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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->23. NO HOSPITAL -- 15/06/2002 - 05:32 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Ao adentrar o saguão destinado à família do morto, Fernando pôde verificar que a parentela estava toda lá. Os irmãos e os pais de Maria também. E muitos amigos e funcionários. Todos aguardavam a liberação do cadáver.

Dolores acorreu logo e estabeleceu as apresentações. Fernando, contudo, conhecia quase todo mundo.

Assim que se desvencilhou dos grupos, levou Dolores a um canto. Queria saber por que não se dera início ao velório.

— Os médicos estão com evasivas. Dão a impressão de que não sabem a causa da morte ou não querem assumir responsabilidade. A coitada da Maria está a poder de sedativos. Não quis comer nada. Um cafezinho. Umas bolachinhas. Está de jejum.

— E você?

— Eu comi um lanche às dez. Estava esperando-o para ver o que faríamos.

— Vamos procurar um local sossegado. Pode ser simples sanduíche, mas tem de ser longe desta tristeza.

Lembrava-se de ter visto uma lanchonete na frente da porta principal. Estava lotadíssima e o serviço parecia péssimo.

— Vamos comer em casa. Aqui ninguém precisa de nós. Você poderá descansar, que a vigília deve ir até amanhã.

Dolores ficou com medo daquela prometida conversa, mas julgou o momento oportuno. Qualquer coisa, emendaria com a emoção da dor da companheira. Afinal, o futuro a Deus pertence. Não era o que estava a indicar a partida do compadre?

Os empregados não estavam preparados para recebê-los para o almoço. Ao contrário, haviam sido avisados de que não apareceriam até a noite. Mas não se apertaram com a comida. Em pouco tempo, estava servida saborosa omelete.

Comeram sem gosto, em silêncio, como fora silenciosa a viagem. Cada qual com seus pensamentos.

Estranhamente, Fernando mandou a esposa deitar-se. Precisava descansar também. Pelo menos uma hora. Não queria deixar a loja nas mãos dos subordinados. Havia a ameaça da devassa fiscal. Tratou a esposa com desusado carinho. Estaria arrependido? Dolores ficou sem saber. Mas as atenções foram expressivas. Pensava nela. No conforto dela. Na tranqüilidade dela.

Recostado no sofá, Fernando adormeceu. Enquanto isso, Dolores reassumia o controle da casa. Descansaria depois que o marido saísse.

Perto das duas da tarde, soou o telefone. Leonel procurava o amigo. Precisava dele no hospital. Haveria conferência com os médicos. Queriam alguém sem os estímulos sentimentais à flor da pele. Viesse logo.

Zonzo pelo sono interrompido, Fernando resolveu que um banho lhe faria bem. Entrementes, Dolores se preparava para acompanhá-lo, com roupa adequada ao luto da amiga.

A viagem ao hospital foi rápida.

Maria estava entregue aos pais. Os rapazes não estavam. Havia bem menos pessoas. O horário do almoço se esgotara e muitos regressaram ao trabalho. Voltariam para o enterro. Leonel estava impaciente. Assim que pôde, arrastou o amigo para a saleta do administrador. Os médicos não estavam.

— Queiram aguardar um instante. Os facultativos estão consultando o patologista. A hematologia enviou o resultado dos exames. Os médicos estão em conferência. Precisam conhecer a real causa do óbito.

Fernando não atinava com tamanhos cuidados. Suspeitava de que pudesse ter havido negligência. Eram freqüentes as notícias de processos contra os hospitais particulares e as decisões judiciais apenavam os responsáveis com multas particularmente onerosas. Afora o desprestígio na comunidade.

Mas o tempo se escoava lentamente e ninguém aparecia. Leonel não permanecia quieto na poltrona. Insistentemente, levantava-se para ir vistoriar o corredor.

Fernando arrependeu-se de não ter trazido o livro. Começava a inteirar-se dos mistérios da doutrina. Lembrou-se de ter lido que os espíritas não se preocupam com a morte. Será mesmo que a tese valeria para todos os espíritas ou o que Kardec deveria ter escrito é que os espíritas verdadeiros não “poderiam” temer a morte? No Centro, presenciara o trabalho de esclarecimento de seres recentemente desligados do invólucro carnal. Até que a terminologia não era tão rebarbativa. Quando estaria Jeremias disponível para o contacto mediúnico? O sistema de formulação de questões começava a instalar-se-lhe na mente. Era a vaza do companheiro desencarnado para responder. Imaginou que, enquanto o corpo estivesse insepulto, haveria forte atração sobre o espírito, principalmente porque os familiares e amigos estavam emitindo intensos sinais de compaixão e dor. Isso deveria cercar o recém-desencarnado de vibrações morais. Se não lograsse proteção dos benfeitores, possivelmente se envolveria nos fluxos da tristeza. União na dor? Se houver sinceridade...

— Esses médicos estão a merecer que os espanquemos com as leis.

Leonel começava a exteriorizar a irritação. Fernando julgou de bom alvitre ocupar-lhe a mente com outros pensamentos:

— Está encomendado o caixão?

— Quando cheguei, recebi a notícia de que o esquife deveria apresentar janelinha envidraçada para que a família possa ver o semblante do defunto. Os médicos querem que fique lacrado. Ainda bem que a funerária não havia mandado o carro. Foi possível efetuar a troca. Os preços estão pela hora da morte.

Nem repararam no gracejo involuntário.

— Explique-me uma coisa, ó caro materialista. Você acha que não existe realmente vida depois da morte?

Fernando queria testar os argumentos apreciados de manhã por Kardec.

— Se existir, ficaremos sabendo depois.

— Então, você abre uma brecha...

— Eu só não discuto. É um tema que não leva a lugar nenhum. Quem tem convicção religiosa costuma ser muito agressivo. Na primeira ofensa, eu costumava responder atravessado. Fazia gozação. Mangava dos idealistas. Mas isso me dava muita dor de cabeça. Até negócios acabei perdendo. Agora, adoto política de boa vizinhança. Você me verá na missa de sétimo dia, de mês e de ano. Na hora de ajoelhar, ajoelho. Se quiserem que me confesse, lá irei eu. Comungar? Não será a primeira vez. Vamos deixar as pessoas contentes. Enquanto há vida, que haja felicidade.

Fernando pensava que não se faziam mais materialistas como antigamente. Mas o seu objetivo se consumara. Leonel estava mais calmo. Fora levado a falar em alegria, em paz de espírito, em cordialidade. Não poderia desdizer-se em seguida, só porque os médicos os faziam esperar. O dia estava totalmente perdido. Pior para o Jeremias que partira tão cedo. Poderia ter vivido até rejubilar-se com os netos. Mas fora uma morte, até certo ponto, sem sofrimento. Pelo menos isso. E se ficasse entrevado, com derrame, tetraplégico?! Fora melhor assim. A natureza lhe fora pródiga.

Um religioso colocaria “Deus” no lugar de “natureza” e essa seria a única alteração de vulto.

Nesse ponto, os amigos foram convidados a entrar. Havia outra sala, ampla, com extensa mesa de reuniões. O administrador do hospital e mais três médicos lá estavam. Feitas as apresentações, quiseram saber qual a religião de ambos.

— Católicos.

Fernando não olhou para Leonel, mas percebeu que praticava o que momentos antes afirmara. Ele é que deveria ter hesitado. Não prometera sair da Igreja Romana para adentrar no Espiritismo Kardecista? Pois, então?...

— Pessoas religiosas são mais fáceis de consolar.

Os médicos estavam cheios de dedos. Leonel queria terminar logo:

— Falem claramente. Nada de termos técnicos. Houve erro médico? Alguém deixou de prestar o devido socorro? Só assim se compreende tanta hesitação.

O médico mais velho assumiu a palavra:

— Desculpem, mas precisávamos caracterizar a causa da morte, não tanto com a finalidade de evitar problemas legais. Isso também nos preocupa. Mas o mais importante era saber se o paciente não contraiu infecção hospitalar, o que colocaria em risco todos os enfermos da ala de atendimento emergencial. Por outro lado, se a infecção adviesse de problemas imunológicos, haveríamos de advertir os familiares mais próximos para exames e, em caso de resultado soro positivo, tratamento.

— E a causa?

— Infecção generalizada. Dificuldades respiratórias. Parada cardíaca irreversível por infarto do miocárdio.

Os amigos entreolharam-se. Que significaria aquele amontoado de termos? Não seria mais lógico restringir-se a uma única causa?

— O paciente era portador do vírus da AIDS.

O efeito da palavra fulminou os dois.

— Não costumamos registrar como causa a própria AIDS, que é apenas veículo para o assalto viral ou bacteriológico. Nem as famílias gostam de ver o seu chefe exposto moralmente. Sabemos que não era viciado em drogas nem recebera qualquer transfusão de sangue. A transmissão se deve ter dado sexualmente. Isso vai penalizar a viúva. É preciso prepará-la convenientemente para a revelação. É preferível que nada digam por enquanto. Se quiserem apoio terminológico, poderemos atenuar as expressões para que passe pelo transe da perda. De qualquer modo, vai ter de ficar sabendo a verdade, pois iremos convocá-la e aos filhos a exames. Se tiverem conhecimento de como poderia ter adquirido a doença, vão prestar excelente serviço à comunidade, pois existe alguém por aí que desconhece que está disseminando o mal.

O médico falava pausadamente, com inflexões dolorosas, reconhecendo que a notícia era desagradabilíssima.

Leonel arriscou uma ponderação:

— Todos os médicos estão de acordo?

— Certamente. Havia discordância quanto à causa imediata. Eu mesmo optava pela aquisição da infecção hospitalar. Entretanto, o quadro clínico da internação, o longo desmaio, a rapidez do desenlace, tudo leva a crer em que o paciente vinha sofrendo alguns distúrbios, sem lhes dar importância. Faltou aos exames de rotina. Se tivesse comparecido, poderíamos ter detectado a doença a tempo de efetuar tratamento.

— O emagrecimento que atribuía ao regime vegetariano, então, era devido...

— Não tínhamos esse dado, mas se não estava alimentando-se corretamente, por certo facilitou a entrada dos vírus que o levaram.

Fernando pediu licença. Não estava suportando a linha fria das discussões. Compreendera a extensão da tragédia do ponto de vista emocional. Maria haveria de ser muito forte.

Saiu do escritório para o corredor. Desceu os lances de escada, enxugando persistentes lágrimas. Precisava de Dolores. Tinha de dividir o sofrimento. Sentou-se no último degrau e esperou que o pranto cessasse. Não queria despertar suspeitas para as más novas. Se a família fosse de espíritas, não haveria de temer a morte? Como o plano das filosofias é tranqüilo! Como a luta na carne é difícil!

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