A Semente
Sônia Rodrigues*
Cada ladrão que a assaltava ganhava um livro. E como ela acreditava que os assaltos fazem parte do cotidiano de um paulista típico, expunhas-se em horários e ruelas tais, que tomara-se uma vítima compulsiva.
Leitora voraz, disseminadora de cultura, carregava sempre consigo dezenas de títulos que emprestava, presenteava ou trocava com amigos, alunos e parentes.
Da primeira vez em que um pivete comentou: “não tem mais nada de valor aí, ela estremecera. Percebendo em que noite de trevas estava mergulhada aquela alma, ofereceu, ou antes exigiu:
E ofereceu o Ladrão de Bagdá, em atraente capa colorida.
A partir deste dia, junto com os trocados reservados para os habituais assaltos, escolhia cuidadosamente os livros com que brindaria os assaltantes. Havia estórias adequadas para órfãos abandonados e livros mais apropriados para desempregados pais de família.
Certa noite uma pergunta surpreendeu-a:
- Tem aí um livro de culinária?
Não tinha, pois ela era mulher que se alimentava de sonhos, porém, de um canto do porta-malas, retirou um “Nem só de caviar vive o homem” e explicou:
- No meio de aventuras incríveis, tem aí umas receitas deliciosas.
Em outra noite, tendo ouvido o clique revelador e levantado as mãos como de praxe, escutou:
-Ah, é a doida dos livros!
-Doido é quem vive no crime.
Para seu espanto, o rapaz abaixou a arma.
- Sabe, dona, o pessoal daqui “tamo” juntando seus livros e trocando aí umas idéias...
Madrugada adentro, aquelas duas almas conversaram longamente sobre estórias reais e imaginárias.
Ela contaminou o rapaz com sua fome incurável, temperada com pó de pirlimpimpim; confrontou-o cm monstros, dragões e bruxas; virou-o pelo avesso e transmutou suas angústias em curiosidade e desejo.
Nossa heroína não foi mais assaltada naquele perigoso bairro.
E convido o leitor a imaginar o que seria este país se cada um de nós se pusesse a semear livros, livros à mão cheia...
(*) A autora dispõe da página: http:Sonia.pnl.vilabol.com.br
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