A igreja do primeiro século foi supremamente inteligente em relação aos cristãos que lhe su-cederam, quanto ao aspecto literário. Os nossos irmãos, autores dos livros do N.T. foram eficientes e eficazes na criação de uma literatura supridora de necessidades imediatas a partir de uma literatura já existente (o V.T.).
Os escritores neo-testamentários aconselharam suas igrejas; deram-lhes rumos; fizeram-nas ver novas realidades; passaram-lhes a nova mensagem que, embora embrionária no V. T., viera à luz com uma nova realidade teológica, anunciada por Jesus de Nazaré.
Não somente os escritores, como também os próprios leitores eram flexíveis e estavam abertos a uma nova dimensão da realidade. Para muitos, a medida de aferição era o Velho Testamento; e isto era até natural: eram judeus que prezavam a letra da Lei, dos Profetas e dos Escritos (Atos 17:10-12). Mas isto não anulou a sua capacidade de diálogo e absorção da “nova” verdade dos missionários. Os cristãos não-judeus receberam mais facilmente a mensagem em face de uma formação cultural mais aberta para a reflexão, devido à influência helenista, que preparou o mundo do primeiro século para a mensagem cristã.
O referido acima, explica-nos porque Paulo se sentiu à vontade para poder escrever que a Lei servira de aio (Gal. 3: 23-25). Mas “depois que a fé veio, já não estamos debaixo de aio”. Paulo estava ensinando que os cristãos não estavam sujeitos a uma letra dogmatizada, absolutizada, como verdade inverificável.
Assim, os escritos dos missionários puderam servir de textos de orientação para a comunidade nascente.
Evidentemente que os escritos do V. T. eram usados na medida de sua aplicação possível à nova realidade do povo de Deus. Os princípios formativos dos aios, ou pais podem continuar com os filhos, mesmo depois que estes crescem e tornam-se independentes. Respeita-se (não se venera) os ascendentes e tutores sem que isto implique em obstáculo a uma nova criatividade.
Claro está que os afeitos à letra do A. T. não gostaram do que Paulo escreveu quanto à Lei. Mas, que fazer? As necessidades da igreja precisavam de ser supridas e não seria por motivos de men-tes conservadoras que o processo seria interrompido. Resultado: O aparecimento de escritos que supri-am coerente e concretamente as necessidades da Igreja.
Por quê dizer que aqueles cristãos usaram melhor a sua inteligência?
A partir do século II a Igreja começou a enfrentar situações novas e, para vencê-las, foi buscar respaldo nos escritos dos cristãos do século I. Ora, passou-se a respeitar aquela literatura ao nível do sagrado, de certo modo, absolutizando o seu conteúdo e, concomitantemente, tolhendo os contempo-râneos de usarem cristãmente a sua criatividade para inocularem as necessidades que surgiram. En-quanto os cristãos do século I absorveram o “espírito” do V. T. e escreveram novos documentos, os cristãos subsequentes caíram no erro dos letristas, considerando apenas inspirada a literatura já cano-nizada, e interromperam a elaboração de uma literatura “inspirada”, fruto de reflexões sempre vitaliza-das por novas situações e que fomentaria novas compreensões da realidade da Igreja, mesmo que para isto, chegássemos a considerar os escritos do N. T. como aios nossos, assim como Paulo considerou o V. T. (ou a Lei). Claro está que “tudo que dantes foi escrito, para nosso ensino foi escrito...” (Rom. 15:4). Mas este fato não proibiu a Paulo de ser um teólogo e criador de novas perspectivas para a Igre-ja.
Como resultado desta atitude eclesiástica globalizada, os teólogos têm perdido terreno; e os mais corajosos são estereotipados e, como o próprio Cristo, muitas vezes martirizados pela pena dos absolutizadores da letra do N. T.
Precisamos pois de inteligências despreconceituosas, livres de compromissos com algum sis-tema humano, afeitas, exclusivamente, à explanação da verdade e dispostas a interpretar as realidades divinas suprindo as necessidades do ser humano, mesmo que para isto corram o perigo de serem marti-rizadas.
Temos um acervo literário elaborado durante o decorrer da história eclesiástica, do qual tam-bém podemos dizer, tanto quanto do V. T. e N.T., que “para o nosso ensino foi escrito”.
Sejamos sábios e usufruamos da liberdade cristã no suprimento de nossas necessidades, possi-bilitando a continuação do surgimento da literatura do “Novo Testamento”.