tentar lembrar não fica clara, apesar do espaço enorme, do buraco, do vazio, do vácuo negro crescente dentro de sua alma, amor é uma dor unilateral e improvável, um balão solto no espaço, voando para cima, para cima estourando a metros demais para que alguém escute o barulho ou diga qual era a sua cor antes de ser destruído, deve ser isso que ele está sentindo agora, é isso mesmo?
Mesmo com toda aquela festa preparada e caprichada, ele não sabe onde foi parar todo mundo.
Mesmo com todo aquele cuidado por nada, por nada, ele não se esqueceu de convidar um único colega que mal falasse com ele na escola e na sua rua, não se esqueceu nem do moleque mal educado que quebrou a sua bicicleta, nem dos valentões, muito menos da garota que ele tratava mal e evitava se aproximar, mesmo que sonhasse com ela a noite toda, a noite toda, um devaneio de que um dia seria grande e a teria em algum momento de sua rota, apesar de saber que é novo demais para se sentir daquele jeito.
Ele tem os olhos antigos do deserto. Brinquedos quebrados sendo enterrados na areia por um vento incansável como os balões soltos no espaço, sabendo, desde o momento que nasceu, que todo mundo existe para perder, e que qualquer coisa que se consegue na vida é ganha para ser perdida.
E ele continua esperando, por um vacilo do tempo, alguém chegar para a sua festa, mesmo sabendo que isso jamais acontecerá.
Continua tentando se recordar da perda, dentro de sua própria prisão.

* * *

(hardcore, agora ele está descendo do carro velho da polícia, com as unhas roídas e uma trinta e oito junto do distintivo à vista na cintura, no centro da cidade. A alguns metros estão dois policiais civis com três moleques de rua minúsculos e um pouco mais distante, uma viatura fechando um beco. A cidade não pára)
Pronto(fala olhando para os moleques) são esses aí? Que piada é essa?
(um dos policiais) esses mesmos, doutor. Descreveram tudo direitinho para a gente.
E daí que descreveram, porra? E daí? Olha o tamanho deles.
Eu sei, eu sei.
E daí? Três cheiradores de cola...
Eu sei, mas é que mostraram aonde estão os corpos.
(ele olha de novo para os três, distantes, sem se importarem com o que se estava discutindo, detidos e apáticos ao resto do mundo. A idade, quantos anos)
Qual a idade desses moleques? Você(pega um pelo ombro), nome e idade.
... ...
Nome e idade, caralho.
balão, treze.
E os outros dois? Esse aqui(pega no menor), qual a idade dele?
Esse é o caçote, fez oito hoje. E o outro é o mijão, de onze.
mijão?
É, ele faz xixi dormindo ainda, hehehehehe
(mijão se mexe, irritado) faço não, faço não.
Puta merda.
(o outro policial): e então, doutor? Quer ir ver logo a cena do crime? Eles descreveram tudo direitinho...já tem uma viatura isolando o lugar ali.
Espera. Eu quero falar com esses moleques. Tinha alguma coisa com eles?
Não, tinha não.
Cola, crack, nada?
Nada. Só as roupas do corpo, meladas de sangue.
É prova do crime. Os três, tirando a roupa, vamos, vamos.
(o primeiro policial) escutaram, vão tirando.
(os três ficam nus sem cerimônia no meio da rua e entregam os trapos, que são colocados dentro de um saco plástico por um dos policiais)
Muito bem, que história é essa que vocês contaram? Quem vai falar?
(mijão) hehehehehe
Cala a boca, quem vai falar?
(caçote) eu falo.
Fala.
(caçote coça a cabeça raspada e diz) foi que nóis vinha pra cá, pro centro, e daí encontremos os outros dois.
Que dois?
Os outros dois, o menino e a irmã dele. Dissero que tavam perdido, daí ficaram com nóis.
Sei.
Daí a gente deu umas volta com eles e ia dar cola pra eles cheirar também, mas o mijão num concordou e nóis decidiu matar eles. O balão pegou uma pedrona e meteu na cabeça do menino, ele caiu na hora, ficou todo amassado, e ela nóis estrupô.
Você também?
Eu também, nóis trêis.
(balão) eu não!
(caçote) você também, você também. Nóis estrupô e depois matamo, ela já tava meio apagada de tanto chorar e enrolamo um pedaço de corda no pescoço dela e apertamo, apertamo, apertamo.
(os dois policiais olham para ele, um deles fala)
Tá vendo, doutor? Eu falei...deixa só o senhor ver os corpos. Duas crianças.
Isso é absurdo. Você, caçote, olha aqui(agarra o menino pelos ombros), não mente, está ouvindo, não mente para mim, você estuprou ela, teve relação com ela?
(os outros dois moleques, rindo)
ele teve sim, hehehehehe, teve sim.
(caçote) eu num ia ter, mas daí o senhor sabe, eu fui lá também...
E vocês dois? Que papo é esse de estupro.
(mijão) a gente ia abrir eles pra ver dentro.
(balão) é. Mas num deu tempo.
(mijão) nós teve dó.
(caçote) é. nóis ia matar depois, mas daí a gente num quis esperar.
Coloquem esses três dentro do carro e me esperem, aonde estão os corpos? Aonde? Eu vou ver agora.
(um policial indica o beco no quarteirão adiante; dá para ver uma viatura parada isolando a área, com alguns passantes ao redor. Apressado, ele anda quase correndo. Chega no beco e tem um monte de fotógrafos e três outros policiais tentando impedir que vejam os cadáveres. Lá no fundo, ao lado dos tonéis e containers de lixo, dois corpos pequenos cobertos por jornal)
(um dos policiais) Falou com eles, doutor?
Falei. Não pode, menino de oito anos num estupra ninguém. O maior tem treze, cacete, treze. Tirem esses cagões daqui, saiam, parem de tirar foto! Saiam!
(um policial afasta os fotógrafos)
Não pode. Oito anos, o pau dele não tem tamanho, nem ele tem tesão, esse bosta nem sabe o que é tesão.
Esses moleques são do mal, doutor.
Que mal que nada. Não pode. Deixa eu ver o corpo(puxa as folhas de jornal. Há um menino com um buraco esfolado na nuca do tamanho de uma bola de tênis cheio de sangue coagulado, moscas voando para todos os lados, devia ter uns dez anos de idade pelo tamanho do corpo. Em cima dele, uma menina menor, sem roupa, de bruços, com cabelo entrando na boca e o nariz quebrado. Ao pescoço, um pedaço de corda torcido. Ela teria em torno de sete anos) Porra.
Horrível, né, doutor? São três bichos.
(ele coloca a mão na testa, depois a unha do polegar entre os dentes, olha para a menina, para o lado, para a menina, para o menino, para uma folha de jornal. O jornal é bem velho, de uns dez anos atrás e é a página de óbitos. Tem muita mosca voando)
Não pode ser, o menino tem oito anos, é fisiologicamente improvável. Vira ela, quero ver se foi violentada mesmo.
(com cuidado, um dos policiais vira o corpo. Há muito sangue seco na virilha e não dá para ver direito as genitais)
Chamaram o IML?
Já.
(ele coloca a mão na nuca, passa na testa, olha para cima, para os fotógrafos do outro lado, para o lixo)
Eu...vou mandar os moleques para a delegacia para conversar de novo. Encaminham direito isso aqui que depois...eu vou ver isso, tem coisa errada aqui, só pode, puta que pariu. É esperar os resultados.
Esquenta não, doutor.
Cobre os dois com alguma coisa sem ser jornal, um cobertor, uma lona, sei lá, e manda esses putos pararem de tirar foto, parem de tirar fotos, caralho!
(ele olha a folha de jornal de novo, nos óbitos. De longe reconhece o retrato; se agacha e lê: nota de dez anos de falecimento, saudosa memória. Ele sabe quem é e se lembra da perda, sabe muito bem quem é, cravada no seu coração, o quebra-cabeças se completa)
(a perda, finalmente a perda. Festas de aniversário vazias)
Doutor?
(ele não consegue ser forte o tempo todo porque ninguém consegue)
Doutor?
(nascido para perder.)

* * *

Então é assim. Ele ainda está lá, parado, sentado de frente para o bolo de aniversário. É assim que acaba e tudo o que deseja é não estar mais naquele inferno deserto, tão bonito e colorido, preparado com tanto carinho para ninguém desfrutar. Desolação; ele faz oito anos e ainda assim entende o sentido daquilo.
Não há mais ninguém naquele mundo. Ele sempre esteve só.
O tempo não passa e tudo o que tem é uma festa de aniversário vazia e memórias de uma vida(várias vidas?) mal vivida, uma vida comum por ser tão peculiar e diferente. Uma infância lacônica, mas no fundo toda infância é meio que triste, ingênua e triste, pueril, balões voando para estourar, brinquedos quebrados e dentes sendo trocados. Não há explicação porque aquilo é tudo o que teria por direito, e ainda assim perderia porque o que se ganha, se perde. Perseverança, insistência, luta e o que se ganha, se perde.
Ele lembra agora, mesmo sendo mais uma memória. Quem ele perdeu era tão grande assim para fazer toda essa falta, a ponto de prendê-lo dentro do tempo, do espaço, dentro de uma lembrança infeliz de uma festa de aniversário sem ninguém além dele?



























Grande como todo um firmamento, essa perda é parte dele agora.
Mesmo de cima do pilar da varanda, pode-se sentir o quanto está triste. Preso dentro de uma memória ruim para lembrar a respeito de alguém bom, seu coração parte para cima, com os balões, estourando bem no alto. Ninguém consegue ser forte o tempo todo, deus, mesmo dentro de sua própria prisão, onde estaria supostamente
protegido

e sozinho

Agora está chorando, um menino fazendo oito anos por toda uma eternidade, sem ninguém para lhe desejar os parabéns, que coisa ridícula, ele chorando, o nariz escorrendo, pingando lágrimas no bolo, meninos não choram, não choram, vão para a puta que pariu, assoa o nariz na camisa e chora mais, nem barulho faz, resume-se a deixar que aquele peso escorra de seus olhos e inunde o mundo todo, talvez até encha a piscina de uma vez por todas. Ele sofre por toda uma existência divina, mesmo sendo daquele tamanho por tanto tempo e por tão poucas memórias, uma criatura com corpo de oito anos, mente de milhares e coração de segundos, paralisado no caos.
Arbitrário, como qualquer perda.
Típico, como qualquer sistema, por maior que seja.
E a lembrança da perda de uma pessoa tão amada deveria se abraçar àquela memória deserta e surreal da festa no fim de tarde. Inerte, insólita, essa perda é parte dele agora.
Ganhamos para perder.
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