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cronicas-->Cristal de Rocha -- 31/07/2017 - 16:46 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Você imagine que eu sou um cara de mente aberta. Veja, eu não tenho nada contra as minorias apesar de não ser parte da maioria obviamente estreita e dominante. Eu parto do princípio que nem todo mundo faz as coisas do mesmo jeito todo o tempo; faz parte do pensar humano o fazer diferente. Uns querem ser mais iguais que os outros, outros querem ser iguais a um só. Talvez a base da perdição de nosso mundo seja exatamente esta verdadeira mania de imitar o Outro, tentando ser o que ao Outro pode ser o avesso. Tudo se imita, a arte da imitação chega aos extremos mais tenazes. Eu sou, tu és e outro te imita. Tal é o que eu penso sobre este planeta, inquestionavelmente imperfeito e pleno de imprudências e negligências e talvez de imperícia de quem o criou. Creio que( e isso pode ser uma suposição apenas: se você reproduzir o que eu digo, eu digo que não fui eu, foi Outro que te imitou falando, boquirroto, a inverdade absoluta) essa é a base da maioria dos erros de nosso tempo. Tudo tem base nas mentiras deslavadas que pespegamos aos nossos mais próximos.

"Por quê eu digo isto? Ora, veja bem, atender pessoas é meu ofício, um artesanato que se aprimora com os anos, com as camadas de conhecimento ativo que fazem de nós, os médicos, seres talvez de vivências nem de todo desejáveis aos mortais comuns. Quem aqui o nega? Já vejo cabeças balançando afirmativamente; ou querem ficar horas plantados de pé, com uma prancheta na mão, atendendo na maior parte das vezes pessoas que lhes querem ver pelas costas? Acontece que cada dia eu aprendo um pouco, mas eu estou sempre acrescentando mais uma camada desconhecida ao meu lustro já nada banal de iniquidades do criador contra sua criatura preferida( ousam dizer assim os homens). Eis que atendo um senhor que aparentava ter seus setenta quando tinha vinte anos a menos. Ele tem a malandragem dos grandes, dos eternos mentirosos. Ele oculta o que todos sabem e ao ingênuo, ele tenta ainda convencer com mesuras, olhares enviesados e muitos, muitos papéis e exames velhos. Ele sabe o que eu sei pelo prontuário, mas tenta fingir o que mente e de tal forma que sua segunda personalidade, a Vítima, se sobrepõe ao papel passado do frangalho que sobrou de si."

"--Doutor, sabe como é, tenho uma família e preciso ajudar a criar, se o senhor me encostar, não vou pedir muito, sabe? Um salário mínimo, é tudo o que peço; só isto. Eu juro que eu preciso ajudar, preciso cuidar de minha família. Sou temente a Deus e Deus sabe o quanto sofro( e faz uma cara de dor ensaiada que seria premiada com um Molière), o quanto me faz falta a família. Se sou casado? Sim há 35 anos ela me aguenta. Claro que sei! Estou contando toda a verdade, lhe juro. Espere, deixe pegar os documentos..."

"Cai, de uma pasta imunda, cheia de jornais velhos, receitas puídas e pedaços de papel com escritos indecifráveis uma espécie de pedrinha branca; sim, isso mesmo, e eu aqui pego a tal pedra que parece um pedaço de cristal meio amassado. Eu diria que a pedra tem o tamanho de uma polpa de polegar, está acompanhando? Bem óbvio que não. Bom, o pobre homem quer se convencer de que ainda mente bem e se sai com essa:
--Sabe, doutor? Minha filha mexe com energias, cristais, coisas assim. Ela me dá essas pedrinhas e diz: Guarde consigo, meu pai, guarde que isso atrai energias positivas. Sabe como é, amor de filha e pai...E eu guardo muitas comigo. De vez em quando, vendo algumas e consigo algum sustento para casa, porque essa minha filha é meu tesouro, vale muito meu sacrifício, sabe? Fique com ela, doutor, essa pedra lhe trará sorte...!"

"Agora, respondam se a mentira não é a mais admirável das instituições humanas! Quer dizer que vocês acreditam no poder redentor das revoluções perpetradas por poderes absolutos tal como acreditei que aquela pedra era um cristal de rocha? Vocês querem me fazer crer que a filha dele coleciona rochas em casa, boa geóloga que é e também acreditam que nascemos da costela de Adão? Por outro lado, querem me fazer crer que o Universo nasceu de uma formidável explosão cósmica movida pelo Acaso Absoluto, assim como eu logo vi que tinha um cachimbo deitado ao lado de sua carteira de trabalho depenada e dei por conta de que ainda hei de aprender muito nesta vida? Ora, se se mente! Ele me olhando com aqueles olhos vazios de verdade e com a falsa virtude dos fracos de espírito e fortes de lábia, ele fazendo comigo o que os políticos vazios de ética fazem com seus eleitores presenteando as mulheres com pedras não menos valiosas que aquele toco de tóxico em minha mão? Francamente, eu, que lhes narro, custo a acreditar que vocês ainda acreditem no que lhes dizem sem retificar uma vírgula sequer do que lhes é imposto..."

"Depois que ele se foi, um certo sol bateu entre as nuvens da janela que dava para o pátio do Posto de Saúde em que eu atendo; o ar se torna mais respirável, porque ao desprazer se somou o descaso, e ao meu gesto de despedida se somou o de adeus. Quem sabe se foi simbólico o ato dele ao me entregar sua última pedra? Que tipos que andam no mundo vasto que , de perdido que está, mais perdido fica?"

"Segue a Vida. Vamos ao próximo, não sem antes pesar na palma da mão todo um destino comprimido em veneno."
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