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Contos-->O Quarto, Vovó e o Tigre -- 15/10/2001 - 19:39 (Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Aquele quarto sim, era jóia. Tinha vovó ali perto, com sua camisola de azuis bolotas. A cadeira de balanço rangia, eu sempre desviava os olhos do rosto de vovó, pois temia o azul oceânico. Azul macio, mas abissal.
Vovó tinha no colo um gato. Nosso animal de estimação. Eu podia jurar que ele gostava de mudar a cor de seus olhos para imitar o azul dos olhos da vó...
Um belo dia ele cravou os dentes no meu braço, arrancou um rio de sangue...Ah! Aquele azul parecia o dos olhos de Janis Joplin. Ergui minhas unhas em riste e avancei sobre o pôster daquela mulher desorientada, que punha a língua para fora enquanto segurava alguns dólares numa lanchonete ou algo assim. Rasguei tudo, despencou da parede, rasguei com uma fúria daquelas. Eu tinha sido um hippie tardio.
Fiquei chorando, minhas lágrimas corrosivas sobre o chão recentemente encerado e vovó me perguntando:
- Quê que ‘cê tem?
- Nada, vó.
- O quê que é?
- Nada não.
Saí correndo do quarto, bati a porta, fui para meu cubículo onde só cabia uma cama velha e coloquei sobre a cabeça um travesseiro. Uma voz rouca:
- O quê que...
Isso tudo enquanto o gato estraçalhava a cama onde eu dormia com suas unhas rubras feito vinho tinto. Ele continuou a escangalhar meu leito. Acariciei seu dorso de cor creme. Minha mão ficou repleta de pelos e decidi engrossar:
- Shiva! Shiva!
Aí ele parou e me olhou com uns olhos que imitavam os de vovó, para me intimidar. Puxei carinhosamente uma de suas orelhas de ouro marrom:
- Não faz assim, chaninho...
Talvez não tivesse sido boa idéia eu ter dado àquele bichano o nome do deus indiano que representa o arquétipo do asceta, o destruidor da ilusão. Diz a tradição que esse deus está no monte Kailasa, absorto em contínua meditação.
Mas acontece que eu sou assim desde pequeno, desde que soube que vovó já foi levada a julgamento. Fico reconstruindo mentalmente a leitura dos autos:
Escrivão- Este tribunal promove o julgamento desta mulher, a senhora Hermengarda Azevedo. É filha de Otto Trompowsky e Dulce Machado de Azevedo. Foi casada com o senhor Moacir Junqueira e teve três filhos. Consta que recusou a informar a este tribunal a data de seu nascimento. Tem quarenta anos presumíveis. Exerceu por toda a vida o ofício de jardineira. A ré recusou-se a falar sobre os motivos que a levaram a separar-se de seu ex-marido.
Terminada a leitura dos autos, teve a palavra o senhor promotor.
Juiz: Hermengarda é acusada por uma outra persona que coabita o seu corpo de ter mantido relações sexuais com um rapaz de dezesseis anos. Sua outra persona - a que levou Hermengarda a este tribunal - tem apenas quinze anos. Trata-se de uma criança.
Este tribunal traz agora a outra persona de Hermengarda, a garota chamada Cássia, para depor neste tribunal. Será a primeira testemunha.
Então eu imagino que a face de Hermengarda mudava subitamente, em meio a contorções musculares.
Primeira testemunha: Eu senti tudo, não vi nada não senhores. Só senti que ela quis, quis mesmo. Não podia. Esqueceu que eu também vivia aqui no seu corpo. E que eu era pura, pura!
Juiz: Esta promotoria chama agora a segunda testemunha. Trata-se de uma senhora idosa, dona Eufrosina. Seu depoimento evidencia a crueldade de Hermengarda para com as criaturas com quem compartilha o corpo.
Novas mudanças. Horríveis contrações.
Segunda Testemunha: Sou uma mulher idosa, mas digna. Sou de família. Peço encarecidamente que esta mulher que divide o corpo comigo seja punida. É uma corrompida, uma devassa! Ninguém pode imaginar qual meu asco pelo rapazote. Virgem santíssima! Só de pensar no ocorrido me dá engulhos de vômito.
Eu pensei que esta dona Eufrosina talvez fosse parecida com vovó Hermengarda hoje, depois de rabugenta. Minha vó, depois de idosa, criou repulsa ao sexo. Procurava reprimir o amor de todos em casa, inclusive o dos meus pais. E os dois colados desde a adolescência, quando foram vizinhos.
Juiz: Prosseguindo, esta promotoria chama ao tribunal a última testemunha. Seu nome é Marilene, balzaquiana e pudica. Mas seu testemunho é pungente.
Terceira testemunha: A malfadada Hermengarda merece por minha conta, a pena capital. Fui violentada por um mocinho! Senti tudo e quase enlouqueço. Morte para esta infeliz! Morte!
Eu estremeço ao imaginar estas palavras. E me concentro na fala do advogado de defesa, que entra em seguida.
Advogado de defesa: Senhor juiz, senhor promotor, senhores jurados: esta mulher é inocente. Desejava fazer o que fez com o referido menor. E foi plenamente consentida toda a relação.
Então vovó retoma seu corpo e intervêm. Imagino sua boca sangüínea, seu rosto enrubescido, sua voz embargada pela excitação quando proferiu as palavras seguintes:
“Sou inocente! Com meu corpo faço o que me apetece. Estas criaturas que se apossam temporariamente de mim não podem ser ouvidas. São criações não do Senhor Todo-Poderoso, mas demônios da minha mente atormentada. Mas minha alma e minha consciência estão imaculadas!”
Juiz: Cumpre à ré, senhora Hermengarda, manter-se de acordo com a ordem neste tribunal, guardando silêncio.
Promotor: A senhora Hermengarda tomou Baco por conselheiro. Encarnou Satã, torturando a si própria! Delirou numa orgia. Mergulhou sua mente na devassidão, na lama pútrida das ruas!
Juiz: Tendo em vista o depoimento das testemunhas e as provas apresentadas, convido agora os senhores jurados a darem seu veredicto.
E vovó foi considerada inocente. O júri concluiu que não se podia punir Hermengarda sem punir suas outras personas.
Mas mesmo assim hoje resolvi pregar uma peça em vovó. Vou fingir que me enforquei no quarto. Arranjei uma corda de náilon que amarrei numas tábuas do teto dessa velha casa sem lajes. Eu quero só assustá-la um pouco, para vê-la fechar os olhos daquele tom de azul que me obceca. Opa, a cadeira, escorregou...O laço está no meu pescoço, está apertando como uma tenaz, não consigo tirar...nem respirar...Arf, arf! Vovó, socorro! Som algum me sai da garganta, estou pendendo do teto, a tábua agüentou meu peso, enquanto isso o mundo parece estar sendo invadido por uma torrente de luz escarlate, parece que apertaram o botão, é um clarão que ofusca tudo, é o day after, o clarão me cega e deixa o chão amarelo-ouro e granulado como areia brilhando no deserto, lentamente o chão passa a vermelho e se une ao céu já rubro, é tanta luz que os contornos das coisas vão se esfumando. E se dissolvem, acho que é o fim, meu corpo pesa, acho que é o meu fim, mas isso é até belo, pena que o fim venha a mim e não tenha tempo para me aprontar para ele, mas está tudo bem, os objetos se dissolvem em traços suaves que ficam como manchas efêmeras na vermelhidão cega, consentindo que vão se fundir na torrente, como pedras atiradas num riacho.















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