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Contos-->As ruas em trânsito dentro de mim -- 21/10/2001 - 16:30 (Maria José Limeira Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
AS RUAS EM TRÂNSITO DENTRO DE MIM
Maria José Limeira


Naquela manhã, havia muita luz.
Tanta, que meus olhos não aguentavam.
Nuvens serenas se deslocavam no céu.
Um ou outra, adormecida, deixava-se ficar imóvel,
perdida no azul.
Dentro de casa, olhando pela janela, eu podia
ouvir pássaros, em cantos familiares, que me
chegavam dos amplos quintais da infância.
Até o som do vento, quase imperceptível,
embalando as folhas das árvores eram ecos do
passado morto, que não ressuscitaria.
Depois, em ressonância, ouvia o barulho do mar,
as ondas rebentando na areia, na hora do
amanhecer, que era quando eu mais gostava de
viver.
Mar, céu azul, infinito, barcos ao longe, no balé
suave do teatro que era minha vida, quintais,
quintais, quintais, meu Deus, ah quintais...
Tudo aquilo estava acabado, enterrado num
cemitério chamado hoje, e eu sabia que o que
estava vendo, realmente, era o edifício cinzento
que me emparedava...
Como poderia ouvir pássaros, ver nuvens passando,
e sentir o balanço do mar, no vigésimo terceiro
andar da minha agonia, em construção executada
para acorrentar os que sonham?
Solidão.
Que palavra estranha poderia descrever aquele
pulsar que me arrastava dentro de mim mesma,
batendo com a cabeça pelas paredes?
Não. Solidão não era.
Talvez fosse o vácuo.
Seria o nada?
O abismo?
Acho que era perdição.
Desamparo ou desesperança...
Não saberia dizer...
Talvez tivesse que aprender a ler de novo.
Ou - quem sabe - sentir novamente.
Rasgar a pele e ver o sangue escorrendo...
Eu estava tentando me situar num tempo que não
existia mais...
Nessa disposição de espírito, fui para o corredor
esperar o elevador.
Não havia ali som algum que me dissesse que eu
vivia num país de humanos, como eu.
As portas fechadas dos apartamentos, e o silêncio
que elas guardavam davam-me a impressão de que eu
já havia morrido, rodeada de solenes tumbas, que
exalavam o cheiro insosso de peixe podre dentro
do aquário.
A porta do elevador silencioso abriu-se diante de
mim.
Era um espaço vazio a mais onde mergulhar.
E foi o que fiz mais uma vez, como vinha fazendo
há anos, depois que entrara na era civilizada,
pela qual havia lutado desesperadamente.
Eu construíra o agora.
Tinha minha parcela de culpa pelo que estava
acontecendo nos países ricos e pobres.
Eu fora a esperança.
Eu era a desesperança de hoje.
E quantas vezes ousara levantar a voz, no meio
dos vencidos, incitando à luta, nem que fosse
para a morte inglória?
Vestida numa capa de cetim, inteiramente nua por
dentro, eu era heroína, mártir de todas as
revoluções, e dona de mim mesma...
Naquele tempo, era uma vez, e foi um dia...
A porta do elevador fechou-se silenciosamente.
Transporte de um mundo aflito, ia descendo
devagar, para o barulho das ruas.
Para o mundo conturbado que eu ajudara a criar.
Essa descida que eu sentia no estômago que se
acostumava ao vácuo das alturas era muito mais do
que um elevador em movimento que me tirava da
tumba triste para a cova universal onde
estaríamos todos encerrados.
Era a descida da glória para o fracasso.
Era a vertigem do topo da montanha que, rolando,
iria conhecer a escuridão do abismo.
O pequeno espaço, iluminado por uma luz fraca,
era o escafandro da morte em alto mar.
Ou a imensidão da galáxia olhada pela fresta da
porta de uma nave espacial que fugira ao
controle.
Olhando assim, o mundo me era desconhecido.
Nem mesmo eu me reconhecia mais...
Eu seria, quando muito, o pedaço infinitesimal da
História da Humanidade, que não tinha nada a ver
comigo.
Pois eu era o passado, perdida dentro do futuro
que idealizara...
Mas, por que procurava pássaros cantando, quando
os sons trepidantes dos veículos em movimento me
davam o conforto de que precisava?
Por que queria a maçã suja de terra, que tentara
Adão e Eva, quando comidas sofisticadas e
anticépticas me alimentavam, embrulhadas em
plástico?
E a paz almejada?
Povos desarmados...
Nações a troco de nada...
Representantes do mundo, que fizemos com o amor?
Onde estaria a poesia?
Alguém fala e nós escutamos...
Minha voz muda dentro do elevador é tudo que nos
restou. Tudo...
E vai descendo também o elevador como submarino
silencioso em sua última missão em alto mar...
Onde andará meu coração de verdade, batendo como
louco ao primeiro toque do corpo amigo que me
abraçava?
Esse coração implantado não tem mais o direito de
amar, pois é a sobra azeda de um jantar, última
refeição que o condenado à morte ingeriu...
Louco coração, que explodiu na última viagem de
avião.
Coração amigo...
Quem o reconheceria agora?
Que deu seu último suspiro quando hasteou a
bandeira branca e entregou as armas...
E o elevador descia, descia...
Ia suavemente em direção ao poço onde minha vida
se enterrara.
Até que parou bruscamente, o que me causou
estranheza.
Em seguida, a luz se apagou...
Não se enxergava nada mais.
Nada, a um palmo do nariz.
Bem, eu já enfrentara antes situações-limite.
Sabia quando era inexorável.
Conhecera o irremediável.
Derrotas fragorosas me encontraram.
Impasses.
Toda a tortura que a criatura humana agüentava eu
já sofrera.
Queimaduras de cigarro por todo o corpo.
Braço quebrado.
Estupro.
Ameaças ostensivas ou veladas.
Dias amargos.
O último limite da consciência.
E o balanço do pêndulo entre o fio da vida e as
portas da morte.
Por que achava que nada poderia ser comparado à
situação de agora, trancada dentro de um elevador
em pane?
Talvez por que todo o sofrimento de outrora tenha
sido bloqueado dentro de mim, para que nunca mais
se expressasse.
Ou porque não fora tão ruim assim que não pudesse
ser esquecido.
Ou então eu chegara ao ponto da gota dágua,
quando qualquer pancada me derrubaria, por mais
gentil que fosse...
Eu não sabia explicar meu pânico.
Não sabia dizer por que sofria mais uma vez.
Pensava, então, que minhas dores não se curaram,
por não haver cura para o que ficara guardado nas
linhas do destino.
Talvez porque meu destino fosse apenas sofrer.
Mergulhada em sofrimento, arrastei-me dentro de
mim, tragada pela escuridão que me rodeava.
Eu sempre ouvi falar e testemunhei nos
treinamentos de prevenção e atuação em situações
de risco que, no caso de pane em elevadores, a
vítima deveria sentar-se no piso e respirar
fundo, enquanto aguardasse socorro.
Ninguém, porém, advertiu sobre a possibilidade de
ficar-se no escuro, no momento da emergência.
Pois era o escuro o que mais me doía, naquela
hora, que me arrebatava da minha condição humana,
transformando-me em animal habitante das
cavernas, em idade que se perdia no tempo.
Perdi a dimensão do meu corpo e minha identidade.
Minhas próprias mãos me enlaçando eram tentáculos
de bicho estranho, alheio a todo conhecimento de
qualquer outro animal que eu já vira.
Era inimiga de mim mesma, ferida pelo próprio
ódio que me perseguia, num cubículo do qual
jamais poderia escapar...
Procurava me lembrar por que entrara ali e para
que.
Precisava saber o que se passou antes.
Como se justificaria o fato de estar dentro de um
elevador sinistrado...
E aquele escuro me dividia em duas.
Esta, de agora.
Outra, de antigamente.
Ao mesmo tempo, era nenhuma...
E milhares de outras...
Havia uma criança nua correndo solta na praia.
Depois, a mesma menina ficava presa num quarto
escuro, chorando...
Outra cena: menina-moça dançando solta no salão,
olhos brilhantes e largo sorriso, no dia do seu
baile-debutante.
Em seguida, moça-menina, roupas-andrajos, cabelos
desgrenhados, com restos de beijos do
amor-primeiro esparramados no meio da cama, e
tudo acabado entre nós...
Tudo isto era tão triste de se ver, e as cenas
tão patéticas e dramáticas e comoventes, mas
insuportáveis...
O que poderá restar num pobre coração apaixonado,
de primeira mão, que vai por água abaixo?...
Depois, veio-me a lembrança de uma jovem cheia de
sonhos, lutando pelo seu lugar no mundo, fazendo
barricadas, batendo panelas e rasgando sutiãs...
Jovem nua, no meio da rua...
Essa mesma jovem estuprada nas celas imundas dos
porões do poder incontestável que se espalhou no
mundo, onde sonhar era pecado...
Ah, lembranças alegres...
Lembranças amargas...
De como a poesia virou arma...
De como as armas matavam...
De como a inocência virou lama...
De como dessa lama não consegui mais sair...
De como tudo foi amargura e desespero, em lugar
de poesia e esperança...
De como a bala me atingiu pelas costas, e os
amigos me traíram...
De como dessa traição não consegui me
recuperar...
De como desejei vingança...
De como não consegui realizá-la porque não estava
em mim...
De como quem se levantou do chão onde a bala me
deixou foi outra pessoa, que não era mais eu...
De como me perdi completamente, desde então, sem
conseguir mais me reencontrar...
E depois, eram milhares de pessoas nessa mesma
condição, mergulhadas em irremediável solidão...
Agora, estava vencida mais uma vez, presa dentro
de um elevador em pânico, como em cela imunda do
passado...
Podia me lembrar de todos os acontecimentos de
milhões de anos, quando a Humanidade se retirou
das cavernas para a luz, sem recordar, contudo, o
que havia acontecido poucas horas atrás.
Sem saber explicar por que estava ali, para que,
a onde estava indo, e que destino desgraçado era
aquele que me pegava dentro de um elevador
sinistrado...
O tempo congelado.
Depois disso, mergulhei no vazio.
Sem pensamentos.
Sem dor.
Sem lembranças.
Enfrentei o Nada.
O que parecia a última batalha...
Quando a porta do elevador abriu-se, no andar
térreo, para a luz das ruas, conseguia ver apenas
os rostos das pessoas que me rodeavam.
Não eram pessoas.
Eram seres extraterrestres, talvez, que me
tocavam, como se eu fosse coisa de outro mundo.
E quando me colocaram na maca, vi a luz vermelha
da ambulância sirenando, e a realidade caiu sobre
mim, como enorme pedra que rolasse da ribanceira,
infeliz possibilidade, me atingindo em cheio.
Eu até podia sentir meus ossos se esmigalhando...

(Do livro “Contos da escuridão”)
Maria José Limeira é escritora e jornalista de
João Pessoa-PB.











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