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Contos-->Paulo -- 22/10/2001 - 10:17 (Ana Janaina) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Paulo


1.

Sentado na cadeira do auditório, correu a vista pelo restante da platéia, pensando que deveria se concentrar mais em ouvir do que ver. Ninguém conhecido, todos bastante interessantes. Baixou a cabeça, olhou os próprios sapatos e julgou-os agradáveis. Como deveriam ser. Sem tristezas, sem intensidades, nada muito perigoso. Perguntou-se há quanto tempo a vida deixou de ser perigosa e lembrou-se da adolescência, quando viver ou continuar vivendo era uma provação constante.
Olhou novamente para frente, concentrando-se nas palavras do escritor, nas suas piadas já velhas, na literatura corrompida. O braço direito segurava o casaco que quase escorregava ao chão. Se sentia esmagado pelo que ouvia.
Levantou-se e ganhou o mundo ao se libertar da cadeira.
Saiu do salão e desceu a escada. Perto da porta de vidro, a mulher fumava e olhava o estacionamento. Parecia cansada. Paulo parou ao seu lado, ‘é tão difícil iniciar uma conversação quanto iniciar um conto’, pensou. Ou continuá-lo.
 Vamos.
Enfiou seu braço no braço da mulher, muito próximo, mas não aquecido. Andaram juntos até o final do estacionamento. Ele apertou o alarme, destrancando o carro. Abriu a porta negra do carro pequeno e novo e sentou-se à direção, calmo e confortável. A mulher olhava para ele muito crítica, pesando suas faltas numa cara concentrada. Fazia do cigarro um exercício de estilo e insatisfação. Paulo virou seu rosto para ela e correu seus dedos pela curta cicatriz da mão da mulher, uma linha marron escura perto do polegar, na mão esquerda. Lembrou-se de quando ela se cortou: sua mão ficou presa num copo e ela teve que quebrá-lo. Lembrou-se de como ela ficou nervosa. Um contentamento bobo se estampava no seu gesto e um sorriso suave porque naquele dia ela tinha se sentido tão desajeitada, mas de uma maneira cheia de ternura, como que pedindo que ele a protegesse de sua infantilidade. Ela se iluminou e riu e ele se soube perdoado.
E o riso dela abriu veias e caminhos até o seu íntimo – como ele se sentiu indefeso – e o riso dela desprovido de todo de intenções e de desejo – ele que era o seu homem, que era todo seu – e o riso dela não provava nada nem amor nem castigo e ele sentia que em tudo precisava de afirmações violentas de ser agarrado naquela descida a tudo o que parecia perdido e desencontrado à tudo que parecia seguro e guardado e de nada adiantava tentar olhar para ela porque ela já tinha perdido significado já não era mais presente e ele era só o que se tinha já passado e perdido, tudo o que não se tinha permitido.
Diante de seu riso cheio de compreensão e ternura, ele se encheu de terror.
Sentiu de novo toda a opressão que o esmagava no tempo em que se levantar era a primeira batalha do dia contra todos a mãe dormindo seu sono exigente no quarto de cima o pai roncando pesado no sofá espalhando seu cheiro de álcool pela porta aberta da sala mas mesmo estas não eram as maiores batalhas nem acreditava serem mais válidas e de lá correu para a adolescente irascível que flutuava em sua sala de trabalho olhando-o com olhos tão imensos e intransponíveis quanto o destino dos dois e fez um último esforço, se voltando para a mulher, neste outro momento, tentando chamar seu desejo por ela a quem ele uma vez tinha aceitado e continuava aceitando fazendo da aceitação um exercício diário um exercício de crença buscou seu desejo pelo corpo dela um desejo ainda aflito e afiado mesmo depois de tantas satisfações depois daqueles quatro anos e como ele conhecia o corpo dela e podia contar tudo sobre ela e talvez aquela falta de mistério e provação acertaram-no como um tiro, arrebentaram seu peito e ele quis abrir mão de seus preceitos, de todas as lições que tinha aprendido, de todas as precauções que tomava para não ser acertado tão em cheio pela vida, querendo que os acontecimentos o envolvessem cheio de selvagerias e desumanidades concentradas e armadas na figura da menina.
Por que não tinha sabor conseguir o que sempre se quis?
Libertou, então, a memória a fim de que a trouxesse de volta, culpa e centro de tudo o que acontecia agora, que no acaso e no sabor da sorte lhe tinha atravessado a própria sorte, uma imagem sem toque, uma impossibilidade virtualizada, residindo no olho de uma tristeza, no relâmpago de uma paixão interditada e comprometida com a irrealização.


2.

O toque era interditado pelos argumentos que ele mesmo lhe tinha dado (‘os momentos são outros’, e ela se conformou, nada que a lógica não a tocasse). Era tão mais jovem, mas, de forma alguma, ameaça à sua esposa – ele se maravilhou com esta nova lição, a de amores que não se tocam –, ela ameaçava apenas a ele mesmo; lhe atravessava e lhe tangenciava, sentia-se móvel e submisso sob seus dedos, o comandava com tão obstinada inconsciência, ditada por suas próprias regras (ele se perguntava de onde ela as teria tirado), minimizando o presente a um quase nada na perseguição constante da redefinição, dizia buscar o segundo rápido e claro como um raio em que a modernidade se cristaliza, e ele lembrava que, num conceito mutável, o momento de definição não existe, ao que ela, intransponível, respondia: ‘a cada um compete perseguir seu próprio tempo’. Esta estranha sabedoria o atormentava, como encher com isso sua imagem adolescente? Regras firmadas no intento de pisotearem as antigas, ele percebia e se perguntava que ódio ou que terror a comandavam em sua busca, expertise em meninas e meninos, nada que a detesse, julgamentos sempre pós fato, ela que o olhava cheia de interrogação para, um momento depois, como uma corda que vibra e arrebenta, lhe preencher com aquele riso volumoso como uma onda, um riso que nascia de um ímpeto quase prazeroso quase raivoso no início da garganta, se esquecendo por instantes...
E ela lhe atormentava. Não sabia, ou se impedia saber. Mandava dizer a ele que a honestidade, por natureza, é brusca, que a suavização altera o seu intento; influência dos astros, ele lhe esclarecia numa confidência, para que ela o olhasse torto e enraivecida. Nestes momentos, ela se tornava impassível e se esforçava ao máximo em seus exercícios de diferenciação, passando tempos sem ligar para ele, envolvida em suas próprias tramas, ela que não lidava com acaso, ou fazia do acaso intenção, era dura como o trato da pedra é duro, lembrava os poemas de João Cabral, com seu jeito ríspido e estudado, perseguindo a si mesma. Mas todos os argumentos e determinações se iam quando ela voltava a lhe ligar ou lhe aparecia – contou a ele que, certa vez, a tinham chamado ‘epifania’, e ele lhe mandou um sorriso do alto de um delírio – e se permitia, fluída de voz e suave no gesto, um calor mínimo ao mesmo tempo que infinito, como que cansada (o sono lhe era uma armadilha), a voz alcançava o segredo e ela perdia a defesa e a intencionalidade, se mostrava sem aquela terrível vontade de mármore, escorria através de suas próprias determinações, água se tornava. E este momento, de sua voz ou seu olhar, se o tempo era favorável, se os compromissos de ambos deixavam, se o dia tinha sido bom, se a mãe não a atormentava com a indiferença, se ele não tinha que sair para casa da família, se o carro não tinha quebrado e se ela não tinha companhia – como eram mínimos estes momentos! –, podiam ser contados – como eles se sabotavam! –, mas mesmo seu olhar sem desejo, sem urgência, seu olhar transparente, ele lhe admirava a calma e a juventude, a combinação de ambos o assustava, mas ele percebia que ela estacionava o tempo junto a ele, para o saborear com calma, transgredindo suas regras de velocidade. (Então, ele se sentia quase feliz de tê-la conhecido, mas sabia que as conseqüências seriam várias e incontroláveis.) Mas o momento de sua voz, ou seu olhar castanho sob a maquiagem carregada (ela se punha poderosa), de incompreensão (ela não o acreditava), sua risada divertida (ela se queria esquecida), um humor sem travas (ela não podia se negar nada), os braços finos (era tão jovem), ele não queria, mas sempre que a tocava o desejo de tê-la para si surgia, era um toque forte, sentia as mãos maiores e mais urgentes, ela percebia a vontade do pulso e a força do braço e se fazia mole e escorregadia, já tramando lhe escapar novamente, mas o momento da voz ou do toque ou do olhar era envolto em ternura, numa cápsula severa e segura guardada contra o restante insípido do dia, enquanto durasse o encanto. Porque, por mais que quisesse prolongá-lo, um indomável raio de frustração alcançava-o e abarcava sua noite (ela exercitava sua sensibilidade ao exaspero): o trabalho o martirizava, ele se tornava insone e ranzinza, abria a porta da casa com raiva, atravessando o apartamento incomunicável e se odiava duplamente por se comportar assim, trancado no banheiro, porque, quando em casa, só conseguia respirar se estivesse sozinho e escondido, se tivesse fugido. E odiava a ela também, ela que o possuía sem o querer, um presente mal endereçado, ela, mais nova, bem mais nova que ambos (ele buscava olhar a esposa lá ao seu lado, no agora), mas ambas eram tão sem comparações, sem pontos tangíveis, ele se via abençoado por seu amor abarcar tanto, a mulher ao seu lado, de sabedoria consistente, instantânea, cabelos e olhos negros como contas, sugerindo mares de profundidade, suave, cheia de ternura e conformidade, uma intuição que eles chamavam de ‘instituição’ numa brincadeira já séria, e a outra, mal saída de uma adolescência que ela mesma dizia ter moldado, um disparate de cores...
Mas ele continuava seu ódio, o modo como ela o controlava sem intenção o maltratava, evitando o conhecimento daquele poder, determinada a ignorá-lo, ia e voltava neste ódio, ódio da sua inflexibilidade, de como nada a alterava de seu direcionamento básico, da vontade de atravessar a vida, da impossibilidade de se reter, ele sentia a sua impaciência, ela queria chegar antes, chegar em instantes, passar por cima da toda inutilidade da vida, tudo o que acreditava supérfluo: as preparações, certos toques e certas palavras, as dissimulações; as ostentações, que ela menos suportava. Ela era verdadeira e solitária e não via as conseqüências e não tinha medo mas ele sim, temia muito por ela, por quando a proteção se partisse e a solidão a atravessasse, porque sabia que ela não se daria por menos (o que sentia, sentia em toda a sua extensão). O arrependimento matava sua vontade, chegava a ameaçar sua personalidade, fragmentando-a, ela perdia todo o ímpeto e se quedava, mole e dormente, por entre as ruas e os acontecimentos e da cidade (‘spies came out of the water’, ela confessou, ‘she’s felling so bad ‘cause... you know...’). Sentia-se muito culpada, de vez em quando, sem que ele soubesse porquê. Contava a ele da imensidão de uma dúvida que a envolvia quando menos se percebia, uma dúvida que dava ao sucesso o sabor de erro, que a impedia de pegar o que se lhe oferecia ou o que tinha conquistado, que colocava em risco a legitimidade da posse e lhe paralisava o gesto final...
Eventualmente, ele se perguntava se tudo o que podia ter dela, o assombro, aquela afirmação de verdade estrita, de honestidade armada, aquela impressão de raio e de essencial que ela sempre lhe trazia, valia a pena e o dissabor de não tê-la. Ela lançava o pensamento dele muito a frente, a despeito de si mesma. Pensá-la mesmo que não pensando juntos o empurrava a um exercício extremo que o sobrecarregava ao mesmo tempo que o enchia de energia. Ele refletia intensamente sobre seus modos, desconstruía suas conclusões e buscava o contrário dela, como que rodeando sua personalidade em vários ângulos. Ela também lhe colocava questões importantes, lhe perguntava sobre vida e arte, se havia algum ponto em que elas se uniam sem se destruírem, sem contradizerem suas definições básicas; contava das satisfações da conduta íntima e individual, das lições dos livros: “A única segurança é a legitimidade aparente”...
Em relação a ele, ela era quase que intencionalmente irresponsável, não ligava os atos às conseqüências, como se não acreditasse, ou acreditasse pelo avesso, odiava interferir da vida ‘alheia’ (ele odiava ser pensado como alheio), acreditava numa responsabilidade impessoal, social, geral, ela era tão terrivelmente impessoal e achava isso tão certo!!! Como podia ser tão jovem e tão inflexível?!?! Que etapas teria queimado para chegar tão cedo e tão longe? Mas suas exposições, os momentos de fraqueza e tristeza que, para ela, também constituíam matéria de sua transparência, ela que ficava tão intensamente triste (‘spies came out...’) e terminava por desaparecer de novo, tudo aquilo o quebrantava, vez ou outra, e ele se sabia, muito dócil, posse novamente...


3.

Sentado no seu carro ao seu lado a mulher de seu amor e um cigarro e a certeza de uma casa, a certeza de um filho, um filho que o adorava que dizia quem ele era que era sua segunda identidade um filho como um duplo amor escondido. Mas ela perguntou ‘o que foi?’ franzindo as sobrancelhas e ele desceu mais e mais na preocupação dela sabendo que aquela não era a hora de pesar a validade de tudo que aquele não era o momento da reflexão não era o momento de pensar-se tão humano ou pensá-la tão humana, era hora de tomá-la e se entregar e encontrar-se por outras vias e saber que só ela o trazia tão à tona de seu próprio destino, tão perto de si mesmo, tão solidário com todas as tristezas e tão alforriado de culpa e outras dúvidas.
Lutou ainda contra a imagem que puxava-o cada vez, para algum ponto onde a esposa não tinha poder nem validade onde só a angústia respirava por ele o dia inteiro onde a outra era um enigma sem resposta que não lhe dava descanso e não adiantava pensar, pensando ele ultrapassava a resposta, ele se perdia por veredas minuciosas mas cheias de engano, e não adiantava fazer, a ação não o levava nunca lá, ele usava da ação para se abandonar, para abandonar a pergunta, para se fazer inteiro porém vazio. E por que razão não tinha percebido isso antes? Que o momento da Escolha se inicia por gestos insignificantes, em momentos não solicitados, e ele precisava se acovardar para não despertar, para não ouvir as respostas. Para não ouvir o chamado outro que o atormentava, o chamado já condenado, interditado em sua raiz.
Lembrou-se de esta primeira mulher o tinha salvo da angústia antiga e do desespero que era ordem em sua vida, e que, depois de encontrá-la e ser acolhido, ela se tornou o eixo de suas ações, que ele a rodeava em todos os seus atos, que ele a sentia em tudo com um tato invisível e místico, ela era o ponto magnético para o qual ele sempre era levado. Mas ele que tinha se perdido por um só um instante, um instante mínimo daquela segurança válida e verdadeira, não uma segurança covarde, não, nada disso, se perguntava se havia volta daquele engano. A chave na ignição, a palavra no gatilho, a bala como um último alento. Sabia que o embate não era entre elas, nenhuma das duas queria que ele mudasse. A batalha era anterior, só nele mesmo. Se sentiu congelado e com febre. Mas queria ainda que ela soubesse. Que não era culpa dela, que ele não tinha como sabê-lo. Que ela podia perceber, mas não podia detê-lo. Que viver não era humano, por mais que sejamos nós que fazemos a vida. Que as exigências era demasiadas. A respiração era curta. Por que ele se sentia tão assustado e, ao mesmo tempo, tão certo?
E mesmo tudo aquilo já o enchia de aborrecimento.
Pela primeira vez, Paulo se sentia além da satisfação.
Distante e surdo, ligou o carro e engatou a ré.

ANA JANAINA
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