Usina de Letras
Usina de Letras
57 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62193 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22534)

Discursos (3238)

Ensaios - (10352)

Erótico (13567)

Frases (50599)

Humor (20028)

Infantil (5426)

Infanto Juvenil (4759)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140793)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6185)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Cronicas-->O Mundo Acabou -- 09/06/2015 - 12:06 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Dois anjos caminhavam sobre a Terra. Um deles, mais acostumado às mazelas do planetinha azul, mascava um chiclete vagabundo; também fumava um estoura-peito qualquer, enquanto olhava à volta com seu olhar já afeito ao ambiente.

--Dá para você parar de espalhar esse cheiro nauseabundo dos infernos, por favor?
--Certo, chefe.
--E pare de mascar essa goma ridícula. Parece ator de filme ianque.
--São os melhores!

Seu colega celeste olhou-o de cima a baixo. Calça jeans, bota de couro e chapéu de vaqueiro.

--Pelo jeito, está acostumado.
--É, estou.

Passavam por uma ponte sobre um rio que exalava o odor típico das tardes de Outono na cidade cheia de pichações nos edifícios de tez cinzenta e triste. Caminhavam desviando dos cocós de cachorro, das urinadas e das pessoas azafamadas de trabalho, olhos baixos e/ou pregados em aparelhos celulares.

--Eles ficam assim o tempo todo?
--O tempo todo. Em casa. No trabalho.com os amigos. Fazendo amor. Eles ficam o tempo todo nesta merda.
--Quer por favor moderar a linguagem?
--Desculpe, chefe.

Chegam a uma praça. Há velhinhos espalhados tentando tomar sol. Há um monte de moleques de boné. Há mulheres encostadas em postes. Há um cheiro de urina nos cantos. Há papéis voando, garrafas pet vazias, latinhas de cerveja jogadas ao chão, garis conversando e todos de olhos baixos grudados nas telinhas dos tais aparelhos.

--Impressionante. Que significam esses garranchos escritos?
--Não sei. Só eles entendem.
--Quem?
--Os pichadores.
--Veja, como chegaram ali? ( aponta o alto de um prédio caindo aos pedaços, com camisas penduradas nas janelas e fumaça saindo azeda de chaminés improvisadas).
--É com eles. Fazem isso de noite. É heroísmo!

As mulheres olham os dois belos rapazes, mais para o primeiro que para o do chiclete. Convidam com olhares espantosos a subirem escadas, como caranguejas matreiras com suas coxas estouradas e suas bocas carnudas.

--Benzinho, te faço um boquetinho. Vamos lá!
--Moço bonito, pra esse eu pago um pau.
--Vem cá, ó pecado.

Os dois caminham e estão a ponto de atravessar a rua quando passa uma viatura perseguindo um carro cheio de gente dentro. Há armas apontadas, gritaria; as mulheres sumiram, os bonezinhos gritam impropérios.

--Gambé!
--Coxinhas do caralho.
--É isso mesmo, é nóis nas parada.

Um dos meninos aproveita deixa e corre a roubar a bolsa de uma mocinha que passava rápido por ali. Esvazia o conteúdo ao vivo, em cores, pega o dinheiro e dá um tabefe na menina que cai ao chão, estatelada, sem celular e sem dinheiro. Ninguém ajuda, nem os velhos, nem os homens, nem os outros.

Um e outro se olham; parece que um e outro concordam que a moça precisa de ajuda e o moleque precisa de corretivo. Aliás, um corretivo bem maior que o suposto pelo moleque e por toda a cangalha que olha como se fosse normal estabefear uma moça, deixa-la estendida no chão chorando e ninguém levantar um dedo. E o cheiro do rio morto apanha todos de surpresa, numa brisada que veio dos lados de lá.

--Tem mais?
--Chefe, isso aqui é fichinha.
--Tem...mais???
--Desculpe, chefe.

Andam perto das ruas que ladeiam as periferias; lixos de monturos, ratos pululando e crianças lindas correndo em meio ao lodo. Há um vagido que sai de um saco de lixo. Uma mulher velha ouve, pega o saco e tira de dentro um bebê novinho em folha.

--Puta merda, Regina! Vem cá, Deus do Céu!

Rapidamente, levam o pequeno bebê para uma casa humilde. Eles estão por perto, vêem como a lavam com cuidado, vêem como cortam o cordão umbilical; eles vêem como a aquecem com o cobertor mais sujo que poderiam arranjar, enquanto lá fora voam os abutres e os urubus. O cheiro de lixo é insuportável, mas elas acendem um fogareiro e fazem uma mamadeirinha.

--Vai de leitinho mesmo, nenê, que você deve estar com fome.
--Quem faz isso?
--Aqui tem direto, seu moço. Na hora delas fazê, se esquece que tem depois as hora de cuidá. Daí, se enrabicha por outro e larga as cria por aí, nesse mundão todo sujo.

Um olha ao outro, já chameja uma certa luz na espada que o mais velho carrega.

Passam uns camaradas mal-encarados. Um deles olha o mais velho e nota o volume da espada que ele carrega.

--Ó mano. Tá sabendo que aqui é nóis?
--Aqui é nóis o quê, filho?
--O cara é das parada. ó mano, não me olha assim não que eu não permito! Aqui é nóis!

O malandro mostra os dentes como um cão raivoso, de seu peito pendem correntes de ouro e no pulso tem um relógio enorme, dourado. Pingentes na orelha, tatuagem horrível no braço esquerdo e na calça quase caindo, bem na cintura, um revólver calibroso. Faz um movimento abrupto, mas o mais velho dos dois o olha fundo nos olhos.
--Ih, ó, o velho pelo jeito é das parada gay.
--Velho escroto, vou mostrar quem é o homem aqui.
--Chefe, cuidado aí.
--Chefe? O velhusco aí parece mais é um puto velho. Desse que arrasta as asa por mocinho, perdófilo.
--Eu, pedófilo?
--É, os padrecos são tudo perdófilo, mano, tá sabendo? É nóis, mano.
--Ele acha que sou pedófilo.
--E não é não, padreco de merda?

O mais novo sente que a temperatura sobe, olhando a centelha que já brota da espada de seu colega já farto de tudo isso.

--Não viu na televisão, não, padreco? Tinha mulher crucificada, tinha dois pendurados na cruz de cabeça pra baixo; tinha de tudo um pouco. E você faz o quê aqui, nas minhas paradas? Sou eu que mando aqui.

Juntava uma pequena multidão; surgiram armas mais pesadas, surgiram uns camaradas vestidos de roupa verde; uns usavam correntes e outros tinham a cara coberta.

--Fazendo o quê aí, Robertinho, irmão?
--Dando uns pá com os padrecos daí.
--Esses dois?
--É véio.

O mais novo, mascando de novo o chicletinho irritante, aconselhava seu chefe a se retirar.

--Nós vamos andando. Não queremos nada. Viemos ajudar uma mulher que achou um bebê no lixo.
--Hã?

Todos se olharam. O olhar do mais velho agora chamejava, o calor perto dele era algo palpável.

--Chefe, não se precipite.
--Chefe, aqui, sou eu, malaco.

Quem falava era o mais parrudo, vestido de uma manta amarela, fuzil pendurado no ombro, como se fosse um soldado.

O silêncio se fêz, porque o mais velho dos dois tirou a espada da bainha; retorcida, ela espalhava um brilho intenso, além do calor que queimava os rostos da bandidagem. A mulher que salvara o bebê fez o sinal da cruz; já tinha visto muitos bebês no lixo e muitos corpos desovados mais além. Aqueles dois iam conversar com Deus bem rapidinho.

De longe, quem ouviu ouviu uma espécie de mugido. Os tiros que se seguiram se espalharam. A menina da praça se levantou, com a bolsa na mão e o telefone funcionando; o bebê sorria nas mãos da velha bondosa. O Rio fedia como sempre mas os padrecos nunca mais foram vistos por ali, nem os chefes, nem os bonés, nem os rifles, nem mais nada.

Porque o mundo tinha acabado.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui