Há momentos no dia que são cruciais. O dia todo depende deles. São básicos. Um deles é o despertar. Mais que um momento, o despertar é um período. Aquele período entre o despertador e o levantar. Sua duração é variável e depende muito dos primeiros instantes. Aos domingos pode durar horas. Nos dias úteis, alguns segundos para uns, minutos para outros.
O primeiro instante ocorre quando você é acordado. Logo que se é despertado, acontecem coisa curiosas. Há quem tenha uma visão completada de toda a vida, como se aquele dia estivesse programado para ser o último. Crises de consciência pelos atos do dia anterior podem durar um ou dois segundos. Depois vem os "Deus me ajude" para enfrentar os desafios previstos para o dia. Tudo isto, uns quinze bocejos e mais alguns pensamentos impensáveis ocorre num piscar de olhos. Após, você está acordado. Paciência.
Há diferentes formas de despertar, desde música suave, até uma cotovelada.
- Tá na hora. Levanta se não tu perde o ónibus.
No extremo oposto, pode ser com beijos apaixonados. Pode. Poder, pode. No cinema é assim. Se você nunca foi acordado com beijos apaixonados por uma mulher carinhosa, já maquiada, penteada, totalmente produzida, embora ainda não tenha levantado, console-se. Isto só ocorre no cinema, ninguém pode ser culpado por não querer sentir seu bafo, e a halitose matinal é da vida. Felizmente, baldes de água fria também são usados apenas no cinema onde tem uma grande equipe para arrumar a porcaria toda. Em casa, isto é impensável.
Embora haja muitas hipóteses para ser despertado, a mais usual ainda é o despertador. Galos próprios ou de vizinhos são cada vez mais raros nas áreas urbanas. Isto é muito ruim pois há estudos da Wakeup University na Nova Zelàndia, indicando que o despertar produzido por uma galo diminui em mais de 3,7565% o risco de enfarte, sem falar nas unhas encravadas, joanetes e tantas outras mazelas do mundo moderno. Eles estão desenvolvendo um canto de galo sintético a ser introduzido em todos os despertadores, como o iodo no sal.
Pois então. Seja lá como for, você é despertado. O próximo passo é descobrir que dia é. Domingo? Aos domingos, a menos que você seja frequentador da missa das seis, sempre é possível pensar um sonoro "deixa pra lá", virar e adiar o despertar para daqui a pouco. Este é talvez um dos melhores atos de uma vida. Você exerce plenamente o seu direito de despertar na hora em que bem entender, você realmente é dono de seu nariz. Neste momento, você manda. Pelo menos neste.
É bem verdade que há domingos em que é necessário levar filho em jogo de futebol da escola, sogra na missa, e todo o elenco de atividades a que um motorista solícito, pai devotado e genro agradecido está sujeito. É claro que estas atividades não acontecem todas no mesmo domingo. A bem de não lhe cansar, elas são distribuídas ao longo do mês e, não se preocupe, um ou dois domingos por semestre você poderá exercer seu poder sobre seu próprio você e dormir até que a cachorra suba na cama e comece a dar lambidas. A esta altura é melhor levantar mesmo. Outro dia você dorme mais um pouco. Afinal, ninguém vive para dormir.
Nos outros dias, tão logo é despertado, você descobre que é dia de trabalho, escola ou faxina na casa. Aí você pode ficar pensando algo como uns quinze, talvez dezessete segundos, até que se inicie uma pressão incontrolável para que você levante e, depende o caso, uma ou outra cotovelada.
Aí você levanta.
Escrito em 24.02.2000 |
