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Contos-->O Tango Carioca -- 16/04/2000 - 14:20 (Bruno Ribeiro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Com a rapidez de um batedor de carteiras, Vadico deslizou por entre a multidão que se acotovelava na areia e desabou no mar. Deu algumas braçadas, afastou-se da linha dos surfistas e ficou boiando de papo pro ar. Queria esquecer Leonor. Mas agora, esquecer de verdade. Porque antes, fora tudo pra dizer aos amigos: "Tirei a diaba do pensamento, agora sou só alegria". Está certo que Vadico tentou; depois do sumiço da moça e de noites em claro pensando nela, Vadico deixou até de frequentar o bilhar nos arcos da Lapa.
E foi na Lapa que, por obra do destino, ele conheceu Leonor, jovem estudante de psicologia da PUC, às duas da matina, bebendo cerveja preta no fundo do boteco. Vadico não fazia o tipo machista, mas como bom galanteador que era, não ia deixar a menina sozinha na mesa dez. Pegou outra cerveja, mas não sem antes observar o movimento. Ela bem que poderia estar escoltada por um marinheiro qualquer, ou quem sabe, pelo travesti Juju Terapia. O Juju, negrão de dois metros de altura, conhecia as menininhas mais gostosas da classe média carioca, porque vivia andando de patins no Posto nove e fazia amizade com todas; à noite ele levava as estudantes de comunicação e de psicologia para os redutos malditos do Rio.

E Vadico sentou-se à mesa dez, com a conivência de Leonor. E ela disse que não era amiga do Juju, que não precisava de proteção para andar na Lapa, que não era feito as patricinhas da Barra, que gostava do Nelson Cavaquinho e estava escrevendo um livro sobre a psicologia do boêmio carioca. E Vadico se apaixonou. E também contou de suas estórias. Não disse que vendia biscoitos Globo em Copacabana, nem que saía de clóvis em todo carnaval, só para arranjar fumo bom e barato na saída do sambódromo, sem ser incomodado pela polícia. Disse que era poeta e guia turístico. E levou Leonor para pertinho do céu, no alto do morro.

No dia seguinte, Leonor não estava quando Vadico acordou. Havia deixado um bilhete na porta do barraco, "foi bom, mas tive que ir". Pela primeira vez, sentiu o peito vazio por causa de mulher. "E agora, como é que vai ser a minha vida sem Leonor ?".

Foi um mês na mais completa fossa. Procurou a moça por todos os cantos da cidade, dos bares imundos aos shopping-centers. E chegou à conclusão que todas as meninas ricas se pareciam muito com Leonor. Quando Vadico tinha cinco anos de idade, o pai morreu. Durante toda a infância e boa parte da adolescência, Vadico achara que todos os velhos se pareciam com seu pai. Agora, esta sensação mais uma vez lhe assaltava: todas as moças com menos de vinte anos se pareciam com Leonor. Nas noites de insônia, mirava a cidade lá do alto do morro, e a cidade crescia. A cada madrugada, o Rio ficava maior, tornava-se vasto, vastíssimo como o seu sofrimento, e ele quase que se convencia de que seria mesmo impossível encontrar Leonor no meio de tanta gente.

Um dia, Vadico rodou nas mãos da PM. Escondia o pó dentro dos livros de poesia. Besteira foi ter emprestado um Castro Alves para a bonitinha no bar do Vinícius. Ele estava pra lá de bêbado e ela estudava Letras, mas era filha de delegado e transava macrobiótica. Nada de química. "Eu sabia, disse depois o Vadico, devia ter sacado o suco de acerola no copo da grinfa". Passou as férias no xadrez, tempo suficiente para ser assunto na imprensa. Mães proibiram os filhos de comprar biscoitos Globo na praia, e a empresa processou os jornais. "Nunca gostei de polvilho, seu delegado, o meu pó era outro", choramingou Vadico antes de subir no pau-de-arara. "Poesia, seu safado, poesia...", gritava o delegado, espumando saliva no canto da boca.

Quando alguém pagou a fiança, "Quem será a santa alma ?", Vadico saiu, disposto a mudar de vida. "Não trabalho mais com esse tipo de material; só não morri porque tenho o corpo bem fechado na macumba". Resolveu também esquecer Leonor para sempre. No terreiro da Eloá, conheceu uma estudante de sociologia. "Não quero ser uma teórica, tá entendendo ? Quero viver esse povo, compreende ?". É claro que o Vadico compreendia e foi logo tratando de levar a mocinha pra conhecer o peji. Um desrespeito aos orixás, mas Vadico bem que merecia, já que as férias na cadeia duraram mais do que o previsto.

Leninha devia ter a mesma idade de Leonor, mas não parecia tão complicada. Ao saber do sumiço da outra, sussurrou ao pé do ouvido de Vadico: "estudantezinha de psicologia não quer compromisso, não tem preparo emocional para se envolver com alguém das camadas populares, percebe ?" Depois que Leninha desapareceu, logo na manhã seguinte, veio a nova fossa. "Não acredito mais em mulher; vou voltar pra Tereza". E Tereza recebeu Vadico de braços abertos e o bucho cheio, pela terceira vez. "Vem aí mais uma boca, Vadico, vê se agora tu toma rumo na vida, vê se faz um curso de datilografia, vê se entra em escritório". Foi ser ascensorista. O dia inteiro dentro de um elevador. "Só de pensar que a praia estava bem ali na frente..." Tereza, é claro, rasgou o verbo em cima de Vadico: "Não passa de um vagabundo, não aguenta serviço". E ele, retrucava, sempre filosófico: "minhas mãos pouco mais faziam que apertar botões". Depois, conseguiu - só Deus sabe como -, uma vaga de trocador de ônibus. Também não ficou muito tempo; vivia sendo assaltado pelo Ataliba - parceirinho de bilhar. Nunca mais deixou de pagar as contas da jogatina. Até o dia em que foi mandado embora. "De novo, malandro ?", exigia a patroa. E ele: "meus dedos só faziam contar dinheiro, nêga"; para Tereza, foi a gota d água: "espero que eles sirvam ao menos para te enforcar um dia destes, Vadico"

E Vadico, sozinho de novo, voltou a achar todas as moças parecidas com Leonor. Principalmente as moças das novelas e as estudantes que faziam cooper em Copa. "Esse mundo é um inferno; beleza que é bom dura só um dia", desabafou o Vadico quando foi visto pela última vez. Bem antes do meio-dia ele já estava na décima cerveja e com uma vontade louca de entrar no mar. Sobre as ondas, surfistas riscavam a água, indiferentes; era um domingo como qualquer outro, de Fla-Flu, embriaguez e mar agitado. O termômetro do calçadão apontava quarenta graus, quando Vadico, que não sabia nadar muito bem, esqueceria Leonor de uma vez por todas.


Bruno Ribeiro
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