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Cartas-->A leitura do poema "Voo radical sem asas" de Jan Muá -- 23/05/2011 - 13:31 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Olá Daniel

Acabo de verificar que você leu o poema de Jan Muá "Voo radical sem asas" publicado há dias na Usinadeletras.Tomei nota das observações que você deixou de sua leitura:[Daniel 22/05/2011 11:06 ]:"Tem palavras não usadas na língua portuguesa ou de meu não conhecimento como estesia, fauces, pressionante por isso recomendasse[sic] um maior cuidado nas palavras." Ao ler sua anotação achei que você gostaria que eu o ajudasse a entender as palavras que usei nesse poema. É o que vou fazer.

Para os leitores que não leram o poema "Voo radical sem asas" esclareço que se trata de um poema produzido por ocasião da visita que fiz ao parque de esportes radicais Pena Aventura em Ribeira de Pena, Portugal no dia 20 de maio. Agradecendo o diálogo que você abriu com o autor de suas observações, recorto três ideias:[1] a mensagem da primeira ideia é a de que importa ter cuidado na seleção das palavras olhando o leitor. - [2]a segunda é: o que deve o autor fazer com as palavras ainda não dicionarizadas de uma determinada língua ["tem palavras não usadas na língua portuguesa"]; [3] a terceira: o que deve o autor fazer quando não sabe o tipo de leitor de seu texto?["palavras de meu não conhecimento"].

Vamos por partes, Daniel. [1] Sempre me preocupo em imaginar que tipo de formação poderão ter meus possíveis leitores. Mas confesso que tenho dificuldades em administrar isso. Primeiro porque gosto de ser espontâneo e não tenho muita capacidade em me policiar e dizer para mim "esta, não" no momento oportuno. Faço isso apenas para o caso de palavrões,que não uso, para policiar palavras ofensivas, ou no que toca a palavras que podem invadir os domínios éticos das pessoas ou da convivência social. Admito porém que inconscientemente faço uma determinada seleção e até  talvez uma censura vocabular. Acho que todos temos certa tendência para isso. Por outro lado, é verdade que a partir de um certo momento manda o contexto, ou a história que se narra, ou o personagem,ou  a ética. No meio de tudo é imprescindível um mínimo espaço de liberdade. [2] Quanto às "palavras  não usadas na língua portuguesa" não sei se você se refere ao uso das palavras em si mesmas ou às palavras registradas no Dicionário. Concrtamente, em relação a palavras empregadas no poema, os termos "fauces" e "estesia" são palavras não só dicionarizadas mas usadas na língua portuguesa, tanto a  nível erudito quanto a nível literário. Podem não ser palavras de uso do povão menos letrado ou intelectualizado mas “são palavras usadas na língua portuguesa”.É oportuno dizer porém que há  palavras que estão no Dicionário e que perderam o uso. A palavra labrego(=camponês grosseiro), por exemplo. Talvez mais de 95% dos falantes de língua portuguesa de hoje, não conheçam a palavra. E ela está no Dicionário. O vocábulo “concho”(=alegre, cheio de si) está também no Dicionário e foi muito usado no século XIX inclusive por Machado de Assis e ainda era usada em Portugal ainda no final da primeira metade do século XX.E entretanto hoje está em desuso e poucas pessoas a conhecerão.

Agora preste atenção ao principal, Daniel: quando falamos das palavras do poema “Voo radical sem asas”, falamos de um poema que é em si mesmo uma composição literária. O poema, como composição literária embora seja teoricamente aberto a todos os leitores, é especialmente construído por uma mente literária para um leitor literário [ou não, excepcionalmente...]. Sendo assim, o poeta ao compor seu poema, embora use a língua comum como substrato de comunicação usa, acima de tudo, parâmetros de composição literários. Ora, dentro destes parâmetros, está o gênero em que ele escreve (soneto, ode, balada, epopeia, verso livre), a estrutura (estrofes), ritmo (com métrica ou não) e tantas outras coisas. A composição poética termina por vezes por ser mais técnica do que popular. Neste sentido o poeta vai se sentir livre em elaborar e escrever seu poema dentro das regras ou do clima "literário".

Gostaria de dizer para você, portanto, que há que distinguir língua comum e língua literária.

O poema que você acabou de ler e para o qual fez observações de caráter lexical, é um poema com marcas de ficção poético-literária. Por ser assim, o autor usou a liberdade de escrever com intenção comunicando ao texto propriedades literárias. São literariamente simbólicas as palavras "fauce(s)" e "estesia". Ou seja, não são palavras que estejam na boca de toda a gente mas são chamadas aqui para uma significação literária e estética. São palavras que estão no Dicionário mas são de uso aberto. Sendo o poema uma composição literária, os recursos estilísticos empregados - dos quais faz parte o léxico-, podem entrar na linha dos "vocábulos de seleção literária", que  é essencialmente simbólica.

Se um dia conhecer o Parque Pena Aventura e olhar aqueles abismos serranos por onde passa o fantasticable poderá entender simbolicamente a força de "fauces", que são "gargantas abertas" no abismo. O mesmo se diga de estesia. A origem da palavra "estesia" é grega e significa sensibilidade. É a mesma raiz de onde deriva a palavra estética. É uma palavra conectada com a própria natureza do poema integrado na estética literária. Quanto ao adjetivo "pressionante" dá para entender perfeitamente a partir do vocábulo "pressão". Paralelamente você tem a palavra "impressionante" derivada de "impressão"; facilmente pode imaginar também o adjetivo "pressionante" a partir de "pressão".

[3] Quanto ao fato de você estranhar que um determinado autor possa empregar palavras que não são do conhecimento de determinadado leitor, creia, Daniel, que essa é a situação normal de todos os falantes de uma língua. A nível de conhecimento e de uso há diferenças vocabulares enormes entre os vários usuários de uma língua. E nunca nenhum autor poderá adequar-se a cada um. Trabalhamos com um número de palavras que não é muito elevado. Cada leitor tem uma tarefa também. A leitura é um aprendizado. Tem que pesquisar e buscar as várias formas de chegar à compreensão. Como nos outros caminhos da busca do conhecimento. Seria interessante ir convertendo tudo isto em normalidade.Aprendendo uns dos outros, ouvindo, lendo e falando.

Continue a ler, Daniel. Familiarize-se com a língua portuguesa. Adquira bases sólidas da língua de sua cultura. Você será, ao fim de um tempo, um cidadão que saberá se movimentar muito bem no espaço de sua cidade cultural.

Porto, 23 de maio de 2011

Jan Muá 

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