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cronicas-->Febre Amarela -- 06/01/2018 - 19:04 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Tem um mosquito no meu pé, há tempos. Eu não vou negar que ainda sou um homem dos trópicos e, no entanto, em vários momentos sou um homem temperado, equilibrado apesar de minha condição de latino. Dizem que os latinos são diferentes dos anglo-saxões, com o que eu concordo plenamente. Os ingleses mandam os outros às favas de maneiras tortuosas e os latinos já mandam enfiar no rabo. Portanto, como bom latino, quero que este mosquito pique a mãe dele, mas o fato de ter um mosquito em meu pé lembra da urgência de minha vacinação há poucos dias contra a tal arbovirose que infesta nossos primos ancestrais que se penduram de maneira irritante, proposital e desafiadora. O mosquito em meu pé lembra da febre que lembra a picada que me rememora a agulha e a cara de feliz da moça que a aplicou em mim, consciente de que é indolor e, portanto, inócua.

Ledo engano!

Desde a fatal picada, tenho me sentido estranho. Fui ler os efeitos colaterais de tal preparado; não há nos alfarrábios descrições de semelhantes tormentos que eu descrevo a seguir. Vejam bem que, assim sendo, não deixo de recomendar a profilaxia de tal doença; isso não me impede de declarar-me impotente frente ao que eu senti e sinto.
Primeiro veio a comichão. Até aí, tudo bem. Febre leve, coceira e dor no local da agulhada são comuns. Porém, quase dois dias após, tive de passar em uma loja de videogames, impulsionado por uma compulsão absurda de possuir um console de último tipo. Nunca gostei de videogames, imaginem vocês! Tenho dificuldades em manipular tais teclados minúsculos que meus sobrinhos usam com dois dedos e minhas mãos cheias de apêndices não me deixam aprender sequer um décimo do que eles sabem.

Isso, até agora.

Tenho à minha frente uma tela cheia de gráficos de última geração e meus dedos fazem as imagens quase que saltar da tela que ganha vida própria. O jogo é uma variação de "War", melhorado pela imersão virtual e a realidade aumentada. Em questão de horas eu conquisto praticamente uma Ásia inteira e preparo-me para invadir a Oceania, enquanto dois de meus rivais se aliam para tentar conter minha onda de barbaridades. Não hesito em esmagar os exércitos que se concentram em Ontario. De Vladivostok eu lanço uma blitzkrieg que inunda a Europa de soldados...Amarelos!
Nem meus sobrinhos sabem o que aconteceu comigo, porque ligam espantados e indagam como eu invadi a Ásia toda e como surpreendi os exércitos da Europa colocando a estabilidade por um fio. O problema é explicar tudo isto à minha esposa. Tenho notado que ela anda arredia, mas isso já antes da vacina. Isso agora me irrita profundamente e os atritos se somam a outros.

Ela chega em casa e eu estou frente à televisão. Definitivamente a Europa não me basta; o mundo aos meus pés, isto sim!

--Não foi trabalhar hoje?
--Estou diferente. A vacina não me fez bem!
Ela me olha prolongadamente e parece medir-me dos pés à cabeça...
--Você...encolheu?
--Eu?
--Parece que sim. Pelo menos a impressão é essa...
--Você é que é alta. E está de salto.
--Não tenho culpa.
--Não disse isto.
--Sou alta nada.
--Mas eu sou baixo. Você sabe disso.

Silêncio quebrado pelas chaves do carro que balançam em suas mãos, como se ela hesitasse a dizer algo. Meus dedos pulam quase autónomos fazendo os exércitos esmagarem seus rivais. Tenho capacidade nuclear e chantageio meio planeta, enquanto minha esposa me olha com um misto de piedade, desdém e espanto.

Ela nunca me viu jogar videogame.

--Deu pra isso agora?
--Tive de comprar. Sinto-me forte. Precisava extravasar.
--Entendo.
Ela foi tomar banho. Geralmente isto anuncia bons resultados; ela evitou meu olhar desta vez, como se houvesse um bloqueio... Não importa.

Entro no banheiro habitado pelo perfume de minha mulher. Ela me espia urinando.
--Você está menor?
--Em altura?
--Não...em outro sentido.
--Deve ser a vacina.
--Seus olhos!
--Que têm meus olhos?

Olho no espelho: Meus olhos estão mais puxados? Meu cabelo parece estar mais curto e minha cabeça parece hesitar sobre meu corpo mais gordo que era. Preciso frequentar mais academia.

--Você está diferente.
--Você acha?
--Aliás...Eu tenho uma coisa pra te contar.
--Diga logo!
--Eu, eu...Estou com outro!
--Quem? Quem?
--Ele é alto. Malhador, tem tatuagem nas costas e no pescoço .
--Verdade?
--Ele é o Long Rambsang Silver Gould.
--Americano????
--Portorriquenho.
--Não acredito!!!! Como você fez isso?
--Pelo menos não preciso mais tirar o salto.
--Imperialista ianque!
--Vai para o teu console, vai. Vou sair, ficar com meu NBA.

Todas são assim. Ouço o clique da porta da sala se fechando.

Preciso comprar um quepe e uma roupa que me sirva. Notei que minhas roupas ficaram largas, ou, mais, compridas; não é que ela tem razão?

Depois eu volto. Antes, eu consulto os livros novamente: Nada a respeito de olhos puxados, queda de altura, ímpetos conquistadores e esta pele...de tez amarelada!

Jogo pausado.

Volto com meu quepe, a estrela vermelha bem no meio da testa; limpo a poeira de meus ombros e abrilhanto as medalhas sobre meu peito. Posso quase ouvir o foguetório de meus mísseis se preparando, o matraquear das metralhadoras invadindo a Europa de joelhos, Ontario pleno de tropas amarelas e a Ásia inteira trabalhando sob minhas botas lustrosas.

Esta vacina contra uma coisa me faz sentir de outro modo.

Meu exército amarelo invade a América: Só assim me vingo da Liga Americana a tempo.

Ela que me aguarde.

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