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cronicas-->Fortaleza -- 10/03/2016 - 11:35 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Como sabem, este que vos fala traz em si a marca de Esculápio. Na bengala de Esculápio, duas serpentes se cruzam, sugerindo que o veneno pode curar e eventualmente que a diferença entre remédio e veneno é questão de dose. Tenho me questionado muito a respeito, até porque em razão de determinados acontecimentos, o atendimento médico em muitos casos se descaracteriza, perdendo seu lado mais humano, eventualmente se tornando uma relação burocrática e no mais das vezes, apenas de encaminhamento a serviços outros que possam atender as demandas. Longe de bater no rabo de tal jararaca, há que se transformar o veneno em ouro. O ouro, digo, é esse que nos vale o dia ou, mais, que nos faz refletir sobre nossa solidão profunda. Em como estamos próximos de finitudes, tanto as pessoais como as do outro.

Pois foi assim pensando que chamei uma senhora, que pelo registro teria 73 anos. Em um primeiro momento, não respondeu e logo a imaginei mouca ou eventualmente, de olhos baços. Eventualmente pensei até que a mesma haveria se distraído com as novas tecnologias, destas que atrofiam as almas de tantas gentes, fazendo-os olhar mais a minúscula tela do que o Outro bem ao seu lado, cheio de carências e afetos e tão precisado de um beijo, um afago. Mas não, lá estava a velhinha então, teclando seu telefone com dedos trêmulos. Nem ouviu meu chamado! Que mundo é este?

Nisto, após algum tempo de retardo, entra em minha sala uma senhorinha magra, mas de porte ereto e olhos pedindo mil desculpas. As pessoas dignas, isso eu noto e sei, antes pedem desculpas nos olhos, assim como as pessoas sórdidas antes o olham de cima a baixo com o sentido falso de superioridade que não têm; sou mais as pessoas dignas porque as sórdidas mal conheço. Essa fortaleza pequenina veio me mostrar seu braço. Ela tinha no braço marcas de um prurido antigo, coceiras que a incomodavam há anos. Há exatos quatro anos ela se incomodava.

--Por quê a senhora, justo neste tempo chuvoso que está lá fora, vem até o hospital por uma queixa de quatro anos?
--Na verdade...

E seus olhos, além de dignidade, agora lacrimejam pouco. Eu, velho de guerra que sou, acostumado às paragens do amor e da tristeza, me faço ouvidos nesta hora: O melhor que se pode fazer é ouvir e este é um medicamento que está muito longe do veneno ao qual me reportei mais acima. A diferença entre um bom atendimento e um que possa fazer mal ao outro é saber ouvir, ativamente, exortando o falar, o exprimir. O melhor medicamento que existe é a consideração, além da atenção ao que se fala. Isso vale para a vida! Não só de médicos, mas de todos.

--Na verdade, doutor, meu marido está internado.
--Aqui?
--Aqui mesmo. Como ele está lá internado, resolvi passar para ver se posso resolver isso. 
--Mas ele está internado para quê?

Ela toma coragem; vejo que até sua pele se torna mais pálida, os olhos se contraem e num esforço, ela diz o que mais lhe asfixia.

--...Ele nunca teve nada. Tem setenta e quatro anos, estamos juntos há uns quarenta anos! Saudável, nunca fumou, nunca bebeu. Trabalha ainda, com o filho. De um tempo para cá, andou emagrecendo. Dor de estômago, sabe? Passa num serviço, vai noutro...Sabe como é. Nada de alguém examinar. Aí eu o trouxe aqui! O médico que o atendeu lhe pediu exames e acontece que fez uma endoscopia. Doutor, descobrimos que ele tem um tumor de estômago. Hoje, ele vai operar; eu precisava me aliviar, sabe?

Os olhos marejados agora são os meus. Consta que ela não teria nenhuma queixa que a obrigaria a vir ao PS; consta que ela precisaria procurar outro serviço. Também consta que não se pode demorar muito num pronto-socorro; as relações se resfriam, resolva-se ou fora!

Acontece que eu lhe disse coisas que me vão dentro. Coisas em que acredito e pensei que poderia ser o seu marido, pensei na dedicação dela, em todo o peso sobre seus ombros. Acontece que me deu um nó e eu tive de sair da sala um pouco, alegando um chamado extra. No que voltei, espero que ela não tenha notado que usei um lenço. Achava que o lenço seria um objeto extinto...coisas dos românticos...

Acontece que eu lhe dei apoio. Lembrei de minha mãe. Um sentimento de efemeridade absurda me invadiu! Veio-me a imagem da cigarra que canta depois de estar na escuridão por anos a fio, só para chamar a chuva que vem fertilizar a terra que a abraçará em breve.

Tudo isto acontece! Tudo isto acontece.

 

Olhe ao seu lado. Eu a vi saindo digna, pequena em sua enorme força.

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