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Contos-->Motorista de Táxi (um conto inacabado) -- 25/10/2001 - 01:23 (Luís Augusto Marcelino) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
- Vai jantar, Antônio?

Toda noite Valdete lhe fazia a mesma pergunta. Ele queria responder rispidamente, mas se calava. Se a mulher sabia que ele ia jantar, por que lhe perguntava? Chegava entre uma e duas da manhã. Estacionava o táxi na casa de uma vizinha que lhe cobrava uma fortuna pelo aluguel da garagem estreita. Já tivera que trocar dois retrovisores. Só que não tinha alternativa. Sua casa, também alugada, tinha uma mureta baixa, um pequeno jardim e um corredor lateral. Três cômodos. Iria mudar dali a algum tempo, pois o sogro morrera recentemente. Teria de economizar bastante para erguer uma "casinha" no terreno do pai de Valdete. Só não o fizera antes porque detestava seu Valdir. Quando o velho bateu as botas combinou com a sogra que se mudaria pra lá. Tudo bem - disse ela. É para o bem da minha filha e dos meus netos. Ainda tinha de engolir esse desaforo. Naquela noite não tinha conseguido nenhum passageiro, desde as cinco da tarde - horário de seu segundo turno. Precisaria abastecer no dia seguinte. Sua cota de abastecimento a prazo tinha se esgotado no posto Gaivota. Estava confiando que a mulher lhe emprestasse algum. "A patroa atrasou o pagamento. Só terça-feira." Ele perguntou se ninguém tinha deixado recado para uma corrida. Apenas o Américo, um malandro que sempre perdia a hora do trabalho e pendurava a bandeirada. Esse não servia. Tinha de arrumar alguma corrida para pagamento a vista. O tanque ainda lhe permitia rodar uns quinze, vinte quilômetros. Se não arranjasse passageiro, estaria fodido. A mulher colocou o prato na mesa. Perguntou se queria salada. Ele não queria. Apenas o arroz, o feijão e um pedaço de carne guisada. Começou a brincar com os talheres. E a lembrar do dia estressante. Não contava mais para Valdete sobre os assaltos que sofria. Ela sempre olhava com um jeito de quem não estava acreditando. Pegou um passageiro na São João com destino à Zona Leste.
"Pára o carro vagabundo! Passa a grana! E me dá esse relógio..." Levou uma coronhada na nuca, e o bandido ainda esvaziou um dos pneus. Isso às dez da manhã. Por vezes pensou em comprar uma arma, mas nunca teve coragem. Voltou ao Centro e estacionou no seu ponto informal, perto da praça Julio Mesquita. As putas transitavam. Saíam de seus "mocós" e se dirigiam para alguma lanchonete. Antônio as acompanhava com o olhar. Já tinha socorrido algumas delas, esfaqueadas, no início das madrugadas obscuras. Nunca recebia; nem em espécie, nem em trepadas. Geralmente elas sumiam. Mudavam de lugar para não serem novamente violentadas. "Está vazio?" Uma moça elegante, de óculos escuros, bateu em sua janela, dispertando-o das reminiscências. Abriu a porta. Quer ir atrás? Não, aqui está bom. Augusta. Ele a deixou próximo ao número 2000 da movimentada rua. Corrida curta, que lhe garantiu o suficiente para almoçar num restaurante pequeno, que servia um comercial caprichado, com direito a sobremesa e suco artificial. Nada como a comida de Valdete, mas o suficiente para forrar o estômago e agüentar a primeira jornada do dia. Valdete terminou de servi-lo e foi-se deitar. Acordava bem cedo, por volta das cinco e meia. Deslocava-se até o lado oposto da cidade. Um ônibus, um trem, outro ônibus. Deixava o café das crianças preparado e saía rumo à casa da patroa, dona Sílvia, mulher de bom coração que as vezes lhe dava um esporro. Não guardava mágoas, contudo. Sempre que podia Antônio vinha almoçar em casa. Tirava a vasilha da geladeira, esquentava o arroz e o feijão e fritava o bife ou o que tivesse de mistura. Dormia duas ou três horas e voltava para o ponto. Do quarto, Valdete perguntou se ele iria dormir. "Daqui a pouco" - respondeu. Acomodou-se no sofá do canto e ligou a TV. Tentou se concentrar no noticiário, mas a preocupação com a gasolina não deixou. E o maldito governo aumentaria o preço do litro dentro de poucos dias. O ministro culpava a Opep. Mas por que tem a porra da Petrobrás, então? Estava cada vez mais difícil arrumar o sustento. A mulher vivia lhe pedindo mais dinheiro para comprar roupas para as crianças. Cobrava-lhe. Reclamava que não recebia atenção, que ele chegava sempre cansado e que não conversavam mais. Falar sobre o quê? As broncas da dona Sílvia? As diabruras que seus filhos aprontavam? Ou os esfregões que ela recebia nos ônibus apertados? E ele, o que revelar? Toda vez que dizia que o dia tinha sido ruim, Valdete esperneava. Dizia que, se não fosse o trabalho dela, os meninos passariam necessidade. Ela também não gostava de futebol. Nem de política. Nem de nada. Só de novelas e de faxinas. Técnicas revolucionárias de faxinas. Resolveu que cobraria as duas últimas corridas que o Américo pendurara. Era a única solução visível.


x x x

Quando era metalúrgico a vida lhe parecia mais tranqüila. O trabalho também era duro, de segunda a sábado. Mas o ordenado não atrasava. Conheceu Valdete na parada de ônibus. Trocaram olhares. Depois cumprimentos. Depois confidências. Ela já tinha um filho, Otávio, a quem Antônio acolheu como se fosse um filho legítimo. Juntaram os trapos. De vez em quando iam aos bailes. O de carnaval era sagrado. O sogro era contra, mas Valdete não deu bola. Ficou sem conversar com o pai quase seis anos. Antônio só bebia nos fins de semana, comedidamente. Sempre foi caseiro. Carinhoso com as crianças, até com Otávio. Entrou em depressão em 89 quando a metalúrgica onde trabalhava o despediu. Sorte terem pagado a indenização antes de decretarem falência. Ficou desempregado dois anos. Passou a fazer bicos de toda a espécie quando o dinheiro minguou. Foi trabalhar como operário da indústria de calçados do Rio Grande do Sul. Conseguiu juntar algum dinheiro, mas veio a crise do início da década de 90 e foi novamente despedido. Vou para a praça, resolveu ao chegar em São Paulo. Comprou um carro velho e transitava clandestinamente pelas ruas agitadas da capital, até ser pego pela fiscalização. Quase perdeu o carro. Foi salvo pela sogra, que pagou todas as taxas. Tinha essa dívida moral com Dona Ironildes. A financeira já tinha liqüidado. Levou oito meses para regularizar sua situação. Trabalhou para uma frota neste período. Dias difíceis. Tão difíceis quanto o último ano. A concorrência com as vans de lotação era desleal. A freguesia diminuira pela metade. Luz e água subiam. Gasolina, nem se fala! E passageiros reduzidos ao mínimo desejável. Se pelo menos conseguisse um ponto na Berrini ou próximo a um shopping, podia ser que as coisas melhorassem. Mas um bom ponto em São Paulo custa caro. E, mesmo que tivesse dinheiro, tinha de entrar para a máfia da região. Havia perdido a esperança de se dar bem na praça. Pensou várias vezes em abandoná-la. Valdete lhe mataria. Vai viver do quê, homem?

- Tô falando, Antônio!

- Está muito fácil, Pipoca. Ninguém oferece essas coisas de mão beijada.

- É claro que não vai sair totalmente na faixa. Temos que morrer com uns 3 contos cada. Molhar a mão do cara do sindicato. E ter paciência. A faculdade só vai ficar pronta daqui a três meses. Faculdade de burguês, Toninho. Nada de cheques sem fundo e de corridas na faixa. Dinheiro na mão, compreende?

- Sei não...

- Pode confiar. O cara parcela.

- Mas onde vou arrumar três mil, Pipoca? Estou com dívidas até o pescoço.

Antônio se endividou ainda mais. Com a sogra e com a mulher, que pediu as contas. Apostou no ponto fixo do marido. Antônio mal dormia. Primeiro por ansiedade. Passados os três meses, prédio da faculdade erguido e nada da concessão sair. "Me fodi, me fodi!" - pensava toda vez que encostava a cabeça no travesseiro. Pipoca sempre pedia paciência. Era solteiro, não tinha os mesmos compromissos e responsabilidades Foi emagrecendo, quase sumindo. Só a pele e o osso, dizia a mulher. E nada do novo ponto. E a casa própria ficando cada vez mais distante. Tinha horas que a angústia tomava conta de seu peito e ele só pensava besteiras. Largar tudo e ir para outra cidade, começar tudo de novo. Sem família, sem casa, sem a correria da grande cidade. Um pouco de paz, era disso que precisava. Num Domingo bateu à porta do Pipoca. “Vamos beber!” Queria seu dinheiro de volta. Pelo menos daria para comprar parte do material para erguer seu novo barraco. “Impossível!...” – disse o amigo. Mas posso vender seu ponto para outro companheiro. Só que tenho certeza de que vai se arrepender...

- Então vende essa merda que eu tô precisando da grana!

X X X


Em maio Antônio agradecia a Deus pelo fato de o Pipoca não Ter conseguido vender seu ponto. As coisas perto da nova faculdade começavam a melhorar. Cativara uma freguesia. Corridas longas, quase não levava calote. Ponto tinha telefone. Mas, com o tempo, teve de comprar um celular. Imagina, um celular! Valdete tinha conseguido outro emprego e, juntos, contrataram um pedreiro. Valdete já não o importunava tanto com a escassez de roupas ou de comida. Continuava reclamando da ausência de Antônio – que trabalhava cada vez mais. Sob chuva, sob sol. Imaginava que no ano seguinte pudesse trocar de carro, talvez por um com ar-condicionado, para enfrentar os congestionamentos intermináveis nas Marginais e na Castelo. Na Zona Sul, em todos os lugares. Via carros o dia inteiro, tinha horas que desejava viver na Amazônia só para não ver mais tanto automóvel. Mas era o seu ganha-pão, consolava-se. Uma vez por semana levava Yasmin, uma passageira sorridente, dezessete anos, até a Heitor Penteado, bem próximo da Doutor Arnaldo. Morava num prédio de vinte e dois andares, apartamentos com varanda, quase todas enfeitadas com vasos de plantas. Algumas varandas tinham mesas e cadeiras e, devido à localização do prédio, podia-se ver boa parte da cidade – ele imaginava. Não entendia por que as pessoas resolviam morar em apartamentos. Prisão. Aluguel para o resto da vida, por causa do valor do condomínio. Ele nunca se vira morando num lugar daqueles. Gostava de quintal, de Ter liberdade para lavar o táxi em frente à própria casa, nos domingos de manhã. Yasmin lhe contava, orgulhosa, sobre o que aprendera naquelas quintas-feiras – dia do rodízio de automóveis da mãe. Quando recebia notas baixas, chegava ao táxi entristecida, cabisbaixa, poucas palavras. Antônio a consolava. Falava para ela rezar. E estudar um pouco mais! “Eu estudo, seu Antônio. Eu estudo pra caramba!” Ela vivia dizendo “pra caramba”. A mãe era desquitada havia muitos anos, e ela quase não via o pai. Tinha uma irmã chamada Emily, mais velha, que estava estudando nos Estados Unidos. Se tudo desse certo, no próximo Natal ela e a mãe visitariam a irmã. “Estou ansiosa pra caramba, seu Antônio! Conhecer os Estados Unidos, não é o máximo?” Os dois passavam o trajeto todo conversando, exceto quando a menina estava triste. As vezes ela encostava o rosto fino na janela e ficava com o olhar perdido pelas ruas e avenidas. Antônio imaginava que talvez estivesse apaixonada, nessas ocasiões, ou com um problema com a mãe. Coisa de adolescente. Então não puxava conversa. Limitava-se a receber o cheque a mãe preenchia parcialmente, para ela completar com o valor. A corrida variava entre vinte e vinte cinco reais. Ela calmamente escrevia o valor e entregava a folha para o motorista. “Tchau, seu Antônio!” – ela se despedia. Ao chegar em casa, comentava com Valdete sobre o que conversara com Yasmin. “Cê precisa ver que doce de moça, Valdete! Que educação..” A mulher mal lhe dava ouvidos. Sempre cansada, só pensava em lhe servir o jantar e jogar o corpo obeso sobre a velha cama de molas. Antônio repetia sua rotina. Ligava a televisão e ficava relembrando as passagens do dia. Um sorriso espontâneo brotava de seus lábios toda vez que lembrava da jovem passageira. Queria que Juliana, sua filha, fosse estudiosa como Yasmin. Ia para a cama e dormia quatro, cinco horas, para chegar ao ponto às sete da manhã.

X x x

Cinco meses tinham se passado desde que conhecera Yasmin. Sua vida se transformara da água para o vinho. Faltava muito pouco para encerrar sua construção. Se continuasse no mesmo ritmo, o ano novo que se aproximava podia lhe trazer um pouco mais de boa-ventura. Sua freguesa de corridas, ao contrário, parecia estar em decadência. Mais de uma vez Antônio a viu nos bares em frente à faculdade. Estava fumando e bebendo, na maioria das vezes. Passou a se vestir de outra forma. Saias curtas, calças rasgadas. A cada semana um penteado ou uma cor de cabelo diferente. Pedia para Antônio trocar cheques, agora com valor adulterado. “Aquela puta não me dá dinheiro pra comprar cigarros, seu Antônio! Nem pra nada.” Antônio tentava lhe dar conselhos. Perguntava-lhe da viagem. Yasmin dizia que não ia mais. Que, se a mãe quisesse, que fosse sozinha. Pelo menos a deixaria em paz para curtir os amigos. Ficou duas semanas sem entrar no táxi do Antônio. Voltou para casa de ônibus, trocou o cheque na lanchonete, e pegou o dinheiro. Para vagabundagem, certamente.

- Este é o Ricardinho, seu Antônio! Vou dar uma carona pra ele, até a Pompéia.

Ricardinho era branco, nariz avantajado, usava cabelos compridos e roupas pretas. Tudo preto. Calça, tênis, camiseta. Cinto. Olheiras acentuadas. Falava pouco. Já o tinha visto com Yasmin num daqueles bares.

O que uma menina daquelas estava fazendo com um sujeito tão imbecil?
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