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cronicas-->A Primeira Vez... -- 20/08/2015 - 09:47 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

...Que eu ví o mal, morava em uma casa que tinha porão e o assoalho da sala estalava quando passavam as pessoas. Havia uma escada de madeira que conduzia à parte de cima e onde havia um banheiro com banheira enorme, onde eu tomava meus banhos de imersão proibidos e onde eu tive meu contato com o mal. O mal em si não existe. Ele se produz a si próprio, ou é uma criação da cabeça dos homens; claro está que eu, àquela altura da vida, não tinha esses questionamentos. Só não gostava dos choros que vinham do necrotério do Hospital que ficava numa colina bem acima de nossas casas. O choro era terrível! Havia os que não acreditavam que haviam morrido; outros gritavam que não, não queriam morrer! O mais espantoso era que alguns choravam, calmos e compassivos, outros berravam sua ausência no silêncio da ausência de luz. Foi do nigredo que brotou a imagem dos dois olhos fosforescentes, esverdeados e malignos atrás da veneziana de nosso quarto de dormir, onde eu e meus irmãos descansávamos. Estava lá, era um olhar mefistofélico, atrás das venezianas. Nada poderia nos alcançar ali, porque o quarto ficava a pelo menos quatro metros do solo. Eu ví o olho que brilhava e na profunda mansidão da noite, interrompida pela pequena coruja que fizera seu ninho na ameixeira que servia ao nosso clube infantil. O farfalhar das folhas, o vento seco e suave, a voz da escuridão da noite espessa e o olhar observando o quarto. Lembro que minha pele se eriçou toda, vítima de um tremor involuntário. Eu sabia por instinto que talvez fosse aquele o dono do negrume do mundo subterrâneo. Talvez o dono dos caminhos do Hades tivesse vindo à minha caça ou anunciava que um de nós iria ser sugado ao torvelinho enegrecido; pensei nas torneiras pingando, gota a gota, nossa vida. A Vida, esse dom, esse presente, pingando nas torneiras de cada um de nós, inadvertidamente abertas ou mal fechadas, num desperdício atroz, numa efusão de momentos límpidos gastos no mal,  numa difusão de calores da vida, numa evolação dos vapores da alma. Eu ouvia, distintamente um choro triste, contínuo, de uma mulher que havia perdido o marido; ele, no silêncio dos mortos, surpreso e inerme, queria beijar aquele rosto, mas não podia; os olhos verdes e peçonhentos estavam ali, minha pele arrepiada. Pensei na banheira, cheia até a boca, as gotas caindo em câmaras de mercúrio e chumbo, a água fervente despelando meu corpo; pensei no ralo aumentando até se transformar numa boca de fome inescapável, a passagem inequívoca ao Estige, as mãos ossudas de Aqueronte, o troar dos passos de minha mãe subindo a sala, a escada balançando e meu corpo, paralisado, tentando chamar à vida minha mãe que subia o caracol, para ver se a banheira estava cheia. Havia a luminescência dos olhos, havia o choro e minha vertigem. O grito brotou de minha garganta apertada, que acordou meus irmãos, que choraram porque viram os olhos do Mal e ouviram o choro da esposa desconsolada e sentiram a inutilidade do esforço do morto para erguer-se, qual Lázaro, das forças que o envolviam na sombria mudez da noite escura.Minha mãe entrou no quarto:

--Que choradeira é essa?

--Mãe!

--Durmam! Que aconteceu?

Nossos dedos apontaram à janela. Ela olhou, os olhos de Kali estavam lá. Ela não viu, tememos quando ela escancarou a janela e espantou a corujinha e o gato que espiava a coruja.

--Agora, durmam, senão chamo seu pai, que já pendurou a cinta à porta.

Nunca caí no sono tão rápido. Também, nunca mais tomei banhos proibidos na banheira esgoelada.

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