Ele fechava os olhos e se lembrava daquele dia, que passava como um filme: ele, Marcelino, estava com os demais alunos do colégio Marista, na aula de Educação Física. O professor Aristóteles obrigou-o a jogar. Marcelino relutava, não fazia milagres como o seu homônimo. Acabou entrando como um cego das pernas. Olhou ao longe as montanhas da Serra do Curral: quarenta anos antes, quando chegou a Belo Horizonte, o escritor francês George Bernanos exclamou: "mas é uma cidade caída da lua!" Como se caísse da lua doutro planeta, caiu Marcelino ali no campo.
--Passa pro Leonardo, seu lepra!!!
O rapaz era uma massa amorfa no campo, atirado no mundo, como cão sem osso, sem pão nem vinho. Seu ser simplesmente se agitava em meio aos outros corpos, com óculos de lentes grossas, boca dentuça. Sua presença ali incomodava, ansiavam por tirá-lo. Ele tinha pesadelos com a orientadora educacional gorda, terrores noturnos onde era comido por aquele colo guloso, devorador. No time de futebol, estava cercado de criaturas com telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor, todas inteiramente nuas por debaixo das roupas. Um dia viu um louco sair nu pela cidade, gritando:"vocês me fazem comer réptil!" Ciro também foi comido debaixo da escada, ritual antropofágico como a última ceia onde o apóstolo comeu o corpo de Cristo e bebeu o sangue.
--Vai, vai, marca o Marcelo!
A orientadora educacional Sulamita o achava estranho, pois chamou Marcelino para uma conversa em particular, perguntou sobre sua família, queria saber porque era tão calado.
Marcelino também comeu o réptil, também a pérola lhe foi ofertada. Chutou, e a bola bastarda estufou o véu da noiva. Ele vibrou de alegria, e se lembrou de um tempo distante que pareceu se esticar até aquela ventosa ali girando. Anjos tocavam frenéticos, foguetes espoucavam na sua cabeça oca...
--Foi contra! COOONTRA!!!
Para Marcelino,o chão se tornou geléia mofada, onde se afundava em pão, vinho, lama, merda e sangue. Logo depois o tiraram do jogo, Aristóteles fora derrotado em seu gesto ilógico.
Ao sentar no banco de reservas, foi como o abismo se reabrisse, agora dentro do peito, como se pérolas lhe saíssem da barriga: o pai vira tudo! O pai estava mais próximo do riso, o que fazia a dor se multiplicar por mil feridas, como se bocas com dentes se abrissem em suas mãos, pés, sentou-se aos pés do pai como um Cisto dentuço e de óculos, no qual os olhos e dentes subitamente se alastrassem pelo corpo leproso. O pai nada disse, e o levou dali, como se levasse embora uma semente estéril, caída em meio aos cactos.
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