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cronicas-->Máquina de Sonhos -- 05/07/2015 - 19:15 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Eu havia muito tempo não sonhava; isto é, tenho meus sonhos, tipo casar com uma linda mulher, ganhar um montão de dinheiro e dirigir uma Ferrari Testarrossa. Como são impossíveis, classifico estes eventos entre as improbabilidades como sonhos inalcançáveis. Os sonhos mesquinhos do dia a dia, tais como ganhar um dinheiro que pague o aluguel de meu cantinho, dirigir um carrinho de segunda e namorar uma moça que me queira bem, esses eu mantenho acesos em minha caminhada de segunda a sexta, que ninguém é de ferro. O fato que narro a vocês não é de falta de sonhos comezinhos, estes qualquer um de nós os tem e acalenta. Afinal, é de rame-rame que se desenreda nossa vidinha, é de novela em novela que nosso enredo desperta, é dormindo que acordamos de manhã para trabalhar nossa rotina. Enfim, isso não lhes interessa porque trata de suas vidas; eu quero lhes contar que, noite a noite, vem a escuridão e mais do que ela, para mim vem a Escuridão, aquela do Érebo, a solidão da noite enxuta, sem ais nem ohs, a Noite sem estrelas. Como comecei falando, termino dizendo: Nada pior do que uma noite bem-dormida e sem algum augúrio, nem sinal, nem fantasmática aparição. Quem é que não experimentou pelo menos a imagem da amada beijando sua boca, ou em um lusco-fusco intermediário, viu alguma sombra sua conhecida, talvez um pai que já se foi querido anunciando as novas da estação ou alguma chuva que nunca foi tão forte, num tempo de águas ralas e rasas?
Pois eu digo, há tempos que meus sonhos escasseavam, submetidos a um regime inexpugnável, de uma censura abominável e de um torpor que prenunciava os abismos do Letes e do Tártaro. Eu notei isto quando uma amiga minha, dona de uma vitalidade invejável e de olhos claros como o dia de um verão esquecido, falou-me de um sonho que havia tido com sua avó, passada há poucos meses.
--Ela morreu como um passarinho. Deitada, ao lado de uma imagem de santa que ela adorava, com a bíblia aberta no salmo vinte e um e no silêncio do quarto, logo após dizer a todos que ia se deitar. Ela se deitou e...partiu.
--Talvez a melhor das mortes.
--Peço isso para mim e que ela tenha uma luz maravilhosa aonde quer que esteja.
Dizendo essas palavras, perguntou-me de meus sonhos. Eu, desconcertado, respondi que não me lembrava de sonho algum faz tempo. Ela me disse que isso não podia ser, que os sonhos são um Mistério, que houve santos que sonharam com a eleição de deuses e com a dqueda de impérios; como eu não haveria de sonhar? Simplesmente não me lembro deles, se é que os tenho, eu disse.
--Isso não pode continuar. Há os que dizem que nesta fase do sono, o cérebro se repara.
--Portanto, eu posso dizer que já, talvez, eu tenha danos irreversíveis.
--Não é para tanto. Mas vou lhe dar dicas...
Aconselhou-me, para tal façanha (recuperar minhas oníricas e extraviadas imagens), anotar meus condutos noturnos em um bloco de papel, assim que acordasse; melhor, ela disse que tinha, à beira de sua cama, à mão, um pequeno gravador de voz, que imediatamente comprei.Como nossas represas desgraçadas, a seca de idéias continuava; não havia noite após noite que não se dispusesse a outra e se antecipasse a outra, sempre na mesma trilha: Nada havia de que me lembrar e o silêncio continuava, como se no fundo do poço algum Minotauro me aguardasse ou de fio algum dispusesse eu para o retorno, sem o qual indefeso, seria devorado pela besta-fera. Não, isso não podia continuar; cada noite eu sentia que minha mente me avisava de uma falta, um medo que não me completava de nada, a não ser do próprio medo. O horror se avizinhava, eu sabia, e as noites vazias só faziam meus dias mais e mais áridos, como se a seca de fora habitasse o meu espaço de dentro. Tornei-me arredio e estranho, já via em alguns olhares talvez um reflexo do Touro que me desagradava no fundo dos labirintos de outrora. Minha amiga, sabendo de minha sina e perguntando se o que ela me aconselhara surtira efeito, preocupou-se sinceramente; já era hora de, ela dizia, eu procurar a ajuda de alguém que pusesse mãos à obra e desencavasse de mim as pedras brutas que certamente em diamantes se haviam de tornarem.
Foi aí que, meio a esmo, encontrei o anúncio num jornal:
"Empresa tem Máquina de Sonhos. Baseados em algoritmo que desvenda praticamente sessenta por cento do conteúdo onírico, Máquina promete devolver as lembranças de sonhos vívidos a pacientes que precisem desse apoio". Haviam lá considerações de ordem científica que, por aqui, prefiro me abster de fazer, talvez porque vocês que sonham mais que entendam minha necessidade de resolver isso de maneira a mais rápida possível, de maneira que eu prefiro deixar à ciência as considerações por ela feita e me ater aos fatos, que é o que lhes interessa, se é que os conheço bem.
Fui ao tal endereço e dei com um prédio todo aluminizado, décimo-quinto andar. O elevador silencioso, os espelhos que refletiam minha pálida figura deixavam a impressão de confiança e prosperidade próprias de empresas sólidas e bem sucedidas. A tal " Máquina dos Sonhos" ocupava todo um andar. Fui recebido por uma recepcionista que, se não era um sonho, era de todos boa parte. Magníficos olhos e sorriso perfeito preencheram minha ficha e, com minha anuência, fui conduzido a um par de homens, um dos quais tinha uns óculos de grosso calibre, sempre anotando minhas palavras ou até minhas atitudes, enquanto o outro, de cabelos vermelhos e olhar voraz e ágil, me inquiria de minhas intenções.
--Aqui diz que o senhor não sonha!
--Perfeitamente.
--Mas isso é impossível!
--...Se eu sonho, não me lembro de nada!
--Perfeito. Então, talvez tenhamos aqui um caso de sonhos inomináveis.
--Como assim?
--Sonhos de tal conteúdo que seu Consciente desperto não suportaria; ele os censura, portanto o senhor não se lembra!
--E de que adiantam os sonhos se não lembro deles?
O Outro, anotador, levanta os olhos e olha para mim com muita curiosidade; dali eu sinto que vem a maior eficácia, eu considero. Talvez os calados realmente tenham mais conteúdo que aqueles que disparam sua verborreia para o mundo, porque ele me falou com o olhar de tal maneira que não precisou dizer que eu estava aprovado em seu experimento e que, por sua postura, ele era o líder, se é que isso existe em pesquisa. Ele, calmamente, me disse que a máquina de sonhos tinha o potencial de evocar os sonhos e que cada cultura tinha seu conteúdo; que o conteúdo dos sonhos não deixa de ser equiparado à vida do dia de cada um mas que, de forma oposta ao que se dizia até então, o que haviam descoberto ultrapassava o simples conceito da repressão/desrepressão de conteúdos pela vida consciente/inconsciente.
--De forma que achamos que a vida interior seja regulada por símbolos que precisamos decifrar e que, cada cultura precisa decifrar sua própria simbólica antes de se aventurar a dizer que eles são produtos de um cérebro que apenas se reconstrói ou refaz seus elos.
--Compreendo. Quando começamos?
Ao que mais uma vez aludo à minha crescente ansiedade de penetrar naquele Delfos eletrónico, no Oráculo definitivo, aquele que me traria de volta meus presságios sem os incómodos da volátil fumaça, das cobras venenosas nem das pedras deslizantes. Bem, aí talvez eu esteja exagerando em minha dessacralização e Apolo, esse vingativo Deus Solar, talvez já se preparasse para me flechar quando foi interrompido pela prosa do outro pesquisador, já me dirigindo à Càmara da Máquina dos Sonhos.
Deitei-me e ouvi uma música leve, vestido que fora com uma espécie de manta branca, diáfana e leve como uma roupa grega dos tempos áureos. Dali onde estava, deitado, via uma pequena janela de onde me olhavam seis olhos, dois dos quais eram os da pitonisa que me atendera à porta de tal instituto. Pequenos estalidos me convenceram que tal viagem já se iniciara...
--Ele parece que já dorme.
--Inicie o Estágio I. Insira os conteúdos.
--Mas esse é o Estágio Três!
--Faça o que eu digo. Diabo de protocolo, sempre fase um , fase dois...Já vamos pular isso, vamos ao ponto.
--Mas ainda não testamos isso...!
--Dê-me aqui esse controle.
Zumbido. Estalidos, luzes. Eu flutuo num limbo e nada me surpreenderia se encontrasse Virgílio a me guiar em tal caminho, se não ouvisse um estrondo e ao olhar ao céu, visse magníficas mulheres de asas, em meio a trovoadas e cores de um tom azulado; raios me crcavam e elas me conduziam a uma ponte irisada onde eu assentei meus pés. Lá adiante, grandes cúpulas douradas, grandes casas, quedas d´água espetaculares, cànticos que soavam bávaros e lá, bem abaixo, no rio de tumultuosas cascatas, flutuava um barco Viking. Eu andei até a entrada de tal ponte e vi com esses olhos a mesa posta servida de finas iguarias e vinhos, pedaços maravilhosos de carne de javali e, à ponta da mesa, um Deus de aspecto terrível e ao mesmo tempo, benevolente. Ele me disse algo em uma língua que não pude entender mas que, vociferando, me incitava a sentar ao seu lado. No momento seguinte, ao meu lado, sentou-se o traiçoeiro irmão do Deus Louro, que em outra ponta, beijava uma das Valkírias; No banquete que se seguiu, tive de dar vazão aos meus instintos bárbaros e a fome que me consumia se aliava à sede de vinho que era de tal consistência que todas as almas que vi ali se prostraram após o festim maravilhoso. Enquanto dormiam, eu fugi dali, para cair novamente no tal limbo luminoso, esperando a qualquer momento a voz do amigo de Dante.
Qual não foi minha surpresa quando me ví acordando à mesa de um reino bretão, feita de sólida madeira, com os cavaleiros de uma távola que entre si combinavam em mil maneiras de defender o reino arturiano, quando este entrou por uma porta diversa da que se achava aberta, e todos se levantaram, com um ruído de elmos, escudos e espadas se tocando que era lindo de se ouvir. A um sinal de olhos, Arthur nos mandou sentar e, com surpresa, vi que eu era o tal convidado de um reino estrangeiro e que havia de responder ao soberano certas questões sabidamente estratégicas; O problema é que, mal caído ali, não tinha a mínima noção do que falar. Minha sorte é que no mundo criado pela ressonància de nosso Inconsciente, saberes profundos brotam de profundas fontes, de tal forma que, na hora mais precisa, lá estava eu a discorrer sobre a grandeza de nossas matas e da qualidade de nossas árvores ancestrais, ao que os olhares de uns e outros se encontravam admirados. Eu lhes disse que, lá onde vivia, matas tais há que os rios nascem sem nunca morrer, e que aves maravilhosas ainda as habitavam; disse-lhes também de miraculosos animais que, ao saírem dos rios populosos de peixes, seduziam as ribeirinhas e que da união entre elas e eles, nasciam príncipes guerreiros que havia de afirmar nossa força nos séculos vindouros. Também lhes disse que tal reino seria um celeiro e uma promessa, se um dia o conhecessem, e que seriam bem vindos, ao que o magnífico primeiro cavaleiro à minha esquerda se levantou e puxando da espada, tornou-me cavaleiro à sua imagem e semelhança, sob os auspícios de todos ali, inclusive do Rei. Que ao levantar a taça, emitiu prece obscura em linguagem mais estranha ainda, o que me fez flutuar de volta ao abismo de luz que me transportara e que me fazia perguntar se haveria alguém mais brilhante que Arthur e a resposta pareceu atravessar a névoa branca, onde caí numa càmera de uma torre, de onde eu via o patíbulo onde seria enforcado por alta traição do reino de França; lá, no pátio, se entoavam os hinos e canções do Império de Napoleão; foi quando ouvi o ferrolho da porta se abrir e entrou um pároco, seguido de um indivíduo com o dobro de sua altura e de aspecto sinistro que eu identifiquei com meu carrasco.
--Meu filho, vim aqui com a palavra de Deus, para que te arrependas de teus pecados e entregue sua alma imortal ao Deus que lhe perdoará quaisquer faltas, porque dos homens obtiveste a culpa, com tua traição horrenda e vil.
--Eu não traí ninguém!
--Isso todos dizem aqui. Ninguém nunca trai ninguém, ninguém nunca entrega os mapas dos planos de Sua Majestade, ninguém nunca corre ao exército inimigo e lhes diz as posições dos soldados de Vossa Majestade. Digamos que eu acredito em vossas palavras; cumpre a ti acreditar nas Sagradas Escrituras que vos salvam de qualquer ignomínia.
--Mas...!
--"Ego te absolvo em nome de patri, fili e espiriti santi, amem".
Dito isso, ergue-me no ar o tal carrasco, não sem minha luta, e quando já me põe o capuz, novamente a luz baça, o lume etéreo que de nada tem nome e talvez, de lugar algum se origine; talvez seja a luz de que falam os do Oriente, o Nirvana tal que nos absorve em final viagem que nos espanta de nossa cadeia de mortes/renascimentos. A luz se aproxima, eu posso ver, há luz ao final do túnel...E estou de volta à máquina de sonhos e vejo seis olhos agitados, tentando mudar controles que não obedecem, diálogos que se sobrepõem, falas entrecortadas...
--Mas essa é a fase Três!
--Diabo de protocolo, fase um, fase dois, fase três; Dê-me aqui esse controle!
E lá vou eu ao limbo de novo, de novo e de novo, compungido a sonhar, sonhando que sou meu próprio sonho, talvez no fundo sabendo ser sonhado por alguém mergulhado num túnel, uma máquina que simula sonhos, um Oráculo disfarçado ou Maya, a ilusão que encobre nossas mais caras aspirações.
Finalmente, em santa paz, abstraio meus dias secos.
Sonho!
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