Uma fêmea chamada Hércules
Odir Ramos da Costa
Coroa e pinhão engraxados, cromado do guidão tinindo tinindo, nenhuma ruga na almofada de plástico vermelho e preto do selim - as cores do Mengo; levantava-a pelo porta-embrulhos, pedalava firme, a roda traseira suspensa zunia, maciinha; calcava o freio no punho esquerdo, o giro estancava. Zé Benedito sorria:
- Bichinha danada de boa! - espumava o bigode com outro gole da brama mantida gelada na caixa de isopor.
Domingo pela manhã, tenha a mais santa paciência, Zé Benedito não se pertencia. Cedinho ainda buscava a galinha dominical. Depois, era aboletar-se sob o caramanchão de buganvile, e dane-se o mundo: dava-se à Hércules.
Adquiriu a bicicleta inglesa nos bons tempos, com crédito tirado na Neno, pagando suados duzentos e vinte todo mês, extraídos sabe Deus como dum salário de quatrocentos. Espichou-se esta eternidade em dois anos de prestações, filando cigarro, quase aguando sem o cafezinho depois da marmita. Mas pagou. Em dia.
Ao reajuste na tensão da corrente propulsora, seguia-se o murmúrio, enternecido:
- Original, de fábrica. Valeu o sacrifício.
Vinte anos de constatação, duas décadas de mútuo reconhecimento. A máquina britânica herdara a precisão do big-bem. Zé Benedito retribuía com a reverência de súdito da realeza. Súdito preto, gari da Comlurb.
- Valeu, fui muito bem servido - desferia sutilíssima pancada com a chave-de-boca, apurava os ouvidos, para ouvir ressoar o toiiiimmm da boa liga do aço nobre. Lubrificava parafusos, desenferrujando exclamações:
- Aço desse, não se fabrica mais. Se se fabrica, então é pros escânias, pros foguetes americanos nas guerras do mundo (Zé Benedito madrugava, o noticiário das oito, na tv, já o encontrava cabeceando de sono).
As lubrificações aproximavam-se do fim:
- Aço desse, nessas bicicletas de agora, duvido. Nessas calóis sem-vergonha, sem peso nem resistência, cheia de boniteza? Pros trouxas. Descartáveis, é a moda. E as novinhas? Homem que preza a barba da cara lá monta em bicicleta sem quadro, sem a barra que não deixa mulher de saia montar sem risco de mostrar as calcinhas? Bicicleta de macho se galga, é égua, mulher (alisava a Hércules), monta-se, cavalga-se, não se senta. Se é pra escarrapachar o rabo, passando a perna por dentro, é própria pra moça. Pra homem, só fresco. Cavalgou a Hércules.
- Zé, larga a praga dessa catraia, vai comprar gás! O bujão está vazio.
Olhou pelo retrovisor, viu Rosa na porta, mãos nas cadeiras, avental encardido pelas estripações da galinha. Flanelinha no espelho pra desembaçar a visão:
- Acabou a lenga-lenga ?
- Te preveni ontem, pedi que trouxesse o gás junto com a galinha. Mas quando tu pega nessa catraia, esquece da vida, faz tudo pela metade.
Catraia. Ofensa repetida. Vá lá certa ponta de ciúme, vá lá. Porém, apelidar a Hércules, ainda por cima de catraia? E duas vezes? Com que direito? se a Hércules vinha de antes, das adolescências espremidas nos trens, da vontade sufocada de ir à zona, que a prestação comeu. Com que direito? Rosa falava assim do fruto, único fruto - de aço inglês, por isso perene, inacabável - restado duma época, dum salário e duma fome que, fora a Hércules, nada mais deixaram, além dos machucados da alma. Recompensava-se, reencontrando o pedaço desperdiçado de meninice nos untados de graxa, nas polias, nos óleos, nos inoxidáveis das ferramentas. Fazia-o por gosto, veterano capricho, paixão - Rosa que não se fizesse de besta.
Soprou um bafo frio e raivoso no espelho, embaçando a figura de Rosa; revirou o guidão, despejou-a no nada. Repassou a flanela no vidro, apagando os vestígios da assombração:
- Tô ocupado, deixei o dinheiro, o caminhão de gás passa na porta todo dia. Não comprou por vadiação - falou olhando por olhar o espelhinho, sorrindo quando nele viu apenas o pé de pitanga. Já saía, no rastro de sua afugentada adolescência, quando ouviu:
- Faz cruz. Hoje não tem almoço. Fica com a tua Hércules.
Zé Benedito lançou a perna por cima da máquina-mulher, se danasse o almoço. Imprimiu firmeza do corpo macho ao pedal, a boa máquina inglesa obedeceu submissa, cavalgada pelo seu senhor-menino, completamente súdita, britanicamente Hércules.
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