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Contos-->Sete horas e meia -- 14/11/2001 - 00:58 (Luís Augusto Marcelino) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
18:32:31

Fazia mais de dez anos que eu não ia ao Baloon. Dez anos é tempo pra cacete! Duas Copas do Mundo, duas Olimpíadas. Se bobear, uns três ou quatro pirralhos para sustentar. Para alguns, dez anos podem não significar nada. “Dez por cento da idade de quem tem hoje 100 anos!” – vive dizendo um amigo meu, engenheiro, burguês, meio bichola. Para mim é muito tempo. Impossível descrever tudo o que aconteceu nesse período. Até impeachment, vê se pode? Não fui um dos carapintadas. E não me envergonho disso. Na verdade, votei Nelle. A mídia me convenceu de que Elle era melhor do que o Sapo Barbudo. Sapo Barbudo versus Filhote da Ditadura. Era difícil escolher. E, para ser sincero, não tinha afinidade com o PT. Digo, com a esquerda em geral. Helena e meus amigos do ginásio certamente reprovariam meu voto. Fodam-se todos! Alem de secreto, o voto era meu. E faria dele o que bem quisesse.

O que me fez mesmo querer ir ao Baloon? Ah, sim. Não havia um motivo, propriamente. Eu só queria me livrar da clausura daquele ônibus abarrotado de gente fedida. Vinha do Centro. O dia inteiro procurando emprego. Trabalho, melhor dizendo. Emprego quem tem é executivo ou engenheiro. Médicos com consultórios na Zona Sul. A primeira vez que saí para procurar trabalho, no começo dos anos 80, foi mais um passeio do que uma busca de ocupação. Chovia, durante o trajeto do ônibus. Dizem que, no passado, nas décadas de 50 e 60, só chovia nesta maldita cidade. Deve ser exagero. Mas a chuva atrapalha ainda mais a vida de quem mora nesta merda. Ficamos parados uns quinze minutos, presos ao engarrafamento. Vidros fechados, mulheres gordas reclamando dos arrochos, dos peidos, da bagunça que os manos faziam na parte traseira do coletivo. “Uh, vai morrê! Uh, vai morrê!” – gritavam para quem passava pelas calçadas esburacadas. Um deles tinha um rádio. Rapp no último volume. “Carandiru é o palácio do capeta; Eh, eh, eh, eh, eh; E a polícia é a guardiã do inferno; Ninguém consegue cumprir a pena totalmente careta; Eh, eh, eh, eh, eh.” Os manos acompanhavam o balanço. Da música e do ônibus. Eu estava em pé, tentando apreciar o movimento das ruas. Os vidros embaçados atrapalhavam. Houve um momento em que pensei que não devia estar lá. Avistei um cidadão mais ou menos da minha idade dirigindo um Vectra prateado. Terno azul-marinho acomodado no banco do passageiro da frente. Não parecia estar sofrendo. Dava para enxergar o luminoso de seu toca-cd e o deslocamento das luzes provocado pelos acordes da canção que estava ouvindo. Eu devia estar no lugar daquele filho da puta! O quê fazer com aquele maldito diploma de administrador de empresas? Já tentei enfiar, sim. Não coube. Não me pareceu confortável. Cada vez sentia mais falta de ar, e nenhum puto abria um pouco uma das janelas. Quando chegamos próximos da avenida Pompéia lembrei do Baloon. Resolvi ir até lá. Chovia, eu já disse. Só que a natureza conspirava contra mim. Ao descer do ônibus a chuva apertou. E pareceu-me mais gélida. Corri para uma banca de jornal. Daquelas que vendem de tudo. Cigarro. Isqueiro. Tantas outras quinquilharias. Inclusive jornais e revistas. O dono me olhou daquele jeito. Jeito de quem diz “esse porra não vai comprar nada!” Então escolhi um jornal. O mais popular.
O mais barato, pra dizer a verdade. Desempregado não pode usufruir de certos luxos. Minha mãe era quem me sustentava. Não reclamava, a pobre. Sobrevivia com a aposentadoria e os quitutes que vendia. Ainda bem que o puto do meu pai deixou uma casa de conjunto habitacional. Quando ela morrer vai ficar tudo pra mim. Aí não precisarei mais procurar emprego. Vagabundo assumido. Mentira: não conseguiria ficar o dia inteiro, pelo resto da vida, esperando o tempo passar. Não tenho mais o vigor de quinze anos atrás. Mas também não sou um parasita. Odeio São Paulo. E amo tudo o que odeio. Minha mãe é um pé no saco. Não me deixa em paz. Fala pelos cotovelos. Me agride. Me acusa. Me condena. Me humilha. Tem hora que eu quero matar a velha. Mas a amo, no fundo. Teve de aturar o pingaiada do meu pai. Uma santa, minha mãe. Uma santa que amo. Não saio de São Paulo por causa desta relação de amor e ódio. Acho que não sobreviveria numa cidade praiana. Tampouco num rancho no interior de Goiás, por mais conforto que tivesse. Sentiria falta de algumas coisas daqui. Se no mundo houver outras cidades como São Paulo, aí sim mudo para uma delas. E certamente vou odiá-la. E amá-la ao mesmo tempo. Parece que todas as minhas paixões passam por essa controvérsia. Amor e ódio caminham juntos na minha curta vida.

Abri o jornal. Desempregados perdem a noção do tempo. Nunca se sabe que dia é hoje. Só quando compra jornal. 20 de março de 2001, uma terça-feira. Virou o século, vê se pode? Quando era menino, ficava imaginando o que aconteceria quando chegasse o ano 2000. Profecias de garoto: estaria rico pra cacete, com uma puta gostosa do lado, um carrão – quem sabe um Maverick vermelho com um toca-fitas potente, de arrebentar os tímpanos da rapazeada do quarteirão. Ou será que o mundo ia mesmo acabar? Alguns dos meus amigos de infância diziam que o mundo não acabaria nunca, mas as pessoas sim poderiam se destruir. Assisti, mais tarde, ao filme “The Day After” e me assustei. Então podia ser antes do ano 2000 aquilo tudo? Aquilo, você sabe, a Guerra Nuclear. Saí do cinema apavorado, porque talvez não desse tempo de eu comprar não mais o Maverick vermelho, mas um Diplomata preto, rodas de liga. Puta que pariu! – pensei. Nenhuma das profecias se concretizou. Passou o ano 2000. O 2001. E já estamos em março, o Carnaval se foi. E nem a puta gostosa pintou na minha vida. Manchete de um dos cadernos: “Mulher decepa o próprio filho.” Deprimente. Mas não deixava de ser curioso. Li a reportagem. A infeliz ligara a serra elétrica e saíra para atender um chamado da vizinha. Esqueceu de desligar a máquina. O menininho foi mexer e encostou a serra em seu próprio pescoço. Do jeito que anunciava a manchete, dava a impressão de que a mãe era uma megera. Quis cagar em cima daquele jornal. Vai pra puta que pariu! – balbuciei. Comprei um maço de cigarros. As águas não tinham por onde escorrer. Encontravam bueiros entupidos. Embalagens de picolés, bitucas de cigarros, sacos plásticos, folhas de árvores queimadas, páginas de jornais, folhetos de dentistas populares, de cartomantes, de apartamentos de dois quartos com playground e piscina. As bocas de lobo cuspiam tudo. O velho Tietê não suportava mais os presentes que a cidade insistia em lhe dar. Senti medo. E se essa porra de água invadir a banca de jornal? Um fusca velho, esverdeado, não conseguiu atravessar a avenida. Começou a boiar e fechou a passagem de quem esperava ultrapassar a Francisco Matarazzo ou dobrar à direita, rumo à Marquês de São Vicente. Buzinaço. Outros transeuntes invadiram a banca. Senhores, pedreiros, bancários. Duas adolescentes com uniforme de colégio. Camisetas brancas, molhadas, exibindo os mamilos eretos. Uma delas tentava esconder, abraçando cadernos e livros encharcados contra o próprio tórax. A outra, mais desinibida, parecia querer exibir os peitos jovens, não se importando com os olhares maliciosos, quase estupradores. Esta última, mais assanhada, lançou-me um sorriso maldoso, provocante. Comentou algo ao pé do ouvido da amiga tímida. Gargalhou. Veio em minha direção, a poucos metros. Arrepiei-me. Nunca fui um bom conquistador. Pelo contrário. Era um desastre nesse terreno. A única mulher que conquistei não conquistei, pra dizer a verdade. Acredito que ela pensava que eu tivesse grana. Deu em cima de mim. Um final de semana foi suficiente para ela me dispensar.

- Me dá um cigarro, tio?

Pensei em negar. Mas foi impossível. Olhei para os mamilos escuros e as coxas envoltas na calça jeans surrada. Devia Ter uns 16 anos, se muito. Pele jovem, cabelos molhados, pretos. Uma deusa-mirim. Procurei o maço no bolso da camisa, não encontrei. Esqueci que o tinha deixado sobre a pequena estante de vidro da parte interna da banca. É claro, meu bem! O dono da banca me avisou onde estava. Puxei um dos cigarros do maço e fiz questão de colocá-lo naquela boca carnuda. Depois peguei o isqueiro e o protegi do vento que ainda insistia em bater em nossos corpos. Ela baforou a primeira tragada em meu rosto e agradeceu. Voltou sorrindo de encontro à amiga. A chuva forte já tinha se transformado em garoa intermitente. Saíram as duas, apressadas, em direção à parada de ônibus. Putinha!... – pensei.

(reedição da I parte do conto em razão da cofiguração do texto anteriormente publicado)


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