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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->26. VELÓRIO E ENTERRO -- 18/06/2002 - 05:57 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Quando Dolores e Fernando chegaram ao hospital, encontraram o corpo de Jeremias lacrado no ataúde e disposto no pequeno saguão destinado ao velório. Não faltavam os castiçais, velas e a aparatosa disposição dos panos pretos. Grande crucifixo demonstrava a tendência religiosa da família. Muitas flores e coroas. O ambiente recendia ao cheiro forte de incenso. Em toda a volta, dispunham-se cadeiras ocupadas pelos familiares. Os mesmos da véspera. Maria estava à cabeceira do caixão. Inconsolável. Ao seu lado, os filhos.

Fernando procurou Timóteo. O sacerdote não estava. Não havia nenhum representante oficial da Igreja. João também não estava.

Informaram-no de que o enterro seria às quatro. O féretro partiria às três. Não haveria missa de corpo presente, mas Jeremias receberia as bênçãos sacramentais na capela do cemitério.

Dolores aproximou-se da viúva. Condoía-se mais pela doença do que pela morte. Julgava justo que quem pecara tão despudoradamente recebesse semelhante castigo. Essa moléstia, que Deus a castigasse se estivesse supondo errado, fora enviada para manter as pessoas fiéis. Lembrava-se de outros casos. Desconfiava de muitos outros, escondidos pelas famílias. Desta feita, ficara sabendo, porque o marido fora informado diretamente pelos médicos. Não fora isso, provavelmente, iriam surrupiar-lhe a informação. Duvidava de que a amiga lhe dissesse a verdade.

Quis sondar-lhe o espírito:

— Infecção generalizada. Parada cardíaca. A civilização deste século está matando as pessoas. No século XIX, seria a tuberculose. Na Idade Média, a peste negra. Em todos os tempos, a guerra. Agora as doenças da civilização...

Maria não respondeu. Não sabia o que dizer. Chorava. E pensava nos filhos. Nos negócios. Nos empregados apalermados, sem saberem o que fazer. Os irmãos não tinham tempo nem disposição. Eram ainda mais abonados. Por eles, fechavam a loja e permaneciam só com a fabriqueta. Doze empregados fixos, mais as costureiras avulsas. O encarregado atual daria conta do recado. Assim que possível, um dos rapazes assumiria a administração e tudo se encaixaria. Ó Deus, não era hora de levar Jeremias!...

Fernando mantinha-se distante.

Delineava-se um dia muito triste. Chegara toda a família do amigo. Os pais estavam desolados. Que há para se dizer a quem perde um filho muito querido? Os irmãos sofriam, visivelmente. Jeremias era benquisto. Folgazão. Gostava de brincar com todos. A todos presenteava, em todas as ocasiões. Nos últimos tempos é que se recolhera, desconfiado de ser acusado de muitas coisas. Teria conhecimento da gravidade do estado da saúde? Fernando não sabia o que pensar.

Do lado de fora, espaireciam alguns empregados. E familiares distantes. Conforme iam chegando as mulheres, os homens iam retirando-se da sala. Cediam as cadeiras. O ar estava ficando viciado. As janelas foram abertas. Os comentários giravam em torno da necessidade de se lacrar o caixão. A palavra infecção se acompanhava do adjetivo “generalizada”, como se a doença pudesse espalhar-se pelos presentes. Os cuidados médicos estavam a indicar para essa grave possibilidade. Alguns arriscavam certo, mas calavam o palpite. Muitos sabiam das estrepolias sexuais do amigo, do patrão, do irmão, do cunhado.

Fernando ocultava o quanto podia as revelações médicas. Haveria tempo para novas explicações. Leonel encarregar-se-ia de discutir o assunto. Se quisessem, os médicos estavam inteiramente à disposição. Todos os resultados dos exames estavam sendo profundamente analisados.

Queriam saber se os advogados do hospital ou do convênio médico estavam presentes. Desconfiavam de erro ou de negligência. E Leonel, que não aparecia?... Disseram que estava providenciando o enterro. Fernando julgava que não queria comprometer-se. Teve uma idéia salvadora:

— Não acham que deveriam afastar os rapazes de junto da mãe? A presença deles deve afetá-la muito e eles mesmos devem estar transtornados. Podem passar mal, se não se alimentaram direito...

Os demais notaram o desvio da conversa. Mas concordaram que deveriam fazer algo a respeito. Deram-lhe sossego.

À vista das pressões, resolveu desaparecer, sorrateiro. Iria ao escritório. Ao passar pelo portão principal, cruzou com Joaquim:

— Seu Fernando, espero que não ligue se venho cumprimentar a viúva, na hora do expediente. Sabia que iria encontrá-lo aqui e lhe peço para permanecer à disposição da família. Nestas ocasiões, há de ter utilidade um valete...

— Fique à vontade.

Sempre havia lógica nas ponderações do velhaco. Não viera fugido. Mas deveria ter faltado, simplesmente. Arranjar-se-ia perante o patrão. Safado!

Fernando não admitia esse tipo de atitude, mas não iria irritar-se por tão pouco. Quem estava arriscando o emprego...

Ao chegar à loja, verificou que tudo se encaminhava da melhor maneira. João estava terminando o levantamento do estoque. Em breve, iria visitar os fornecedores, para fechar as contas. Aí, teria a dimensão aproximada do movimento e dos balancetes, podendo configurar os desvios fiscais com mais exatidão.

Lembrou-se de ligar para os responsáveis pelas empresas do falecido. Estavam funcionando precariamente. Muitos dos empregados estavam dispensados para o velório. O restante da turma iria ao enterro. Assim, não haveria perda total do dia. Não tinham contado com tanto atraso para o enterro. Quem estaria no comando da organização? Disseram-lhe que Leonel passara por lá e dispusera tudo bem a contento.

Fernando não sabia, mas desconfiou de que os funcionários ganhavam por produtividade ou por percentual. Tranqüilizava-se. Tudo sob controle. Aguardaria que o gerente o procurasse. Ou o João. Enquanto isso, adiantaria a leitura. Bendita hora em que cismou de volver ao escritório!

Ao meio-dia, cansado e com fome, resolveu ir conversar com o contador. Não estava, mas deixara aviso de que voltaria às duas, com toda a turma. Achou melhor ir almoçar em casa. Passaria pelo hospital para levar Dolores. Não conseguiu que a avisassem.

Teve azar. Dolores já tinha saído. Fora com Maria. Fernando sobressaltou-se. Será que teria revelado o segredo da doença? Não, por certo, que não iria arcar com as conseqüência emocionais. Isso era coisa para os médicos. Para mais tarde. Para a semana que vem.

Teria voltado para a loja, se não tivesse avisado para lhe prepararem o almoço. Aliás, o apetite feneceu com o primeiro prato. Um fundo de prato. Ouviria um pouco de música clássica. Algo muito suave. Lembrou-se da música do Centro Espírita. Vivaldi. Ou Brahms. Ou Schubert. Ou Bach. Não tinha tanta noção. Colocou um CD de Beethoven. Recostou-se na poltrona. Não queria entrar em contacto com o plano espiritual. Divagava sob o influxo das idéias de Kardec. Quase terminara a primeira obra. Estranhava a eficácia da leitura. O interesse desusado. Acordou às duas. Estava pronto para as demais emoções do dia.

Ligou para a loja. Tudo bem. Ligou para a casa de Maria. Quem sabe poderia ser útil para algo?! Não estavam. Voltaram para o hospital. Fernando julgou que poderia ser considerado desleal. Precisaria firmar opinião e enfrentar as próximas horas e os próximos assédios. Era hora de encontrar-se com Timóteo. Sentia que o padre estava em vantagem. Contaria com a hipersensibilidade das mulheres. E havia muitas testemunhas...

Quando chegou, aprestava-se o cortejo. Não conseguiu aproximar-se da entrada da sala de onde sairia o féretro. Ouvia choro sentido. Despedidas. Lamentações. Pensou que, se Maria soubesse a verdade, explodiria em recriminações, em acusações. Poderia repudiar o marido. Ali mesmo. Cadáver, embora.

Reconheceu o pessoal do jóquei e a turma do pôquer. Havia muitos desconhecidos e ninguém para as apresentações. Apinhava-se a portaria do hospital, incomodando o fluxo normal das pessoas. Atendentes faziam caretas, indicando a porta da frente. Dessem a volta, que o velório era nos fundos. Mas a multidão não se mexia. Dentro em breve, partiriam todos. Era uma questão de paciência.

Quando saiu o caixão, para ser colocado no carro fúnebre, pôde divisar Dolores apoiando a amiga. Junto a elas, Joaquim. Serviçal. Compungido. Quis entender o interesse do maganão. Claro! Está de olho na direção da firma! Só pode ser isso!

Quando a fileira de automóveis se pôs em movimento, ofereceu carona para dois ou três balconistas. Agradeceram e aceitaram, embora houvesse dois ônibus fretados para levar os que estavam a pé. De onde surgira tanta gente? Não sabiam. Havia um pessoal bem simples. Quem providenciara? Leonel ou Joaquim? Parecia mais lógico este último.

Ao chegarem ao cemitério, demorou para Fernando encontrar local para estacionar. Também ali havia guardadores solícitos. Aprendera a lição. Deu logo o que pediram, sem discutir. Quando chegou diante da capela, muita gente estava do lado de fora. Melhor. Evitava a solenidade religiosa. Daria um passeio por entre os túmulos. Fazia tempo que não tinha semelhante distração. Se tivesse sorte, conversaria com algum espírito no aguardo do desvencilhar corpóreo. Achou difícil, que esses são sofredores. Ao menos, poderia orar por eles. Na intenção de suas almas. Para receberem a graça de serem admitidos no Paraíso.

Sorriu interiormente, pois gracejava com os conceitos católicos. Sabia que a opinião espírita era outra. Lera todo O CÉU E O INFERNO, em sua parte teórica. Tinha condições de admitir outra realidade.

Enquanto percorria os estreitos caminhos entre os túmulos, examinava os epitáfios. Havia jovens, velhos, crianças, homens, mulheres. Cruzes, santos, esculturas... Sentiu dificuldade vocabular. Não dava o nome certo aos apetrechos usuais. As fotos, em geral, eram esmaecidas. Alguns túmulos estavam desleixados. Na maior parte, sepulturas luxuosas e bem cuidadas.

Foi afastando-se do bulício. Forçou a vista. Queria a comprovação dos espíritos, naquele campo santo. Não viu ninguém que não fosse de carne e osso. Distraíra-se. Evitava pensar no amigo. Percebeu nitidamente que todas as preocupações do dia o voltaram para si mesmo, para seu desempenho, para a ajuda que poderia prestar, não no sentido de dar conforto ou consolação aos demais, mas para não promover distúrbios conscienciais. Despertava para o egoísmo.

Acabrunhou-se. Quanto deveria aprender no campo da moralidade! Do evangelho! Com que destemor Kardec enfrentara os padres! Para dizer o que disse a respeito dos conceitos de Céu e Inferno (e de Purgatório — invenção eclesiástica!) deveria ter sido muito corajoso. Estava com medo de simples padreco de paróquia de bairro. Kardec desafiara o Bispado. No mínimo. Recordou-se dos livros queimados em praça pública. Valia-se das informações da palestrante. Dalva, se não se enganava.

Percebeu movimentar-se o povo. Era o momento de depositar o caixão na cova. Não teve vontade de aproximar-se. Fá-lo-ia por obrigação social. E não queria estimular ainda mais a revolta de Dolores. Devia estar uma “fera”. Mas tinha a desculpa do assédio dos parentes.

Ao se juntar ao grupo, observou que Timóteo se encontrava à frente do cortejo. Seguravam as alças, os filhos e outros parentes próximos. Revezavam-se. Quis exercer o mesmo direito. Na sua frente, Joaquim se antecipou. Ao perceber o patrão, cedeu a vez, com ares muito respeitosos. De circunstância. Era uma figura ímpar. Fernando deu dez passos e passou a missão a um dos balconistas. Depois, deixou-se ficar para trás. Subitamente, desejou orar pelo amigo. Se estivesse por ali e lúcido, perceberia a falsidade de alguns, o desespero dos mais próximos, as preocupações formais da maioria. Mas Fernando suspeitava de que o amigo estava em condições morais deploráveis. Já pensou se tiver consciência de que passara a doença à esposa?

— Senhor, dai-nos força para enfrentar o nosso destino de dor. Ajudai ao meu amigo nesta rude travessia. Dai-lhe luzes para a compreensão do carma humano, das falências pessoais, da rusticidade do espírito ligado à carne. Facultai-lhe o entendimento da dimensão exata de suas responsabilidades, enviando-lhe protetores beneméritos, capazes de envolvê-lo em fluidos amorosos, para subtraí-lo das próprias amarguras. E impedi que receba as más vibrações de quem compareceu com intuitos vis. Proibi-me, Pai, de prejudicá-lo, com meus péssimos hábitos morais, com a minha impostura, com o meu egoísmo, com o meu orgulho. Se houver algo que possa fazer pelo meu amigo, Senhor, possibilitai-me atendê-lo em suas necessidades, agora, durante o sono, no Centro, onde quer que se promova o nosso encontro. Graças vos dou, Pai, por me terdes facultado inspirar-me nesta prece. Obrigado, amigos da espiritualidade, pelo conforto íntimo desta superior manifestação evangélica.

Fernando compreendera que não falara por si mesmo e que sua vibração, quase certamente, estaria alcançando o espírito de Jeremias.

Neste momento, deu com João observando-o. Será que os dons mediúnicos do confrade o estariam alertando para suas emoções?

Tirou o lenço do bolso. Despreocupou-se com a opinião. Sentia, no fundo da alma, verdadeira saudade do amigo. Era a sensação da perda. Mas ficava-lhe a promessa intuitiva do reencontro. A misericórdia divina providenciaria.

Afastou-se, sem prestar atenção na murmuração do povo. Rezava-se o padre-nosso. Resignou-se a esperar que a maioria se retirasse. Deixava os próximos minutos ao azar dos acontecimentos.

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